Morro Vermelho (Caeté) – Tradição com mais de 200 anos, sempre na quarta-feira de cinzas, em ambiente de muito silêncio e com a presença apenas de homens. Numa atmosfera que remete às cerimônias secretas de outros tempos, um grupo de moradores do distrito colonial de Morro Vermelho, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, deu início, às 13h de ontem, ao banho de cachaça na imagem de Nosso Senhor dos Passos. Tudo começou na entrada lateral da histórica Igreja Nossa Senhora de Nazareth, por onde cada um passou carregando a garrafa de aguardente, da mesma forma como fizeram seus antepassados. Como reza o costume, os homens levaram também manjericão, rosmaninho e outras plantas aromáticas. Morro Vermelho tem 800 moradores e fica a oito quilômetros do Centro Histórico de Caeté.
Depois de retirar do altar a imagem de Nosso Senhor dos Passos, do século 18, que fica de pé, com o manto roxo, os moradores e alguns visitantes – todos adultos, pois não são permitidos menores de 18 anos – rezaram o Pai-nosso e pediram graças. Depois, despiram respeitosamente a escultura de cedro para jogar aguardente em toda sua extensão.
A medida, conforme manda a tradição, é para evitar que a madeira se deteriore ao longo dos anos ou seja alvo dos cupins. Coincidência ou não, o fato é que essa é a única peça sacra da Matriz Nossa Senhora de Nazareth ainda não atacada pelos insetos. A sabedoria ancestral diz que a bebida alcoólica tem pouca penetração na madeira e evapora rapidamente.
Como se trata de uma ação de leigos, a Igreja Católica considera fruto da “piedade popular”, portanto não interfere no que se passa no espaço sagrado por detrás das pesadas portas de madeira.
Segredos e mistérios
A entrada no templo barroco, no momento do ritual, é vedada às mulheres – sempre foi assim e elas não reclamam, certas de que o costume deve ser mantido. "É uma tradição, precisamos respeitar. Mas quando eu era criança, até me escondi dentro da igreja, com uma amiga, mas meu pai nos encontrou e nos tirou. A curiosidade era grande", contou Edna Maria Lopes Vieira, casada com Antônio Itamar Vieira, que participa há 34 anos do rito. "Fui convidado pelo meu sogro, Abílio Lopes Magalhães, falecido há 26 anos. O banho no Cristo passa de geração a geração", disse Antônio Itamar.O filho do casal, Thomaz Henrique Lopes Vieira, de 27, contou que, quando criança, ficava ansioso para entrar na igreja nesse momento. "Faz parte da minha história, da minha raiz, da minha origem", explicou Thomaz, que se mostra bem conectado com a preservação e valorização da cultura local.
A imagem tem 1,85m e é toda articulada. Tiras de couro fazem as ligações dos braços e pernas. Durante todo o ritual, favorecido talvez pela atmosfera barroca da matriz e a penumbra, há momentos muito simbólicos, que remetem aos séculos 18 e 19. Um deles ocorre na retirada da peruca de Cristo, que vai passando a cada um como se fosse num encontro de irmandade.
"Eu sempre coloco a peruca, certamente por isso nunca tive dor de cabeça", revelou José Márcio Lopes, o Biló, que completa 50 anos de participação no ritual. Ele e Antônio Lopes, o Toinzinho, há 45 anos na função, são os responsáveis por tirar a imagem do altar. "São muitos mistérios, e sempre uma grande emoção", observou Toinzinho.
Acolhida
Assim que a imagem sai do altar, é carregada por todos, e imediatamente colocada no chão sobre um tecido. Depois, os pés são postos dentro de uma gamela de madeira para recolher a cachaça que escorre.
Mais velho da turma, que tem seu núcleo formado por sete homens, e sempre acrescido de outros moradores do distrito, da sede municipal ou de BH, Nildo Jesus Leal, de 81, mostrou o mesmo entusiasmo de quando, segundo ele, fez sua iniciação, aos 18 anos. "Temos muita fé. É algo que passa de pai para filho", afirmou com um galho de manjericão nas mãos.
Nascido em São Paulo e residente em BH, José Carlos Sacalina Dias está presente ao ritual há 20 anos. “Sou muito ligado a Morro Vermelho, e fico feliz em participar, principalmente pela força da fé.” Já Rogério Matos, cuja mulher, Valéria Seixas, é de família do distrito, encontrou na palavra emoção a melhor para definir sua iniciação no ritual.
Procissão
Ontem, primeiro dia da quaresma, os altares da matriz foram cobertos com tecidos roxos. Durante todo o período, a imagem de Nosso Senhor dos Passos, colocada no andor após o banho, com a cruz às costas, fica em destaque na matriz, saindo em procissão no domingo de ramos, dia em que, em Morro Vermelho, há o encontro entre Nossa Senhora e Jesus, e na cerimônia do descendimento da cruz e procissão do enterro, na sexta-feira da Paixão.
No fim do ritual, houve toque de sino anunciando que estava terminado o banho. E muitas pessoas estavam na porta do templo com garrafas para recolher água e levar para casa. "É um líquido milagroso, já ouvimos vários relatos de graças alcançadas. A pessoa pode multiplicar, juntando com mais pinga, ou colocar ervas medicinais", contou Biló.
Charola nas áreas rurais
O distrito de Morro Vermelho tem outro tipo de tradição secular. Durante a quaresma, uma imagem pequena de Nosso Senhor dos Passos percorre comunidades rurais vizinhas de Caeté, Barão de Cocais, Raposos, Sabará e Santa Bárbara, convidadas para as cerimônias da semana santa no povoado. Reza a tradição que a imagem não pode passar por perímetros urbanos. Ela é carregada numa charola, um pequeno andor enfeitado, e costuma passar a noite na casa dos fiéis. Há cerca de 30 anos, uma devota acendeu uma vela e o fogo destruiu a escultura de madeira, que remontava ao século 19. O jeito foi fazer uma nova, o que não interrompeu a tradição nem diminuiu a fé do povo.
Memória - Cerimônia documentada
Em 1º de fevereiro de 2013, conforme registrou o Estado de Minas, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) documentou o banho com cachaça da imagem de Nosso Senhor dos Passos para inventário sobre tradições da semana santa. Pela primeira vez em 200 anos, mulheres puderam assistir a alguns instantes do ritual, antes do banho. Com a cerimônia, o Iepha deu início ao projeto Ritos da Quaresma e Semana Santa.