A guerra na Europa abre feridas profundas na Ucrânia e afugenta da terra natal milhares de famílias – pais e mães com seus filhos, muitos deles bebês de colo, caminhando no frio, enchendo vagões de trens e procurando um porto seguro para exercer o simples direito de refazer a vida, encontrar trabalho e garantir o sustento. A jornada certamente é difícil, mas a acolhida, jamais impossível, e há grandes exemplos mundo afora. Em Minas, especialmente na capital, refugiados de outros países têm encontrado a paz que precisam a fim de recomeçar e encontrar novas oportunidades. Histórias que envolvem se desligar de um passado de sofrimento, superar barreiras linguísticas e culturais e encontrar novos horizontes: tudo o que envolve a trajetória do sírio Khaled Tomeh, de 38 anos, residente há quase oito anos em Belo Horizonte e, agora, recém-formado em ciências biológicas – graduação que cursou após constatar que sua formação em engenharia no país natal não o habilitaria a trabalhar na área no Brasil.
A noite de 24 de janeiro último foi mais um marco especial na vida de Khaled e família. “Uma data de alegria para nós, de exemplo para nossas filhas e de caminho aberto para o futuro”, diz Khaled, ao lado da mulher e conterrânea Mary, com quem teve as filhas Yasmin, de 6, e Clarissa, de 2, ambas belo-horizontinas. O motivo de tanta satisfação está na formatura de Khaled em ciências biológicas na PUC Minas, um passo vitorioso na trajetória iniciada na terra natal, despedaçada pela guerra civil e depois seguida diante das barreiras impostas pela língua no Brasil, da luta pela sobrevivência e, mais tarde, das incertezas causadas pela pandemia.
“Quando a gente esta lá embaixo, só existe um caminho: ir para cima”, ensina Khaled, que aprendeu muito na jornada e não para de abrir a mente, os olhos e o coração para o mundo. “A Síria está acabando, mas não é pela guerra. É mais pela ignorância, um dos piores males da humanidade. Somente o conhecimento e a responsabilidade podem pôr fim à ignorância. Olho agora para meu futuro aqui no Brasil. O que mais quero é aprender sobre a cultura local e poder oferecer o conhecimento que acumulei à sociedade”, afirma, em português fluente, enquanto mostra, sorridente, o diploma de bacharel na PUC Minas, que lhe concedeu bolsa social. “A formatura foi muito emocionante. Levei a bandeira da Síria e tocaram o hino do meu país.”
Chegado a BH como refugiado em 25 de junho de 2014 e naturalizado brasileiro em 2020, a exemplo de Mary, Khaled está cheio de planos. O primeiro deles é fazer mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com foco em meio ambiente. “O Brasil é o coração do mundo. Aqui tem de tudo, e devem ser preservados os ecossistemas existentes”, diz o sírio, que fez o trabalho de conclusão de curso sobre a valorização econômica da Serra do Rola Moça, na Região Metropolitana de BH. “Minhas filhas nasceram no Brasil, minha mulher e eu falamos com orgulho que somos brasileiros, então queremos o melhor para todos.”
A vontade de estudar começou há cinco anos, quando o pai de Khaled, Waled, hoje com 66 anos, veterinário e professor de matemática, foi diagnosticado com câncer. “Ele está em tratamento, mas vivemos momentos de dificuldade, que já não eram poucas. Fiquei pensando, então, em trabalhar na área de saúde. Primeiro, fiz biomedicina, no Instituto Izabela Hendrix, depois passei para o curso de ciências biológicas na PUC.” Formado em engenharia de agricultura e engenharia de alimentos na Síria, Khaled descobriu, ao chegar ao Brasil, que os certificados não eram válidos no país. Era necessário recomeçar os estudos para se restabelecer.
PEDRAS DO CAMINHO
As dificuldades foram pedras no caminho que não só marcaram a trajetória da família Tomeh, a pioneira em BH de refugiados sírios, mas também serviram de base para a travessia. Em 2014, chegava à capital mineira, sem falar uma palavra de português, o casal Waled e Maria, ela professora de língua árabe, e os filhos George, arquiteto e tradutor de árabe para o inglês, e Khaled acompanhado de Mary.
“Penso sempre na importância da cultura. Venho de um país com uma história de milhares de anos, então, em tudo o que faço procuro fortalecer isso”, conta Khaled, que, ao lado de Mary, é dono da loja de comidas árabes Narjes (narciso, uma flor, em português), no Bairro São Pedro, na Região Centro-Sul de BH, com toques internacionais e bem mineiros. “Aqui tem a colaboração de muitos amigos”, diz o engenheiro, comerciante e, agora, biólogo, que também já expandiu os negócios para uma loja no Mercado Central.
Entre esfirras, quibes e outras delícias, há um pão de queijo feito com um típico canastra. “Aprendi o gosto dos mineiros: salgados crocantes por fora e molhadinhos por dentro”, revela, com humor, o sírio simpático e bom de conversa. No instante seguinte, avisa que comercializa, na loja, os mesmos produtos feitos para as filhas.
