“Eu não quero ficar, quero ir embora!”, diz Gael, de 6 anos, entre lágrimas e soluços, na porta da escola em que estuda. A cena vem se repetindo desde 8 de fevereiro, quando crianças de 5 a 11 anos retornaram às aulas presenciais em Belo Horizonte por força de liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. “E se eu ficar com você um pouquinho lá dentro?”, negocia a mãe, Helena Lopes, de 38. Ainda que ressabiado, ele acaba cedendo.
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Gael nem sempre teve essa insegurança. Aos 3 anos, quando começou a vida escolar, não costumava demonstrar resistência. “Mal me dava tchau quando entrava no maternal, de tão adaptado. Agora, fica tão nervoso, que às vezes faz vômito. Tinha melhorado antes das férias, mas voltou a ficar muito sensível. A pandemia transformou meu filho de um jeito que eu jamais imaginaria”, conta Helena.
Com um tom de autojulgamento característico das mães, Helena tenta refletir sobre o que aconteceu com o menino. “Ele se deu relativamente bem com as atividades on-line, embora sentisse muita falta dos coleguinhas. Isso me deixou um pouco mais tranquila. Esse talvez tenha sido o erro. Acho que ele se apegou muito a essa rotina. Agora, sente o baque da mudança. Parece que está com medo de se relacionar com as pessoas”, relata a bancária.
Mãe dos gêmeos Lucas e Gabriel, de 7, Naiara Queiroz, de 44, também sente que as habilidades sociais dos meninos foram afetadas. Principalmente no caso de Gabriel, que lida com o autismo, condição que, por si só, costuma vir acompanhada de desafios de socialização.
“Especialmente para o Gabriel, o retorno tem sido mais complicado. Ele até vai sem resistência para as aulas presenciais, mas está um pouco agressivo, comportamento que nunca tinha apresentado antes da pandemia, e com dificuldade de expressar emoções. Sinto também que as necessidades de suporte dele aumentaram um pouco. Antes do isolamento, ele estava mais independente. Já o Lucas está muito tímido, fica com medo de chegar perto dos amigos para brincar, e está mais choroso”, diz a arquiteta.
Já para Luísa Magalhães, de 32, as dificuldades de socialização do filho Gabriel L., de 10, se traduzem em um comportamento demasiadamente adulto. Segundo ela, o garoto praticamente não conviveu com crianças durante o período de suspensão das aulas presenciais, o que faz com que ele reproduza modos “de gente grande”.
“Exemplo disso é que ele anda sarcástico e tem se comportado assim com os meninos da idade dele. Sarcasmo é coisa de adulto. Ele aprendeu esse comportamento convivendo com adultos. Mas as crianças não entendem isso, é uma brincadeira, digamos, um tanto sofisticada. As crianças não entendem quando alguém está implicando com elas de brincadeira. O adulto entra no jogo, responde à altura, devolve a piada. A criança não, ela chora e se ofende. E o Gabriel fica sem entender por quê.”, relata a assistente de licitações.
Luísa percebe que a mudança tem provocado o afastamento de outras crianças. “Com isso, ele perde uma porção de coisas, como uma confidência infantil, as travessuras com outros amiguinhos. Com o retorno à escola, ele tem melhorado. Acredito que ele vai superar isso naturalmente, dentro do próprio ambiente escolar. Mas estou atenta e, se for necessário, vou procurar ajuda especializada”, planeja.
Ela também é mãe de Júlia, de 5, outra pequena que não saiu ilesa da falta de contato com a escola. A garota, que enfrenta problemas de audição e consequente atraso na fala, vinha apresentando significativa evolução desde que entrou na escola, aos 4 anos. Após o isolamento, a percepção familiar é de que ficou subestimulada e regrediu.
“Antes, ela tinha muita paciência para se fazer entender para os coleguinhas. Agora, não. Está desestimulada. Ela fala uma vez e, quando a pessoa não entende, ela larga pra lá. Desistiu de se comunicar. Vejo isso como consequência direta do longo período de afastamento da escola, que é o meio onde as interações sociais são mais estimuladas”, reflete a mãe.
Pouca experiência para tanta mudança
A psicóloga Maria Clara Rodrigues enumera alguns fatores relacionados às sequelas sociais deixadas pela crise sanitária nas crianças. Um deles é a quebra na rotina familiar, fator muito importante para o desenvolvimento infantil. Segundo a especialista, os pequenos tiveram que encarar ao menos duas rupturas desde o início de 2020: a primeira, quando pararam de ir à escola e passaram a ficar em casa. Outra, quase um ano e meio depois, quando voltaram às salas de aula. “Vamos lembrar que um ano e meio é quase um terço da vida de uma criança de 5 anos, por exemplo. É um impacto significativo para elas”, explica a profissional.
