Os jardins concebidos pelo paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994) para a Pampulha, em Belo Horizonte, chegam aos 80 anos mantendo a elegância do agapanto, a firmeza da cana-da-Índia, o balanço da russélia, a singeleza dos camarás e o perfume do crino-africano. No melhor estilo “dê-me trato, que te darei formosura”, os canteiros floridos, evidentemente sensíveis à chuvarada deste mês, responderam bem aos serviços de restauração e manutenção dos últimos três anos, incluindo o resgate das formas originais criadas no início da década de 1940 pelo paisagista que trabalhou com Oscar Niemeyer (1902-2012), autor dos projetos arquitetônicos no entorno da lagoa.
A importância de Burle Marx para a cultura, de maneira ampla, está presente também numa exposição na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro (RJ), visitada ontem pela equipe do Estado de Minas. Em 1,2 mil metros quadrados da bela construção em estilo neocolonial, há 130 peças com o traço do “jardineiro fiel” que deixou seu legado em Minas.
“Há trabalhos dele que muitos desconhecem, entre eles os executados em Tiradentes (Região do Campo das Vertentes, em Minas)”, diz a diretora-executiva do Instituto Burle Marx, a arquiteta-paisagista Isabela Ono e curadora, junto com o diretor da Casa Roberto Marinho, Lauro Cavalcanti, da mostra “O Tempo Completa: Burle Marx, clássicos e inéditos”. “Foi um desafio selecionar para apresentar ao público este acervo de sete décadas, por isso o chamo de legado”, afirma Isabela, filha de Haruyoshi Ono (1943-2017), sócio e grande amigo de Burle Marx e “semeador” do instituto fundado em 2019.
Todos os sentidos No Conjunto Moderno reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a festa para os olhos de moradores e visitantes se faz presente em ícones como o Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis, mais conhecido como Igrejinha da Pampulha, no Museu de Arte da Pampulha (MAP), antigo cassino, e na Casa do Baile, atual Centro de Referência de Urbanismo, Arquitetura e do Design.
A despeito das chuvas de janeiro, nada tira o prazer de contemplar a harmonia de cores neste recorte da paisagem de BH. O serviço nos jardins da Pampulha decorre de ação da Fundação dos Parques Municipais e Zoobotânica (FPMZB), Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), Fundação Municipal de Cultura e Guarda Municipal, vinculados à Prefeitura de BH (PBH).
Fundamental a todo o processo de manutenção, o Viveiro Burle Marx, no Jardim Botânico, já produziu mais de 3 milhões de mudas, informa a diretora de Gestão e Educação Ambiental da FPMZB, Laura Mourão.
Novidade
Guiada por Laura Mourão, que trabalhou com Burle Marx na década de 1980, no Rio de Janeiro, o Estado de Minas visitou os três jardins e o viveiro. Uma novidade está na igrejinha, que, desde 4 de outubro, data consagrada a São Francisco de Assis, se tornou santuário. “Depois que a Arquidiocese de Belo Horizonte colocou placas nos jardins, o pisoteio, que era frequente e causa de degradação, felizmente acabou”, conta Laura. A construção do templo teve início em 1942, o término da obra ocorreu no ano seguinte e a completa restauração foi realizada entre 2018 e 2019.
Nos canteiros dos jardins da Pampulha, onde Burle Marx trabalhou de 1940 a 1944, entre desenvolvimento de projetos e execução do paisagismo, encontra-se uma bela mostra do serviço de recuperação. “Há profusão de cana-da-Índia no tom vermelho, fazendo uma divisa entre o santuário e o espelho-d’água, lírios amarelo e laranja e crinos branco”, conta Laura, sentada, nesse momento, sob uma paineira e diante de uma moita de imbés. “Sabia que Burle Marx adorava imbés? Ele compartilhava muitos ensinamentos, e de um deles nunca me esqueci: as plantas gostam de caca, amor e água”. Caca, num linguajar quase infantil, é o esterco dos animais que aduba o reino vegetal.
A frase é a deixa para Laura contar outra novidade. “Desde que passamos a usar o esterco dos elefantes do zoológico, principalmente para adubar a cana-da-Índia, as capivaras deixaram de destruir os jardins do MAP. A planta tem um gosto adocicado que atrai os roedores, e o esterco as afugentou.”
"Burle Marx sempre dizia que é preciso ter um viveiro, e o nosso é uma iniciativa inédita em Minas"
Laura Mourão, diretora de Gestão e Educação Ambiental da Fundação dos Parques Municipais e Zoobotânica
Visitando BH pela primeira vez, a gaúcha Flávia Moura, gerente de contas, se encantou com o conjunto arquitetônico e os jardins. “Está tudo muito bem cuidado, bem bonito”, disse Flávia.
Polinização A próxima parada ocorre no MAP (ainda sem início das obras na edificação), cujo jardim ocupa, ao todo, cerca de 12 mil metros quadrados. A combinação de cores é impressionante, com novidades que agradam aos turistas. Laura explica que surgiu, fruto da polinização, um tipo de lírio, o vermelho, resultante da hibridação de amarelos e laranja. “Ficamos surpresos, quando descobrimos esse novo espécime”, afirma a diretora, explicando que 95% do trabalho estão concluídos. “Aguardamos o conserto do espelho-d’água, que está vazando. Isso impede que coloquemos plantas aquáticas.”
