Na manhã de 3 de janeiro, uma segunda-feira, o jornalista Rafael Silva começou mais um dia de plantão de início de ano na TV Alterosa, afiliada do SBT em Minas Gerais.
Horas mais tarde, apresentou o telejornal do horário do almoço. Quando estava perto do fim do noticiário, por volta das 11h55, ele sofreu um mal súbito ao vivo.
O jornalista, de 36 anos, não se lembra de nada que aconteceu naquela segunda ou nos dois dias anteriores, nos quais ele também havia trabalhado. O que ele sabe sobre esse período foi relatado por familiares e amigos.
Um fato esquecido por Rafael foi conferido inúmeras vezes pelo próprio jornalista na tela do celular: o momento em que desmaia diante das câmeras. Nem mesmo o vídeo da situação fez com que ele se recorde de algo daquele dia.
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O temor era como ele reagiria ao descobrir que o mal súbito que enfrentou havia se tornado argumento para o movimento antivacina como um suposto exemplo de consequências do imunizante contra a covid-19. Isso porque Rafael havia tomado a terceira dose dias antes de passar mal diante das câmeras.
Mesmo sem qualquer respaldo, os grupos antivacina começaram a propagar o caso do jornalista como uma suposta reação ao imunizante contra a covid-19, principal forma de combater a pandemia e evitar casos graves da doença.
Quando teve acesso à internet, Rafael leu muitas mensagens positivas, nas quais desejavam que ele melhorasse logo. No entanto, havia também muitos comentários de ódio. "Disseram coisas do tipo 'você deveria ter morrido para servir de exemplo", conta o jornalista à BBC News Brasil.
A equipe médica que atendeu Rafael afirma que não há qualquer indício de relação entre o problema de saúde que ele teve enquanto apresentava o noticiário e a vacina contra a covid-19.
O mal súbito ao vivo
No início da manhã de 3 de janeiro, quem viu Rafael pessoalmente ou por meio do programa da TV Alterosa, exibido em Varginha (MG), não percebeu qualquer indício do que aconteceria horas mais tarde.
"Eu estava bem, não tinha nenhum incômodo ou algo assim. Eu apresentei uma hora de jornal e ninguém identificou nada de anormal", diz o jornalista.
Rafael considera que estava no momento certo e na hora certa quando enfrentou o problema cardíaco. "Se isso ocorresse cinco horas antes e eu estivesse em casa, onde moro sozinho, eu estaria morto", afirma.
O desmaio ao vivo é definido por Rafael como algo semelhante a como se ele tivesse sido "desligado da tomada". Quando o jornalista caiu, membros da emissora deram início a uma corrida pela vida dele. O telespectador que acompanhava o noticiário logo passou a assistir a um telejornal da TV Alterosa em outra cidade mineira.
Segundo relatos na emissora, imediatamente um funcionário fez uma massagem cardíaca em Rafael. Ainda conforme os comentários no local, o jornalista chegou a ficar roxo e em alguns momentos não foi possível sentir os batimentos cardíacos dele.
Uma equipe do Corpo de Bombeiros chegou à emissora em poucos minutos. Em seguida, uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) também chegou ao local.
No resumo da ocorrência consta que os batimentos cardíacos de Rafael eram instáveis. Os profissionais de saúde que atenderam o caso disseram que o paciente sofreu cerca de cinco paradas cardíacas e foi reanimado após cada uma delas.
"No meu atestado diz que tive morte súbita de origem cardíaca com ressuscitação bem-sucedida. Precisaram me intubar ainda na ambulância, em um momento em que meus batimentos deram uma rápida estabilizada", relata o jornalista.
Ele continuou intubado no Centro de Terapia Intensiva (CTI) de um hospital de Varginha até a manhã do dia seguinte. O jornalista passou por exames iniciais e foi encaminhado para um hospital particular em Belo Horizonte (MG).
O cardiologista Henrique Barroso Moreira acompanhou o caso do jornalista no Instituto Orizonti, local em que Rafael foi internado na capital mineira. O médico detalha que o paciente não tinha histórico de problemas cardíacos até então e passou por uma série de avaliações.
Os exames, diz o cardiologista, apontaram que o coração do jornalista continuou preservado e com as funções normais. Foi comprovado, por exemplo, que ele não sofreu um infarto (ataque no qual o coração tem o seu fluxo sanguíneo bloqueado).
"A gente não conseguiu achar uma causa definida para essa arritmia que poderia ter provocado a morte do Rafael", explica o médico.
