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Estado de Minas SUL DE MINAS

Homem mais velho de Inconfidentes contou sua história antes de morrer

José Domiciano foi o 1º vacinado contra COVID na cidade e faleceu de causas naturais, aos 103 anos; ele chegou a se preparar para combater na 2ª Guerra Mundial


15/02/2022 17:02 - atualizado 15/02/2022 17:48

José Domiciano morreu aos 103 anos
José Domiciano nasceu em 27 de novembro de 1918, em Bueno Brandão (foto: Arquivo Pessoal)
Considerado o homem mais velho de Inconfidentes, no Sul de Minas, José Domiciano Vicente morreu de causas naturais, aos 103 anos, no último dia 10 de fevereiro.

José Domiciano nasceu em 27 de novembro de 1918, no bairro Boa Vista dos Vicentes, em Bueno Brandão. Atualmente, o agricultor morava no Bairro Pinhalzinho dos Góes, em Inconfidentes. “Parece que nem tenho esta idade”, brincava o centenário, especialmente quando era convidado a contar a história de sua vida, lembrou o neto, o jornalista José Valmei Bueno.

Em setembro de 2021, José Valmei teve a oportunidade de fazer uma entrevista com o avô, em que ele, com toda a lucidez, contou momentos marcantes da sua vida.  

José Domiciano acompanhou importantes fatos da história. Aos 25 anos, em 1943, foi chamado para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB), como integrante do 16º Regimento de Infantaria, de Natal, no Rio Grande do Norte. Lá, deu início à preparação para os combates da 2ª Guerra Mundial, especialmente para a batalha de Monte Castelo, na Itália.

“Quando saímos de trem da Estação Ferroviária de Ouro Fino, as mães ficaram olhando os filhos partir, desesperadas”, contou o avô na entrevista ao neto.
 
Depois de passar um tempo em Juiz de Fora (MG), José Domiciano e os companheiros combatentes embarcaram no navio cargueiro “Raul Soares”, no Rio de Janeiro, rumo a Natal. No meio das sacarias de arroz, de feijão e de milho iam os soldados. O assoalho do navio servia de cama. “Para dormir, esticava a coberta no chão. Esta era nossa cama”, contou.

“Por 11 dias, o navio rasgou o mar, rumo ao Extremo Leste do Brasil. A embarcação parava em algumas cidades na beira do mar. Em Salvador, descemos do navio, subimos o elevador Lacerda e fomos conhecer a cidade”, recordou, enfatizando a precariedade dos poucos momentos de lazer que viveram.
 
“Ficamos em casas muito sujas”, comentou. “Mas valeu a pena conhecer algumas das 310 igrejas históricas da capital baiana”, comemorou, com memória clara dos fatos ocorridos há quase 78 anos.
 
Na rotina da viagem pela costa brasileira, os soldados passavam o dia dormindo. “Não tinha o que fazer. A gente só via água”, completou. Por essa informação, se interpreta o quanto improvisada foi a preparação da FEB para a batalha que se avizinhava. “A comida não era boa”, relatou dizendo o cardápio: carne seca, arroz, batata e feijão sem ser 'catado'.
 
Dias antes do embargue para a guerra, quando já estava no litoral do Rio Grande do Norte, foi liberado pelo Exército Brasileiro por ser “arrimo de família”.
 
Imagem de quando foi e voltou à pé ao Santuário Nacional de Aparecida-SP (José Domiciano é o segundo da esquerda para a direita)
Imagem de quando foi e voltou à pé ao Santuário Nacional de Aparecida-SP (José Domiciano é o segundo da esquerda para a direita) (foto: Arquivo Pessoal)
 

Devoção à Nossa Senhora

 
Como homem religioso, a liberação do Exército foi interpretada por ele como um grande milagre de Nossa Senhora. “Foi ela que me livrou da guerra”, disse.

Viagens de navio e de trem marcaram o retorno dos destacamentos militares a Bueno Brandão. Ao desembarcar na antiga estação ferroviária de Ouro Fino, sua fé na Virgem Maria o fez ir até a igreja de Nossa Senhora da Piedade, em Crisólia, a pé.
 
“Saí de Natal com a decisão de ir primeiro visitar Nossa Senhora da Piedade, antes de voltar para a casa de meu pai”, disse José Domiciano. Fez suas orações na igreja do distrito e retornou para pernoitar em Ouro Fino.
 