Maria Clara pondera que, se até mesmo os adultos têm apresentado poucos recursos emocionais para lidar com algo inédito como a pandemia, as crianças, naturalmente, apresentam mais dificuldades. “Por isso o aumento da dependência dos pais, a sensibilidade aflorada, a regressão e as demonstrações de agressividade em situações de conflito. A criança lida com o mundo com o repertório de que dispõe”, afirma a psicóloga.
O medo, sentimento muito presente no ambiente familiar ao longo da crise deflagrada pela COVID-19, é outro elemento que, para a especialista, afeta a saúde mental do público infantil. Maria Clara destaca que a infância é um período de experimentações, em que a criança está ávida por descobertas e começa a desenvolver a individualidade. O medo provocado pelo coronavírus, por sua vez, traz paralisia, o que faz com que os pequenos, em vez de se lançarem em novas vivências, acabem recorrendo àquilo que já conhecem e traz sensação de segurança, ou seja, o aconchego da família, o colo e o choro.
Superação
A boa notícia é que crianças são geralmente dotadas de ótima capacidade de superação. O processo, contudo, pode levar mais tempo do que a impaciente expectativa adulta gostaria. “É razoável pensar que um problema gestado em um ano e meio pode não se resolver em poucas semanas”, observa a psicopedagoga Flávia Alcântara.
Para lidar com as mudanças no comportamento infantil, a primeira orientação da profissional é que os pais não se sintam culpados. “Ficar se perguntando onde foi que você errou ou o que poderia ter feito melhor não leva a lugar algum. Aceite sua humanidade. De uma forma ou de outra, a pandemia deixou todos sem saber como agir. Dentro desse contexto, cada família fez o que pôde. O melhor é direcionar o foco para o que pode ser feito daqui pra frente”, tranquiliza.
Especialista em neuroeducação, Flávia frisa que o respeito ao tempo e às peculiaridades de cada criança é um dos ingredientes mais importantes da readaptação escolar. “Não deixe seu filho chorar até a exaustão na escola. Não acredite nos gurus que dizem que a ‘dor educa’. Ela faz parte da vida, mas está longe de ser boa professora. Corra também do senso comum que diz que as birras são tentativas de manipulação. A birra é uma manifestação natural de um cérebro imaturo reagindo com suas áreas mais primitivas a situações como medo, angústia, separações bruscas e contrariedades. Na medida do possível, a birra deve ser acolhida até que a criança se acalme”, afirma.
Flávia aconselha que os pais conduzam a reintrodução da rotina escolar da maneira mais respeitosa possível. “Se possível, ao perceber que o pequeno não quer entrar sozinho na sala, entre com ele e fique por algum tempo. E se ele estiver realmente muito estressado, se puder, considere o retorno gradativo. No primeiro dia, vá só até a porta e volte com ele para casa. No segundo, entre na sala. Até que o aluno se sinta mais confortável para ficar. Também vale deixar que ele leve um brinquedo de que gosta muito para a aula. Objetos de apego geram segurança material”, orienta.
Aos educadores, a especialista recomenda mais foco no acolhimento do que nos conteúdos. “Neste momento, o mais importante é estabelecer conexão com as crianças. Reforçar o vínculo afetivo. O principal componente do aprendizado, afinal, é a segurança. Nenhuma criança absorve conteúdos se não se sentir segura e acolhida”, finaliza.
Bandeira vermelha
As alterações comportamentais estão previstas no processo de readaptação escolar e devem ser avaliadas de forma individual. Flávia observa, no entanto, que os familiares devem ficar atentos a atitudes que podem indicar necessidade de apoio multidisciplinar, tais como explosões emocionais sem motivo aparente, grandes variações de peso e apetite, tristeza profunda e apatia.
Nesses casos, vale procurar o pediatra de referência da família, além da psicoterapia individual e familiar. Já problemas relacionados ao atraso de fala podem ser solucionados com ajuda de fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais.
Três reflexões de especialistas sobre a readaptação escolar
- Não existe tempo-padrão para a adaptação escolar. Algumas crianças são mais sensíveis e precisam de mais prazo. Familiares e educadores, no entanto, devem ficar atentos a sinais de que a criança talvez demande ajuda especializada, tais como tristeza profunda, que pode indicar depressão.
- A birra infantil na porta da escola não é considerada uma tentativa de manipulação, mas uma espécie de "curto-circuito" de um cérebro ainda imaturo diante de situações como separação brusca, medo, angústia ou contrariedade. Tentar ensinar lições à criança neste momento é como querer ensinar a nadar alguém que está se afogando. Se possível, acolha ou tente desviar a atenção do pequeno para outra coisa.
- Evite comparar a criança com colegas da escola. Cada criança é única, tem necessidades específicas e não há nada de errado com isso. Concentre-se no acolhimento e no fortalecimento do vínculo com os pequenos. A segurança é um dos principais componentes do desenvolvimento infantil.