Batalha, bicho, festa do 12, inauguração dos quadrinhos e rock são linguagens próprias criadas dentro dos casarões históricos de Ouro Preto, em Minas Gerais, e mostram um dos traços da cultura e do modo de vida dos estudantes das repúblicas da Universidade Federal da cidade (UFOP). Além da comunicação, a vida dos estudantes na construção das repúblicas estudantis passaram por lutas de resistência e que agora poderá ter o reconhecimento público de Patrimônio Imaterial de Ouro Preto. O debate ainda está em andamento e poderá causar um gás aos alunos com a volta presencial das aulas e também polêmicas.
De acordo com o historiador e autor da proposta, Otávio Luiz Machado, o reconhecimento pretende garantir as tradições e a memória da vida republicana que em mais de 100 anos leva o nome de Ouro preto para o mundo. Para isso, foi encaminhado um pedido formal para a prefeitura de Ouro Preto no final de janeiro que deverá passar por uma análise técnica da Secretaria de Patrimônio.
Aprovado, será criado o parecer técnico a respeito do pedido e o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural e Natural de Ouro Preto (Compatri) vai analisar o pedido acompanhado do parecer. Após, será a abertura do processo que dura cerca de dois anos. O pedido também será encaminhado para o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico – IEPHA.
“Esperamos que o pedido entre para a reunião do Compatri antes da volta às aulas marcadas para o dia 15 de março e que com a abertura desse processo, a vida nas repúblicas voltem com um ritmo de esperança no sentido de fortalecer os laços dos ex-alunos e motivar a vinda de novos alunos e moradores para cidade”.
De acordo com o presidente do Compatri, Carlos Magno Paiva, ao procurar a secretaria para saber sobre o andamento da análise técnica foi informado que existe uma demanda técnica represada de pedidos de tombamento e registros em Ouro Preto, mas que até a reunião de abril, ele acredita que o processo entrará em discussão.
Relação centenária
O historiador conta que atualmente Ouro Preto tem 70 repúblicas estudantis federais e que a história de luta pelo direito à moradia estudantil tem registros desde o final do século 19, quando a capital de Minas Gerais foi transferida para Belo Horizonte. Essa transferência para a nova capital despovoou a cidade de Ouro Preto e deixou vários casarões abandonados e a imagem de que Ouro Preto era sinônimo de atraso.
“Os imóveis disponíveis em Ouro Preto tornaram-se fartos. Muitas destas casas foram cedidas ou ocupadas pelos estudantes, que a mantinham. Parece-nos que daí acontece sua fama de cidade ideal para se estudar. Quanto às casas cedidas, as famílias a liberavam porque era melhor deixá-los nas mãos dos estudantes que iriam cuidar do que deixar desabá-las ou ser ocupadas por estranhos”.
Ainda na forma de casa de estudantes que dividem as despesas e vivências, o historiador conta que Ouro Preto atraía muitos estudantes das regiões longínquas do Brasil, que buscavam ao mesmo tempo uma boa formação e um local com boas condições de estudar.
“Foi aí que começou a surgir o sentimento de pertencimento e a construção da memória e luta pelas moradias na cidade. Com a criação da UFOP, em 1969, a luta nos primeiros anos foi para consolidar as casas como repúblicas autônomas em tempos de recrudescimento do regime militar”.
O historiador conta que muitas repúblicas ao longo dos últimos 70 anos tiveram os imóveis federalizados, antes do regime militar como o caso da república Adega, em 1963 e a Baviera em 1958. Outras, como a República Aquarius foi adquirida em 1968 e reformada logo em seguida para se tornar uma república de professores da Escola de Minas. Em 1969, em plena reforma, foi ocupada por estudantes que reivindicavam moradia, e em 1970, foi cedida oficialmente a eles.
O ex-morador da república Aquarius conta que as experiências acumuladas ao longo dos anos, o modo de viver em coletivo deram a esses espaços costumes passados de geração em geração, desde a batalha, que é quando o aluno fica por três meses na república lutando para conseguir a vaga, depois de aceito como membro da família e ganha um apelido, vira bicho dentro do processo de hierarquia, até se tornar decano e ver seu quadro sendo inaugurado na festa do doze.
Mais do que reconhecer essas tradições, o autor da proposta acredita que caso a vida em república seja reconhecida um dos ganhos será mais divulgação para o turismo na cidade.
Tema polêmico
No decorrer dos anos, a vida republicana marcada por lutas por espaço e autonomia foi sendo construída de costumes que vão no aspecto de abrigar e ajudar o outro a ter o seu espaço, como acolher quem está em seu entorno.
Nas memórias do presidente do Compatri, Carlos Magno, estão as histórias de sua avó, dona Brígida, que contava em vida, a relação que tinha com os moradores das repúblicas no início do século 20.
O ouro-pretano conta que a família dele foi uma das poucas que ficaram na cidade quando Belo Horizonte se tornou a capital e houve o esvaziamento na cidade histórica.
“Na minha rua tem muitas repúblicas e a convivência sempre foi pacífica com todos os moradores da rua. Lembro da minha avó contar que toda a feira de quinta-feira uma pessoa da república ajudava ela a trazer as compras. Além da história de minha avó existe um histórico bonito da relação da comunidade com as repúblicas e acho uma pena os assuntos ruins permanecerem no imaginário”.
Os assuntos ruins que o presidente do Compatri se refere pode causar muita polêmica no processo de reconhecimento do modo de viver republicano como patrimônio. Segundo Magno, Ouro Preto tem um histórico grande de conflitos entre as repúblicas e a comunidade cristalizado na memória popular, seja pela poluição sonora, pelos trotes, pelo assédio sexual e situações de mortes por coma alcoólico.
“Esses episódios não resumem a vida estudantil, são casos isolados que acabam ganhando um protagonismo muito grande porque são notícias muito fortes e por isso ficam no imaginário popular de Ouro Preto. Particularmente, não consigo imaginar a identidade cultural de Ouro Preto sem a vida estudantil em república”afirma.
O presidente do Compatri ressalta que o modo de viver republicano, as tradições que foram construídas em conjunto com a nova fase da cidade são únicos no mundo todo. A questão que coloca o presidente do Compatri em alerta é sobre a análise técnica dos servidores da Secretaria de Patrimônio que deve ser da forma imparcial.
“Quando o parecer chegar ao Compatri vou me empenhar para o processo de reconhecimento, mas o Compatri é formado por pessoas simples da cidade e não sei dizer qual é o sentimento dessas pessoas em relação às Repúblicas”.
Apoio
Em busca de apoio, o proponente, Otávio Machado, tem buscado apoio na cidade como a elaboração de um abaixo-assinado. Otávio explica que outras ações também têm sido realizadas.
"A proposta vem sendo fortalecida com a coleta de informações adicionais, entrevistas com várias pessoas com larga experiência na questão da história de Ouro Preto e a coleta de mais assinaturas e apoios com a igreja e outras entidades”.
O presidente da Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto (Refop), Caio Barbosa, ressalta que a autogestão e a autonomia das repúblicas para a tomada de suas decisões dão legitimidade para que elas sejam reconhecidas como uma das fontes de preservação do patrimônio material. “Agora queremos apenas um resguardo para que seja mantido por mais tempo a nossa tradição caso algum dia venha ocorrer algo”.