Quando amanheceu, era hora de dar a boa notícia para os pais. Partiu, novamente a pé, em direção à casa do “Dinho” e da “Dinha”, como ele chamava seus pais. Era entardecer quando avistou a casinha da família.
 
“Bati na porta! Quando meu pai abriu, caiu no choro”, disse, emocionado. “É o José quem está voltando”, contou ter ouvido sua mãe dizer ao longe, antes de cobri-lo de abraços.
 

Ida e volta a pé a Aparecida

 
Um outro momento importante de sua vida foi uma grande façanha de fé. Em gratidão pelo retorno dos treinamentos para a guerra, ele decidiu ir e voltar a pé a Aparecida.
 
“Quando lá cheguei, contornei a Basílica Velha ajoelhado no chão em agradecimento por essa grande graça”, relatou com voz firme. Ele foi acompanhado por amigos e parentes. Os cavalos levaram as malas.“Eu via meus companheiros indo a cavalo. Cansado, dava vontade de montar. Mas me mantive fiel ao cumprimento de minha promessa. Fui e voltei a pé”, relembrou.

Uma paixão

Um de seus maiores desejos, enquanto estava no Exército, era reencontrar a namorada, Isolina Veronez, moradora de um sítio entre os bairros Pinhalzinho dos Góes e Cambuizinho.

Isolina era filha dos imigrantes italianos Angelo Veronez e Bernite Brajão. Com a mulher de sua vida, ele se comunicava por meios de cartas. As expressões “contrariado por estar um pouquinho longe” e “de longe também se ama” podem ser lidas no papel envelhecido que ele guardava até então, em um antigo baú de madeira.

Com ela se casou em 1945 e formou família. Isolina deixou de morar no antigo casarão construído pelo pai e foi residir com o esposo no bairro Boa Vista dos Vicentes e, mais tarde, na Boa Vista dos Pedros.

Lá, os dois viveram por cerca de 17 anos e, com o falecimento do senhor Angelo Veronez, o casal foi morar perto da “nona”, nas proximidades do antigo casarão. Até a sua morte José Domiciano viveu nesta casa, sob os pés de uma colina, onde corre uma refrescante nascente d’água, sob a sombra de um exuberante bambuzeiro.
 
José Domiciano tinha 103 anos e morreu de causas naturais
José Domiciano tinha 103 anos e morreu de causas naturais (foto: Arquivo Pessoal)
Ele recebia o cuidado das filhas, filho e netos e nunca estava sozinho. A família organizou um sistema de revezamento para garantir companhia a ele. As filhas cozinhavam, limpavam a casa e davam medicação. O filho e netos davam banho e cuidavam da higiene. “A gente pode cuidar, então vamos cuidar”, comentou a filha mais velha, Terezinha Domiciano, na época da enrevista.
 
Lúcido e zeloso pela ciência dos fatos ao seu redor, José Domiciano cultivava o senso de realidade e sabia se posicionar sobre os diferentes assuntos da sociedade e de sua vida pessoal. A rotina de orações, de conversas com a família e de busca de informações pela TV preenchia seu tempo, o mesmo tempo que lhe permitiu superar a barreira de um século de história.

Prefeitura lamentou a perda


Em nota publicada nas redes sociais, a Prefeitura Municipal prestou homenagem a José Domiciano e lamentou a perda.
 
“A prefeitura municipal de Inconfidentes presta homenagem à memória do senhor José Domiciano Vicente. Homem mais idoso do município, participou de importantes fatos da história, como a integração à Força Expedicionária Brasileira (FEB), em preparação para a Segunda Guerra Mundial. Tendo sido dispensado da Batalha de Monte Carmelo, sua fé o levou a ir e voltar a pé até a Basílica de Aparecida (SP). Na Paróquia de São Geraldo Magela, ele participou por mais de 40 anos da tradicional Irmandade do Santíssimo Sacramento. José Domiciano deixa um legado de lucidez e de fé. À família e amigos, manifestamos nossa solidariedade”, escreveu a Prefeitura.
 
O idoso foi sepultado no dia 11, no cemitério Municipal de Inconfidentes. 

(Iago Almeida / especial ao EM, com entrevista concedida por José Domiciano a José Valmei)


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