Mesmo depois de as águas baixarem – e em alguns casos, subirem novamente –, as marcas estão por todo canto: sacos plásticos agarrados a cercas, montanhas de barro misturadas ao lixo nas margens de rios, garranchos em pilares de pontes e garrafas PET boiando compõem um cenário de desolação em muitas localidades. Para dar conta do “efeito enchente de janeiro”, que retornou este mês, embora de forma menos destruidora, mas associado a outros problemas, como deslizamentos, moradores, armados de vassouras, enxadas e pás, continuam tentando desobstruir a entrada das casas e limpar a sujeira. Em alguns municípios, é preciso esperar a volta do sol para as máquinas retornarem às ruas para retirar a lama que grudou em tudo; outros aproveitam qualquer trégua no aguaceiro para retomar a limpeza.
Em sete municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte – Rio Acima, Raposos, Nova Lima, Sabará e Santa Luzia, na Bacia do Rio das Velhas, além de Betim e Brumadinho, na do Paraopeba –, o rastro de sujeira é superlativo neste período de chuvas fortes: foi recolhida, até agora, uma montanha com mais de 80 mil toneladas de lixo, barro, entulhos diversos e outros materiais carreados pelos cursos d’água durante os temporais. (veja quadro.) O volume encheria, por exemplo, 11,5 mil caminhões de lixo do tipo que circula em Belo Horizonte, que leva, em média, 7 toneladas de resíduos. Completaria ainda 17,5 piscinas olímpicas.
A situação preocupa os gestores municipais quanto à qualidade das águas – o que motivou inclusive reunião com o governo estadual –, além de causar prejuízos, expor ainda mais as mazelas sociais e acender um alerta para problemas ambientais que já se tornaram crônicos. “O rio representa vida, é lugar para os peixes, não para tanta ‘tranqueira’ que jogam nele”, diz o coordenador do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio da Velhas (CBH Rio das Velhas), Marcus Vinícius Polignano.
Segundo Polignano, as cheias dos rios são forças da natureza. Promovem a limpeza dos cursos d’água e devolvem o que é lançado pela mão humana: “Portanto, o que vem do rio é o que vem da gente – em resumo, a lei do retorno da natureza”. Mas é preciso ressaltar que isso decorre “da falta de gestão pública de rejeitos, esgoto e resíduos sólidos”, explica o secretário do CBH Rio das Velhas. Dessa forma, devem ser implementadas ações para impedir mais impactos e criar programas de educação ambiental.
Diante do quadro, que já deixou milhares de desabrigados e desalojados em Minas, Polignano alerta para uma nova agressão: “Há municípios jogando nos rios o barro que ficou nas margens”. Com isso, o resultado será pior diante do estado de assoreamento das bacias hidrográficas.
EFEITO MAIOR Em Raposos, às margens do Rio das Velhas, que esteve 9,15 metros acima do leito normal em janeiro, a prefeitura local já recolheu 30 mil toneladas de barro, o correspondente a aproximadamente 1,5 mil viagens de caminhão para o transporte. “Tivemos grandes enchentes em 1996, 1997 e 2020. Desta vez, atingiu muitas áreas do município, e, no Centro, comerciantes ficaram desanimados com a situação”, diz o secretário municipal de Obras, Liliano Rezende.
O efeito maior das enchentes foi o volume de barro, tanto às margens do Ribeirão da Prata, represado pelo Velhas, como no rio que é afluente do São Francisco. A Prefeitura de Raposos informa que tem levado barro, entulho, lixo e outros resíduos para uma área, em caráter provisório, para posterior transporte para outro local. Na cidade, os danos humanos foram assustadores: 10 mil desalojados e 3 mil desabrigados.
No município de Rio Acima, muitas casas foram invadidas pela lama e há estimativa de que sejam retiradas 400 toneladas, informa a secretária municipal de Meio Ambiente, Zélia Moreira. Ela disse que todo o material recolhido está sendo levado para uma área impermeabilizada, seguindo depois para aterro em Sabará, conforme convênio entre os municípios.
