Serra da Saudade – Sem hospitais, pouca estrutura sanitária e orçamento modesto, Serra da Saudade, a menor cidade do Brasil, encravada entre as montanhas de Minas Gerais, surpreende com seu aprendizado sobre a morte trazida pelo novo coronavírus e as transformações da vida após a chegada da COVID-19.
Num clima quase familiar, os 776 habitantes do município enfrentaram o vírus com a firmeza de uma clausura para evitar as contaminações, a troca on-line de informações sobre o avanço da infecção e os conterrâneos que apresentavam sintomas, além da crença imbatível na proteção das vacinas.
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Todos os maiores de 12 anos (709 pessoas) se imunizaram com a primeira dose e 94% contam com o esquema vacinal completo, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde. Dentro da margem de erro, apenas três moradores rejeitaram a imunização. Nem por isso o alarme para a COVID-19 foi desligado, como observou o Estado de Minas em visita à cidade.
Por meio de um único grupo no WhatsApp, que reúne ao menos um representante de cada família, é feito o monitoramento da doença, relata a contadora da prefeitura, Maria Auxiliadora Menezes, responsável pela iniciativa de usar a ferramenta digital de forma coletiva.
“Criei o grupo logo quando os casos de COVID-19 chegaram às cidades próximas de Serra da Saudade, como Estrela do Indaiá e Dores do Indaiá. Adicionei, primeiro, os funcionários públicos de quem tinha o telefone e cadastrei todos como administradores. Daí, eles foram incluindo outras pessoas. Praticamente toda família tem um representante lá”, diz Auxiliadora.
No espaço virtual, os participantes compartilham informações oficiais sobre a COVID-19, notícias, além de praticar uma espécie de “fofoca do bem”. “A cidade é pequena, todo mundo dá notícia de tudo. Espirrou, acabou, todos ficam sabendo! Agora na pandemia, literalmente! Então, quando as pessoas viam vizinhos com sintomas gripais, logo comentavam no grupo e questionavam por que não estavam em isolamento. A mesma coisa quando eventualmente furavam a quarentena ou recebiam visitas de fora da cidade.”
Para reforçar o monitoramento de visitantes, a prefeitura manteve barreiras sanitárias nas entradas da cidade por mais de um ano. Os locais foram equipados com termômetros para aferição de temperatura e álcool em gel. Ainda segundo Auxiliadora Menezes, o grupo de WhatsApp também foi uma maneira de proteger a população das notícias falsas sobre a pandemia e a vacinação.
“Levou um tempo até que caísse a ficha das pessoas de que a cidade não estava imune à doença por ser muito pequena. O grupo, nesse sentido, funcionou como canal oficial de informações sobre a avanço da pandemia”, explica a servidora.
Vacinado com as três doses da vacina contra a COVID-19, Osmar Pinto Moreira, de 71 anos, lamenta a decisão dos poucos e conhecidos conterrâneos negacionistas de não se vacinarem. Ele é viúvo de Maura Maria Rocha Moreira, que morreu em 28 de janeiro de 2021, em razão de complicações decorrentes da doença respiratória.
A morte dela não consta nos boletins epidemiológicos do estado como notificação em Serra da Saudade, pois foi registrada em Bom Despacho, a 109 quilômetros do município. É para onde os pacientes graves, especialmente, aqueles que demandam internações em centro de terapia intensiva, são encaminhados.
“Perdi minha companheira de 50 anos”, diz seu Osmar inconformado, diante do túmulo da mulher, enterrada no cemitério muni- cipal. “A gente nunca acha que vai acontecer com a gente, mas essa doença é maligna. As pessoas não deveriam facilitar, porque ela mata mesmo. Se tivesse vacina quando minha mulher ficou doente, talvez ela estivesse viva”, emociona-se o ex-trabalhador rural, que vive sozinho. Pai de seis filhos e avô de seis netos, ele tem a companhia eventual de familiares.
A maneira como dona Maura foi infectada pelo vírus ainda é um mistério para seu Osmar. “Ela ia só ao supermercado, né? Nunca foi de sair. Daí ela pegou e não resistiu, pois era cheia de problemas de saúde.”
'Sangue de Jesus'
O negacionismo, porém, está longe de representar ameaça às recomendações da ciência. O Centro de Saúde de Serra da Saudade registra três moradores que se recusam a receber a vacina contra o coronavírus, a despeito dos esforços de persuasão dos profissionais da saúde municipal. De acordo com a enfermeira Ana Laura Andrade, são dois idosos e uma criança, cujos pais não permitiram que recebesse a injeção. “Ligamos inúmeras vezes, fomos à casa deles para tentar aplicar, falamos com eles semanalmente, mas não teve jeito. Não tomaram nenhuma dose.”
A reportagem do EM encontrou algumas pessoas que recusam a vacina. Uma deles é o aposentado e artesão Luiz Amaro Ricardo, de 53, que inclusive faz parte de um grupo de alto risco: ele é cadeirante, hipertenso e diabético.
