Jornal Estado de Minas

A BATALHA DA PSIQUIATRIA

Psiquiatria: polêmica da hospitalização divide até usuários da saúde mental


Usuário da rede de saúde mental de Belo Horizonte, Nicolai Assis Lacerda, de 36 anos, tem o sonho de ser árbitro de futebol. Na mesma condição dele, Laura Fusaro Camey, de 25, tem como principal objetivo garantir a autonomia das pessoas em sofrimento mental no Brasil a longo prazo. Em entrevista  sobre a polêmica em torno da possibilidade de hospitalização para quadros psiquiátricos severos, tema de série iniciada na edição de segundda-feira do Estado de Minas, eles concordam com a eficiência dos Centros de Atenção à Saúde Mental (Cersams) da capital, mas se opõem quando a questão é a efetividade dos hospitais psiquiátricos. Ele é favorável, sobretudo em momentos em que passa por crises graves. Ela, como representante da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Assussam), é completamente contra, comparando esses espaços a manicômios que não respeitam direitos de pacientes.





Quando a equipe do EM chegou à casa de Nicolai para entrevistar o usuário da rede de saúde mental em BH, o relógio marcava 10h. O sol da quarta-feira parecia muito intenso para o horário, com luminosidade marcante. O dia radiante soava como boas-novas na vida do morador do Santa Efigênia (Leste de BH): pela primeira vez, Nicolai trabalha com carteira assinada, em uma rede de drogarias da capital mineira.

“Eu era totalmente dependente da minha mãe. Estou muito feliz, porque minha carteira só havia sido assinada por três meses como call center, por experiência. É a primeira vez que tenho registro como trabalhador. Se não fosse o trabalho, vocês não estariam aqui. Quem somos nós sem o trabalho?”, disse Nicolai, enquanto observava as atividades dos jornalistas presentes ao local.


Além do sonho de apitar jogos de futebol, Nicolai tem relação íntima com a música. Quem entra em seu quarto não pode deixar de perceber uma pilha de papéis. São letras de canções compostas por ele enquanto esteve em uma penitenciária da Grande BH. “A minha relação com a música é muito grande. Eu ficava compondo na prisão e em casa agora, também. Não tive ainda uma grande oportunidade para que alguém gravasse essa letra e tentasse vender. Porque eu não sou muito bom pra cantar”, afirmou, enquanto ria de sua anunciada inaptidão para os microfones.





Ainda assim, na presença dos repórteres de texto e imagem, Nicolai não teve vergonha e arriscou alguns versos. Ao terminar a canção que compôs, que trata sobre uma volta por cima a partir da fé, Nicolai emocionou a mãe, Conceição Maria Lacerda, de 68. “Eu passei maus momentos com ele. Vê-lo bem me dá uma alegria imensa”, disse, entre lágrimas, na sacada da casa onde vive com o filho com transtorno mental.

Nicolai Assis Lacerda recebe medicação diária no Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), administrado pela Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig) e pela prefeitura na Alameda Ezequiel Dias, no Centro da capital. Apesar de não ter reclamações do serviço, ele garante que o Galba Velloso, hospital psiquiátrico hoje fechado pela Fhemig, o ajudava durante as crises. “Era importante para me estabilizar. Infelizmente, quando estou em crise, eu perco o controle. Não consigo conviver em sociedade e faço mal para as pessoas”, disse.

Engajamento


Também usuária da Rede de Atenção Psicossocial, Laura Camey é estudante e engajada em movimentos populares. Como vice-presidente da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental, ela acha que a maior efetividade da abordagem antimanicomial – em oposição aos hospitais psiquiátricos – é “tão clara como o dia” para quem depende desses serviços para conviver em sociedade.





“Esse processo de trabalho do Cersam é o mesmo desde 2006. A prefeitura não fez nenhuma mudança. Não faz sentido o CRM (Conselho Regional de Medicina, que quis interditar as unidades em BH, ao apontar fatores que considera irregulares) tirar da cartola que o serviço não funciona. A gente não vê as alegações do conselho como problemas”, aponta Laura.

Ela é usuária do Cersam desde 2017. E frequenta conferências de saúde em BH, nas quais, afirma, nunca houve queixas sobre os Cersams, com exceção da necessidade de ampliação dos recursos humanos. “Mas esse não é um problema exclusivo da saúde mental, é do do SUS inteiro. Então, vamos interditar o SUS inteiro? Essa interrupção do serviço ajudaria a quem?”, questiona.

Hospitais: solução ou parte do problema?

Hospital Galba Velloso teve leitos da psiquiatria fechados para dar suporte a outros atendimentos durante a pandemia (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Irmã de Nicolai Assis Lacerda, a escritora Carolina Lacerda, de 38 anos, afirma que seu irmão foi marginalizado pela sociedade desde a adolescência, quando passou a ser dependente químico. Após tentar tratamento em clínicas privadas, a família entrou na Justiça para garantir sua internação psiquiátrica no Hospital Galba Velloso, hoje fechado, na Região Oeste de BH. Lá, ele recebeu o diagnóstico de três transtornos mentais.





“Começamos essa luta para um tratamento adequado a partir daquele momento. Começamos a vê-lo como doente, não como um criminoso, alguém que deveríamos afastar. Pelo contrário, deveríamos acolher e tratar com dignidade, para que tivesse maior qualidade de vida”, diz Carolina.