Os olhos brilhantes de Khaled e Mary parecem espelhos da longa viagem até BH, enquanto as mãos carregam conquistas e se abrem para novos desafios. “Eu era contadora, agora quero estudar gastronomia”, planeja Mary, lembrando estar craque no mineirês. “Uai, que trem bom!”, brinca a síria, que diz aprender a cada dia com a filha mais velha. “Ontem, ela falou assim: ‘Casca fora’, e fiquei procurando onde estava a casca.”
VITÓRIA
A conquista do diploma pelo sírio Khaled é uma vitória, afirma o professor Danny Zahredinne, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Melo na PUC Minas e diretor do Instituto de Ciências Sociais. “Antes de chegar ao país com a solicitação de refúgio, a pessoa deixa tudo para trás, está numa condição de vida ou morte. Assim, a universidade tem papel fundamental como espaço de integração social, moral, cidadã e espiritual. Há um processo de humanização. A pessoa deixa de ser ‘o estrangeiro’, ‘o refugiado’ para ser chamada pelo seu nome.”
Já a professora Maria da Consolação Gomes de Castro, coordenadora do Departamento de Serviço Social da PUC Minas, explica que os imigrantes sempre aproveitam muito bem as oportunidades oferecidas pela universidade. “O Khaled e seu irmão (George), formado em arquitetura na Síria e agora cursando engenharia, adaptaram-se à universidade, sempre participam das atividades.”
A exemplo de Khaled, migrantes e refugiados de outros países, como Haiti e Venezuela, recebem apoio da PUC por meio da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, entidade da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) que busca garantir que pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio tenham acesso a direitos e serviços no Brasil, oferecendo apoio ao processo de integração local.
Sustento e identidade sepultados na guerra
Quando ouve elogios à sua fluência em português, Khaled responde rápido: “Necessidade”. E a sobrevivência falou mais alto, tanto que a família, no melhor estilo mãos à obra, dedicou-se ao preparo de pratos típicos e preparo de comida na casa do freguês, o que ainda se mantém com o serviço “chef em casa”. No dia desta entrevista, na hora do almoço, a equipe do Estado de Minas compartilhou a refeição oferecida pelo casal no estabelecimento no Bairro São Pedro. Entre um e outro sabor do Oriente Médio, muitas histórias narradas por Khaled e Mary permeadas pelo mandamento de viver com dignidade em solo estrangeiro.
Aquele foi, na verdade, um reencontro, temperado por mais um capítulo da história de superação do casal. Em 2017, repórter e fotógrafo do EM, na companhia do padre Flávio Campos, hoje falecido, almoçaram com toda a família Tomeh no apartamento no Centro de BH.
Bom de cozinha e conhecedor profundo da culinária árabe, Khaled Tomeh, no início da jornada, comandou a produção doméstica de alimentos, enquanto dava aulas de inglês e árabe. Seu irmão George trabalhou como manobrista no estacionamento da Igreja São José, no Centro.
Mas, se o passado ficou longe, vale a memória para tornar os laços familiares mais fortes. Na Síria, a guerra civil arruinou os planos e a economia da família Tomeh, que era dona de empresas e fazendas de criação de ovelhas, gado leiteiro e frangos, além de fábrica de alimentos. Natural de Homs, quase destruída pelos bombardeios, a família estava na Líbia, Norte da África, expandindo os negócios com abertura de uma empresa, quando os protestos populares evoluíram para a violenta revolta opondo governo a rebeldes.
Como a situação na Líbia também estava instável politicamente, a família retornou à Síria para retomar a vida, mas já não havia mais empresa, casa e a história particular. Vendo que continuar em Homs era impraticável, os Tomeh alugaram um apartamento na capital, Damasco, considerada uma das cidades mais antigas do mundo, e passaram a conviver com os dias de terror. “Perdemos muitos parentes e amigos”, conta Khaled.
Decidida a deixar o país, a família fez contatos com embaixadas e viu que o Brasil estava recebendo refugiados sírios. A escolha de BH foi definida via internet, por meio de um site “que avaliava bem a segurança, o clima e o custo de vida”. Sem conhecer ninguém, eles decidiram vir para o país num grupo de 13 familiares, sabendo, de antemão, que teriam documentos, mas não necessariamente um emprego. Então, cada um se virou de um jeito, trabalhando em lanchonete, fazendo pequenos consertos, serviços de informática, enfim, de tudo um pouco.
O reconhecimento vem a cada dia. Junto do mais recente diploma, Khaled mostra o diploma e a medalha Hafez Al-Assad, conferido pelo Consulado Honorário da República Árabe da Síria, em 3 de dezembro de 2016, pelos “relevantes serviços prestados à comunidade síria”. A honraria celebra a Lei Municipal 9.246, de 18/9/2016, que declarou o 16 de novembro como o Dia do Imigrante Sírio em Belo Horizonte.
Oferecendo o melhor da sua terra, Khaled convida os belo-horizontinos a provarem o tempero árabe no Narjes, na Rua Major Lopes, 240, no Bairro São Pedro, em BH. O telefone é (31) 98957-3014; no Instagram, @narjessabores.