Com simpatia, ele recebe a equipe do EM como bom anfitrião mineiro. “Podem entrar, fiquem à vontade”, convida. Amaro Ricardo é membro da Igreja Evangélica Congregação Cristã do Brasil. Questionado sobre o motivo da resistência à imunização, ele logo se defende. “Olha, isso não tem nada a ver com a minha igreja, ninguém lá fala nada contra a vacina. Inclusive, os irmãos todos tomaram. Só eu mesmo que não quis. Já tive trombose, o que me fez perder as duas pernas. Não quero mais medicamentos do que eu já tomo. Já levei agulhadas o bastante na vida. Agora, chega”, desabafou.
O medo de adoecer não parece estar entre as preocupações dele. “Quem protege é o sangue de Jesus. É só Deus mesmo para nos guardar.” O outro morador resistente à campanha é o líder da igreja dele, conhecido como Amaral. Ele não quis falar com a reportagem. A família que optou por não vacinar a criança não estava em casa.
Aldeia mineira
Dormir com portas destrancadas e janelas abertas é um dos privilégios dos moradores de Serra da Saudade, no Centro-Oeste de Minas Gerais, onde o controle da pandemia levou a número muito baixo de contaminados e a um óbito provocado pela doença respiratória. O único posto policial do município não registra homicídios e outros crimes graves há quase cinco décadas.
Tudo se conta nos dedos no município e os habitantes podem manter o prazer de se cumprimentar pelos nomes próprios. São dois bairros, 14 ruas, sete bares, quatro praças, duas mercearias, três igrejas, um centro de saúde, uma agência dos correios, um posto policial, uma academia, 55 funcionários públicos efetivos e 776 habitantes acomodados em 353 casas. Ao todo, são 268 famílias, segundo os dados da prefeitura municipal, facilmente recitados pela maioria dos habitantes.
À reportagem do Estado de Minas, Maurício de Oliveira Silva, de 23 anos, contou que a cidade tem ruas praticamente vazias a qualquer hora do dia ou da noite. “Aqui nunca foi muito movimentado, mas, depois da pandemia, as pessoas praticamente entraram em clausura.” Acostumado a se divertir nas festas típicas da localidade, como a Festa do Peão e a Festa do Rosário, canceladas desde o início da epidemia, ele assume um tom entediado.
“Não tem muito o que fazer por aqui, né? Já não tinha. Agora, temos que sair da cidade com mais frequência para encontrar alguma opção de lazer. Mesmo assim, tomando muito cuidado e sem abusar”, afirma Maurício Oliveira. O isolamento levado a sério e o monitoramento da doença e de quem se infectava mostrou seus reflexos no comércio local, que também deixou a zona de conforto para reduzir os impactos da necessária quarentena para conter a contaminação pelo coronavírus.
Ponto mais popular entre os grisalhos da cidade, o chamado Bar do Vaca ficou pouco mais de seis meses fechado por força de decreto municipal, que suspendeu as atividades dos sete bares de Serra da Saudade. Reaberto recentemente, o estabelecimento comandado por Raimundo Fernando Silva, de 62, oferece bons tragos, partidas de sinuca e tradicionais tira-gostos.
“Voltei, mas agora estou devendo até os cabelos da cabeça, né?”, brinca o empreendedor. “O bar complementa minha renda. Só com a aposentadoria não dá para viver", reclamou, enquanto cortava bambu na forma de espetinhos de madeira que usa para assar carne de churrasco. Durante o período de fechamento do bar, ele adotou sistema de delivery em Serra da Saudade.
“Eles (os clientes) se sentavam na praça, ao ar livre, e eu levava as bebidas e o tira-gosto para eles. De tudo, eu não fiquei parado”, relembra. Na única loja de roupas, o fluxo de consumidores também causou prejuízo. A vendedora Patrícia Soares diz que o faturamento caiu 50% nos últimos dois anos. “Ainda não vejo muitos sinais de recuperação.”
Na maior mercearia de Serra da Saudade, a proprietária, Lenice Aparecida Ricardo, descreve situação semelhante. “Apesar de continuarmos funcionando normalmente na pandemia, o movimento caiu pela metade. Está melhorando, mas vai bem devagar”, afirma.
Orçamento abalado
O caixa municipal não poderia deixar de sentir o baque. Para este ano, a Câmara Municipal de Serra da Saudade aprovou orçamento no valor de R$ 18,72 milhões. A redução, segundo a prefeitura, foi de 12% nos últimos dois anos. A principal fonte de receita do município é o repasse da cota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), tributo recolhido pelo estado, seguido da parcela a que tem direito do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), compartilhado com base no número de habitantes e distribuído pela União.
Após a pandemia, a arrecadação também diminuiu, destaca a contadora do município, Maria Auxiliadora Menezes. “Com isso, o valor repassado diminuiu. Por sorte, houve um maior aporte federal para a saúde nos últimos dois anos para o combate à COVID-19. Em 2020 e 2021, recebemos R$ 300 mil extras.” À saúde municipal, área a que se dedica a enfermeira Ana Laura Andrade, o orçamento de 2022 reservou verba de R$ 4.043.000,90.
Responsável pela criação do grupo de WhatsApp que reúne moradores de todas as famílias de Serra da Saudade, Auxiliadora Menezes observa que, no auge da pandemia, decisão fundamental foi evitar ao máximo atrair gente de fora da cidade.
“Tínhamos medo de que as pessoas viessem para cá se isolar do movimento das cidades mai- ores. Isso seria uma tragédia para nós. Não temos estrutura nenhuma para lidar com superlotação”, justifica.