Para ela, a contribuição do Galba Velloso para a qualidade de vida do irmão foi fundamental. “Somos muito gratas ao Galba Velloso, porque antes Nicolai não tomava medicação nem tinha tratamento para ter uma vida mais digna. Quando fechou (o hospital), ele estava lá, em crise, muito debilitado. Chegamos lá e negaram o atendimento a um paciente que estava em crise. Tivemos que chamar a polícia. Como não tinha documentos da Fhemig, nós conseguimos interná-lo nesse período de fechamento”, explica Carolina Lacerda.

Segundo Carolina, a família não quis tentar internação no Raul Soares, unidade para onde os pacientes do Galba Velloso foram encaminhados após o fechamento. Isso porque, de acordo com ela, o hospital também localizado em BH, na Avenida do Contorno, não tem equipe médica nem leitos suficientes para dar conta da demanda.





Paixão

Irmã de uma usuária da rede de saúde mental de BH, a aposentada Leida Maria de Oliveira Uematu se diz “apaixonada” pela reforma psiquiátrica que tem sido feita na rede pública da capital e de Minas Gerais. Ela tem outros irmãos que já foram internados no Raul Soares e no Galba Velloso, entretanto o assunto sequer entra na pauta da família.

“É um assunto em que meus irmãos não gostam de tocar. Com minha irmã já é o contrário: é normal falar do Cersam. Ela passou a ser militante da luta antimanicomial. Foi ela quem me colocou no movimento. Hoje, sou familiar da saúde mental por meio do Cersam Venda Nova", diz.

Para Leida, as divergências, que vão desde o poder público, passam pelas organizações representativas e chegam até mesmo nas famílias, atrapalham o desenvolvimento da saúde mental como política pública. “Atrapalha e muito. A possibilidade de interdição (dos Cersams) foi desesperadora. De madrugada, eu recebi mensagens de usuários perguntando o que deveríamos fazer. Foi tenso. O CRM, tanto o federal quanto o estadual, não está em um momento digno de falar alguma coisa. O que eles defendem é a morte. É um descaso com o ser humano”, opina a aposentada.





Leida é firme ao dizer que “não romantiza os transtornos mentais”. Mas afirma que a convivência com a irmã evoluiu consideravelmente a partir do momento em que decidiu se informar sobre o transtorno dela e entender a necessidade de acolhimento. “Quando a família não é próxima, não tem o acolhimento que precisa ter. Procure isso no seu Cersam. Você tem esse direito. Fica muito mais fácil quando você aprende a respeitar essa pessoa com sofrimento mental. É uma nova vida”, diz.

Mãe pede socorro: “É uma covardia com as famílias”


Telma Solange tem 57 anos e convive com uma pessoa com transtorno mental. O filho, de 27, passa por crises frequentes. Dona de uma loja de materiais para festas, Telma não sabe se dedica o tempo ao comércio ou a olhar o jovem Talles Felipe, que atenta contra a própria integridade frequentemente. Na última vez, colocou fogo na própria mão. Crises tiram o sono da mãe.

“O Cersam não é adequado para o tratamento do Thalles. Ele foi internado uma vez porque eu briguei na ouvidoria da Secretaria Municipal de Saúde. Fica agressivo, se joga na frente dos carros e ameaça outras pessoas. O problema dele é muito grave, e o Cersam não consegue resolver”, afirma.





Telma conta que os problemas de Talles começaram há cinco anos, quando ele tentava estudar em uma faculdade privada de BH. A família mora no Bairro Santa Efigênia (Leste) e sente falta do serviço que era prestado pelo Galba Velloso, onde o jovem ficou internado por um mês.

“Eu sou desesperadamente a favor de voltar a abrir o Galba Velloso. Você tem que ver a quantidade de paciente como o Thalles na rua. É uma covardia sem tamanho que fazem com as famílias. Eu fico doente junto com ele, porque tem dias que não durmo”, relata. “Já fui ao Cersam e eles me perguntam o que eu acho. Eu acho que ele precisa de um tratamento adequado para se estabilizar. Ele não responde por ele quando está assim. Quando está em estado normal, me ajuda, dorme cedo e fica bem. Mas eu não tenho um pingo de paz no momento de crise”, lamenta.


Pedidos de internação compulsória disparam


Em meio ao fechamento de leitos e à polêmica sobre a hospitalização, dados obtidos pela reportagem do EM com a OAB, por meio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), mostram que os pedidos de internação compulsória no estado estão em disparada. Em 2015, o TJMG registrou 268 pedidos. Já em 2020, o ano fechou com 1.254 solicitações, aumento de 367%. De janeiro de 2021 até janeiro deste ano, foram 477. Ao menos desde 2015 o tribunal não atesta diminuição desses pedidos de internação compulsória.





Debate em série


Desde segunda-feira, a séria de reportagens “A batalha da psiquiatria” enfoca a polêmica em torno do modelo de saúde mental adotado no estado e em Belo Horizonte. Na primeira reportagem, o Estado de Minas mostrou argumentos de dois lados: profissionais e entidades que consideram os hospitais psiquiátricos essenciais para atendimentos de pessoas em crises graves e gravíssimas em contraposição aos que se alinham com a luta antimanicomial e defendem que serviços prestados na Rede de Atenção Psicossocial são suficientes para apoiar e tratar pacientes em todos os momentos relativos ao sofrimento mental. Ontem, o EM apontou os esforços que vêm sendo realizados para ampliar o diálogo e encontrar saídas para pontos de fragilidade admitidos pelos dois lados, entre eles a falta de psiquiatras em plantões noturnos dos Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams) de BH.