Também na Bacia do Rio das Velhas, Nova Lima teve como bairros mais atingidos Honório Bicalho, Santa Rita, Alto do Gaia, Bela Fama, Nova Suíça, São Sebastião das Águas Claras (Macacos), Vale do Sol e Água Limpa. A prefeitura já recolheu 16 mil toneladas de lama e 1 mil de lixo. A cidade ainda viveu uma situação-limite, quando, em 8 de janeiro, houve o transbordamento de um dique de contenção da Mina de Pau Branco, da mineradora Vallourec, no município, causando estragos na BR-040.
Com um patrimônio cultural que atrai muitos turistas, formado por igrejas, casario, teatro e outros monumentos, Sabará enfrenta agora o período da faxina pós-enchente. Basta circular pela cidade para ver os estragos causados nas ruas após a cheia do Velhas e do seu afluente, o Rio Sabará, que banha a cidade, surgida no século 18. Depois da enchente, o recolhimento de resíduos quase triplicou. Conforme a prefeitura local, entre 10 janeiro e 11 de fevereiro, foram recolhidas 4 mil toneladas de material – por dia, foram 140 toneladas (lama, lixo etc.), quase o triplo do volume do mesmo período do ano passado (60 t/dia).
Pesca de recicláveis na ponte do Rio das Velhas
Reflexos das enchentes são visíveis ao longo do Rio das Velhas, que corta o município de Santa Luzia. De perto, as palavras de Marcus Polignano ganham mais força e sentido. Agarrados aos pilares da chamada Ponte Velha, entre as partes alta e baixa da cidade, ainda se encontra uma enormidade de gravetos, troncos e garranchos. Em alguns trechos, há pilhas de barro, mas é ao longo das cercas de propriedades ribeirinhas que se vê “o que o rio devolve” durante seu processo de limpeza: sacos plásticos de todas as cores e tamanhos, agora desbotados, parecem estandartes de alerta contra a poluição e degradação das águas.
Em 9 de janeiro, o Estado de Minas constatou a grande quantidade de material estacionada num remanso, perto da ponte. Havia tambor, pneu, geladeira, milhares de garrafas PET, caixas de isopor, galões, caixa de ferramentas e móveis. Naquele momento de tensão, já que parte da cidade ficara ilhada, um homem se dedicava a uma atividade bem original, “pescando” com vara de bambu o que pudesse retirar do rio para conseguir algum dinheiro. Fisgou vários galões.
Segundo a Superintendência de Limpeza Urbana da Prefeitura de Santa Luzia, a média mensal de resíduos sólidos recolhidos na cidade é de 4,5 toneladas, com estimativa de chegar a 5 toneladas devido à enchente. Sabiamente, um morador luziense de 70 anos avisou: “Não mexam com o Rio das Velhas. Ele é bravo. E devolve com força tudo o que jogam nele. Sempre foi assim”.
Outra moradora, do Bairro Palmital, que ficou desalojada, não se eximiu de culpa. “Somos todos responsáveis por essa sujeira. A gente joga tudo dentro do rio, de latinha a botijão de gás. Precisamos de mais conscientização. Do contrário será sempre assim”, disse, com irritação. A assessoria de imprensa da prefeitura informa que ainda há trabalhos de limpeza no Bairro Palmital, porém com um atraso devido às últimas chuvas.
PARAOPEBA Em Betim, na Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba, as cheias no Rio Betim “devolveram” 21,5 mil toneladas de resíduos, incluindo lixo, barro, móveis e outros objetos. O volume é quase o triplo do recolhido por mês – 7,9 mil toneladas. Já em Brumadinho, que em 25 de ja- neiro viu completados três anos do rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, com quase 300 vítimas, a cheia no Rio Paraopeba também gerou muitos transtornos, com casas tomadas pelas águas. Segundo a prefeitura, foram retiradas 8,4 mil toneladas de lixo (entulho, lama e materiais orgânicos), levadas para o aterro sanitário.
A LEI DO RETORNO
Veja, em números estimados, a situação dos rios das Velhas, Paraopeba e afluentes, transformados em lata de lixo na Região Metropolitana de Belo Horizonte. A conta da sujeira fecha em 80,3 mil toneladas
1) Raposos
2) Rio Acima
O município teve muitas casas atingidas, e a prefeitura recolheu 400 toneladas de barro
3) Nova Lima
4) Sabará
5) Santa Luzia
6) Betim
7) Brumadinho