Jornal Estado de Minas

SAÚDE MENTAL

A batalha da psiquiatria: divergências e nova polarização



Uma discussão complexa, com envolvimento de vários atores e instituições, e que recentemente foi parar até na Justiça. A saúde mental em Belo Horizonte e em Minas Gerais está mergulhada na divergência e em mais uma polarização.



De um lado, aqueles que defendem, para atendimento de crises graves e gravíssimas, o retorno dos hospitais psiquiátricos, sobretudo do Galba Veloso; de outro, os que argumentam a favor da luta antimanicomial, na qual o usuário da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) passa pelo tratamento em liberdade, com diálogo constante com a família.

Para apresentar as razões de cada vertente nesse debate, o Estado de Minas ouviu mais de 10 fontes, de psiquiatras até familiares e usuários da Raps, além de representantes dos governos estadual e municipal e de organizações de interesse público, em reportagem especial publicada a partir de hoje.


O ponto de partida desta reportagem foi a batalha judicial travada entre a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG). No ano passado, o CRM anunciou medidas de interdição ética dos Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams) da capital mineira, após vistorias nas unidades. Em direção oposta, o município protocolou ação civil pública na 22ª Vara Federal Cível, com participação do Ministério Público Federal (MPF), que suspendeu o auto de interdição.





Para o conselho, os nove centros de saúde mental de BH funcionam com três irregularidades: a falta de responsável técnico, o expediente noturno sem psiquiatra, e a ausência de conformidades técnicas e de documentação para atender a doentes mentais em crise grave e gravíssima, como argumenta a presidente do CRM, Cibele Alves de Carvalho.

“Entendemos que existe um fluxo da saúde mental do estado e do município de Belo Horizonte, no qual a gestão prioriza o atendimento dos pacientes (em crise grave) no Cersam. Nós iniciamos com o fechamento do Galba Veloso, com o qual tivemos um impacto no número de leitos de internação. O paciente de saúde mental tem episódios de surtos que precisam ser tratados para que ele restabeleça seu equilíbrio mental e não se coloque em risco”, afirma Cibele.

Com mais de duas décadas na linha de frente da saúde mental de Belo Horizonte, a psiquiatra Vera Prates, da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), discorda da postura do conselho. Para ela, a rede de BH tem problemas, mas eles não passam pelas limitações apontadas pelo CRM. Nem pela volta do Galba Veloso, possibilidade que ela classifica como “retrocesso”.





“Não sentimos a menor falta do Galba Veloso. Há 17 anos, trabalho em unidade básica de saúde com casos muito graves: esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão grave com tentativa de autoextermínio... Nesse tempo, cabem nos dedos de uma mão os pacientes meus que precisaram de internação”, diz. Para Vera Prates, as redes de saúde mental de BH e Minas “têm plenas condições de prestar o atendimento em todos os momentos do paciente de sofrimento mental”, desde os quadros leves até os mais críticos.


Do outro lado do balcão, como servidora do Galba Veloso por quase 10 anos, a enfermeira psiquiátrica Maria Laura Oliveira afirma que há uma confusão entre manicômio e hospital psiquiátrico por parte de quem defende a luta antimanicomial. “O Galba Veloso estava para a psiquiatria como o João XXIII está para os outros serviços de saúde. Um serviço de saúde jamais substitui outro. O SUS não preconiza isso”, afirma. Ela acredita que interesses políticos nortearam o fechamento da estrutura, localizada no Bairro Gameleira, Região Oeste de BH.

DIVERGÊNCIAS ENTRE MODELOS


Representante do Fórum Mineiro de Saúde Mental, Miriam Abou-Yd reconhece a necessidade de melhorias e ampliação de dispositivos para o setor em Belo Horizonte, mas afirma que esses fatores não invalidam o modelo assistencial de saúde mental construído e reformado ao longo dos anos.





“Não foi só Belo Horizonte que realizou essa inversão do modelo de assistência. Minas também. Respeitam as legislações e resoluções que temos. Existiam 8.100 leitos psiquiátricos no estado em 36 hospitais em 1991. Hoje há muito menos (549 leitos de saúde mental em hospital geral e 564 leitos em hospital psiquiátrico no estado, atualmente, segundo a Secretaria de Estado de Saúde). Sem dúvida nenhuma, o fechamento do Galba foi uma atitude necessária e justificada”, defende.