Diante da falta de respostas, a equipe médica encaminhou os exames do paciente para um laboratório nos Estados Unidos, onde passará por um estudo genético. "A gente aguarda esse resultado para ver se ele tem alguma cardiopatia ou doença que pode ter sido responsável (pelo mal súbito)", declara Moreira.
O médico afirma que Rafael só conseguiu sobreviver por ter recebido atendimento rápido. "Em termos de fatalidade, a cada minuto a chance de mortalidade aumenta se o paciente não for atendido. Pacientes que passam por isso e chegam vivos ao hospital, como no caso do Rafael, representam algo em torno de 4% a 5% desses casos", afirma o especialista.
"Além disso, uma arritmia cardíaca como essa que ele teve pode causar danos neurológicos em poucos minutos e ele não teve nenhum", acrescenta o cardiologista.
No hospital, Rafael recebeu um implante CDI (cardioversor desfibrilador implantável), que tem o objetivo de monitorar possíveis arritmias e tratá-las por meio de estímulos elétricos. O material fará parte da vida dele para evitar novos ataques cardíacos.
Argumento para negacionistas
Enquanto lutava para se recuperar, Rafael não imaginava que o momento difícil que enfrentava se tornaria argumento para membros do movimento antivacina.
Ao olhar o celular pela primeira vez, ele notou que ganhou cerca de 10 mil seguidores em seu perfil no Instagram. Uma foto publicada em 28 de dezembro chamou a atenção dele: a imagem na qual comemora a dose de reforço da Pfizer contra a covid-19. Quando foi postado, o registro tinha poucas dezenas de comentários. Depois do mal súbito ao vivo, a publicação chegou a quase 3 mil comentários.
Sem nenhum respaldo, inúmeros perfis passaram a propagar o vídeo em que Rafael passa mal diante das câmeras como se fosse uma situação causada pela vacina.
"Mais um caso de mal súbito em rapaz jovem sem histórico de problema de saúde", escreveu a deputada federal Carla Zambelli no Twitter, em uma publicação na qual compartilhou o vídeo.
Assim como a parlamentar, outros políticos e pessoas declaradamente contra a vacinação compartilharam o caso de Rafael como culpa do imunizante da Pfizer. Muitos desses perfis pertencem a bolsonaristas e fazem coro aos discursos em que o presidente Jair Bolsonaro questiona, sem qualquer comprovação, os riscos e a eficácia dos imunizantes contra a covid-19.
As publicações associando o problema de saúde do jornalista à vacina não se restringiram ao Brasil. Há postagens de perfis antivacina em outros idiomas que também levantam a mesma suspeita sem qualquer respaldo.
Rafael lamenta esse tipo de repercussão. "Achei muito maldoso terem julgado sem saber o que realmente aconteceu. Achei maldade comigo e com a minha família", afirma.
Segundo o cardiologista Henrique Barroso Moreira, não é possível associar o problema de saúde de Rafael à vacina. "Os exames não evidenciaram nenhuma alteração estrutural e nenhum sinal de processo inflamatório. Então, não há qualquer alteração que pudesse relacionar isso a um possível efeito colateral da vacina. É uma hipótese totalmente afastada", declara.
"As redes sociais propagam todos os tipos de informação. Nós, médicos, temos muita cautela e sempre precisamos ter evidências para que algo possa ser considerado verdade", acrescenta o médico.
Uma das suspeitas é de que o problema cardíaco de Rafael esteja relacionado a questões genéticas. "Eu já perdi vários parentes por morte súbita. Isso reforça que eu tenho histórico familiar e ninguém até hoje sabe exatamente o motivo disso", diz o jornalista.
"Por enquanto, é preciso aguardar o estudo do caso dele (nos Estados Unidos)", pontua o cardiologista Henrique Barroso. Ainda não há data para a conclusão dessa análise.
Após o implante do CDI, Rafael passou por um período de recuperação e aos poucos tem voltado à vida de antes. "Não estou limitado a nada. Em breve poderei voltar a dirigir e até fazer musculação. Só não poderei fazer atividades físicas de impacto, como futebol ou vôlei, por causa do aparelho no coração", explica.
Na segunda-feira (07/2), ele retornou ao trabalho. O jornalista, que hoje se define como um sobrevivente, diz que após o problema de saúde passou a ter o objetivo de aproveitar melhor cada momento da vida e ter menos pressa.
Nas redes sociais, ele ainda recebe diversas mensagens que associam o que ele passou ao imunizante contra a covid-19. Rafael, que evita responder esses comentários, assegura: sempre foi e continuará sendo um defensor das vacinas.
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