Laura Mourão falou sobre o projeto paisagístico e mostrou as palmeiras macaúbas, “típicas da nossa região e que formam uma moldura para o jardim”. O conjunto se forma com o lilás do agapanto, o azul da bela-emília, o vermelho da russélia e da cana-da-Índia e os tons variados dos lírios.
Na Casa do Baile, construção que mais parece uma poesia concreta, o destaque é o perfumado crino-africano, planta que Burle Marx trouxe do Quênia. Nesse jardim, ainda em manutenção, há também papiros e as árvores eritrina e estrelítzia branca. Um ponto que destoa nos jardins está na falta de sistema de irrigação em todos os três jardins, o que obriga a rega por caminhão-pipa ou mangueira, “sendo oneroso e tomando muito tempo”.
O Viveiro Burle Marx, que abastece os jardins públicos da Pampulha, tem equipe própria de jardineiros e consiste num dos pilares da vitalidade das plantas“.Burle Marx sempre dizia que é preciso ter um viveiro, e o nosso é uma iniciativa inédita em Minas”, diz Laura Mourão. “O espaço serve de base para o cultivo de espécies presentes nos jardins, com a função de promover a reposição de mudas e salvaguardar o patrimônio paisagístico. Possibilita também o aprofundamento nos estudos e o domínio das equipes técnicas sobre essas espécies, de forma a facilitar o manejo e a manutenção sustentável que resguarde a autenticidade dos patrimônios culturais vivos.”
Na tarde de ontem, a Prefeitura de BH, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e da Fundação Municipal de Cultura, informou que os jardins do MAP não foram afetados pelas chuvas. “A parte frontal do jardim pode ser acessada pelos visitantes. já os jardins localizados na parte dos fundos do MAP não estão disponíveis para acesso, devido às prospecções em andamento referentes aos projetos de restauro. Informamos que o projeto para o restauro do prédio, revisto e ampliado após consuldorias e ensaios, está atualmente sob análise e aprovação dos órgãos de proteção ao patrimônio cultural”, destaca a nota.
Ações
Ainda em nota, a PBH informa que a Sudecap acompanha, em conjunto com a Fundação Municipal de Cultura e mediante aprovação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os projetos que estão sendo elaborados para a recuperação e restauração do Museu de Arte da Pampulha (MAP).
“Em razão do trâmite de aprovação nas diferentes instâncias do patrimônio cultural competentes para avaliação dos projetos e da imprescindibilidade de a análise ser criteriosa, pelo alto grau de exigência técnica que os projetos de recuperação e restauro requerem, estima-se que esses serão concluídos em 2022. Após a finalização desta etapa, serão tomadas as providências necessárias para a licitação das obras. No escopo do projeto, constará a recuperação do espelho d'água, e também serão elaborados projetos de irrigação para os jardins do MAP”, diz a nota.
Conheça algumas das espécies presentes nos jardins da Pampulha, em Belo Horizonte
- Cana-da-Índia: O vermelho faz moldura perfeita para o Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis
- Também na Igrejinha da Pampulha, o amarelo do camará traz mais singeleza ao Conjunto Moderno
- O crino-branco pontifica no canteiro diante do painel criado por Cândido Portinari para homenagear São Francisco
- No MAP, as russélias se harmonizam com as outras flores do jardim gigantesco
- Lírios amarelo, branco e laranja encantam visitantes. Com a polinização, surgiram híbridos vermelhos.
- Os agapantos, na cor lilás, são outra atração do jardim do antigo cassino, hoje MAP.
- Na Casa do Baile, está no ar o perfume do crino-africano, introduzido no Brasil por Burle Marx.
Explosão de curvas, liberdade e cores
Reconhecida como Patrimônio Mundial em 17 de julho de 2016, a Pampulha tem as raízes da sua história na década de 1930, com a construção da barragem para abastecimento de água da população, na administração do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1897-1960), que pôs em prática o projeto do engenheiro Henrique de Novaes. Dez anos depois, quando assumiu a prefeitura, o prefeito Juscelino Kubitschek (1902-1976) decidiu ampliar a área da represa e fez um concurso para a construção de um cassino, embora não satisfeito com o resultado. Pediu, então, opinião a Gustavo Capanema (1900-1985), ministro da Educação do governo Getúlio Vargas, que o apresentou ao jovem arquiteto Niemeyer.
Capanema passara pela experiência de construir o prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, hoje Palácio Gustavo Capanema e primeira construção moderna no país. Para tanto, convidara o arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), que revolucionou a arquitetura mundial, sendo chamado de “pai da arquitetura moderna”. Niemeyer trabalhava na equipe que construía o prédio e, com aval de Capanema e do arquiteto Lúcio Costa (1902-1998), foi convidado por JK para trabalhar em BH.
Nas páginas do seu livro “As curvas do tempo: memórias”, de 1998, Niemeyer escreveu que a Pampulha significou um despertar na sua carreira, servindo de referência até para o projeto de Brasília, inaugurada em 1960 e fruto da sua parceria com o urbanista Lúcio Costa (1902–1998). Enquanto o mundo ainda valorizava o ângulo reto, a Pampulha explodia em curvas. Com efeito, vai ficar na história uma das frases de Niemeyer que resumem esse pensamento: “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual”. (GW)