De acordo com Míriam, o hospital raramente tinha ocupação total de suas 120 vagas e não compensava para o estado em termos de custo/benefício, principalmente pela despesa com pessoal. “Tem cabimento falar que um hospital com 120 leitos, que atendia 13 pessoas por dia, faz falta? Onde você acha que se tratam os milhares de casos de saúde mental que demandam cuidados intensivos? Eles estão e são muito bem-vindos na Rede de Atenção Psicossocial de Belo Horizonte”, afirma.

Outro braço dos profissionais de saúde da área em Minas Gerais, o vice-presidente da Associação Mineira de Psiquiatria, Bruno Couto Moreira, vê a situação com outros olhos. Ele sustenta que há um caos da saúde mental na cidade. Segundo o especialista, o Cersam não tem arcabouço nem permissão legal para atendimento de casos de urgência e emergência. “Eles podem funcionar 24 horas, mas não têm a estrutura total. Não podem, por legislação, fazer a internação. Só cuidados para crises leves e moderadas”, afirma.





Bruno aponta o que considera falhas de estrutura. “São as normas da Vigilância Sanitária e do Corpo de Bombeiros que existem nos hospitais, inclusive da psiquiatria. Isso é preconizado no particular. Eu não entendo por que no particular se exigem essas normas (para internar) e no SUS não precisa”, questiona.

Para ele, seriam necessários mais quatro Cersams em BH para dar conta da demanda da saúde mental. “Já era um sistema sobrecarregado, mas agora recebe também pacientes graves e gravíssimos. É como deixar um paciente que precisa de respirador dentro de um centro de saúde. Os Cersams tratam excelentemente os pacientes leves e moderados. Estão tentando fazer um CTI dentro de um posto de saúde”, opina.

De dentro de um Cersam de BH, uma servidora da saúde mental, que preferiu não se identificar por receio de represálias, afirmou à equipe do Estado de Minas que a unidade onde trabalha dá conta da demanda por meio de uma equipe multidisciplinar, mas admite que falta estrutura para trabalhar da maneira ideal.





“Estão faltando recursos humanos, sim, mas a gente consegue desenvolver o trabalho. O que mais sentimos falta é de um lugar para poder fazer uma refeição, fora do expediente”, diz. Ela explica como funciona o atendimento: “O Cersam não é só o atendimento médico. Tem usuário do equipamento, que vai para o serviço não só para buscar a medicação, mas para se afastar da família por um tempo, por questões da própria saúde mental. Ele passa por oficinas de socialização... É uma equipe multidisciplinar: enfermeiro, médico, assistente social, terapeuta ocupacional e psicólogo, além de técnicos de enfermagem”.

Na última semana, a Prefeitura de Belo Horizonte informou que a decisão judicial que impede a intervenção ética nos Cersams continua em vigor. De acordo com a administração, o município respondeu em juízo a todos os questionamentos do Conselho, o que teria demonstrado a regularidade na assistência à saúde mental prestada nas unidades.

O Conselho Regional de Medicina confirmou que a interdição ética foi suspensa cautelarmente pela Justiça, tendo havido audiência de conciliação, sem sucesso. O processo segue os trâmites legais e aguarda decisão judicial.





EXISTE LOBBY? 

Fontes ligadas à luta antimanicomial alegam que as lideranças favoráveis ao retorno dos hospitais psiquiátricos agem por interesse próprio. Segundo essas pessoas, que preferem manter o anonimato e trabalharam na iniciativa privada por anos, clínicas de psiquiatria geram muito lucro, pois o tratamento seguido por elas é de baixo custo e de alta demanda.

“Serviam comidas péssimas para os internos. É um negócio que dá muito dinheiro”, diz uma das fontes. Ainda de acordo com esses profissionais de saúde, o tratamento do doente mental em liberdade requer uma abordagem horizontal, com a participação de diferentes trabalhadores (enfermeiros, psicólogos, técnicos, terapeutas etc.), o que incomoda parte da classe médica.