Jornal Estado de Minas

ABORDAGEM

Empreendedora denuncia racismo no Pátio Savassi: 'nunca mais vou esquecer'

Um passeio pelo shopping se transformou em um trauma para a empreendedora preta Júlia Gomes, de 18 anos. Enquanto andava pelo Pátio Savassi à espera do fim de uma reunião do tio, no sábado (19/3), a jovem foi abordada de uma forma que considerou constrangedora por um segurança. Procurado, o shopping disse apurar o episódio e que "não tolera e repudia quaisquer atitudes discriminatórias".




 
Após o episódio, a empreendedora e o tio reportaram o caso na administração do centro comercial e registaram uma denúncia no Ministério Público. “Foi péssimo, horrível. A gente nunca espera que em um passeio aconteça esse tipo de coisa”, conta em entrevista ao Estado de Minas. “Sempre ouvi falar de racismo, mas, quando acontece com a gente, o buraco é mais embaixo”, desabafou.
 

"A gente sabe a diferença de olhar de desconfiança"

Júlia foi ao Pátio Savassi na manhã de sábado (19/3) com o tio, o professor Vitor Bedeti. Ele tinha uma reunião em um banco no centro comercial. Ela resolveu esperá-lo no próprio shopping. A reunião demorou e, passada cerca de uma hora e meia, Júlia começou a se sentir desconfortável.
 
“Fiquei sentada em um banco esperando por volta de uma hora. Enquanto estava sentada, vários segurança passavam, olhavam, encaravam... Toda hora! A gente sabe a diferença de olhar de desconfiança para a gente e quando estão olhando o ambiente”, relatou a empreendedora, em trechos de stories publicados no Instagram. 




 
Em seguida, para “passar o tempo”, Júlia deu voltas no shopping olhando as lojas. Cerca de meia hora depois, um segurança do shopping abordou a jovem em uma escada rolante, bloqueando a passagem. "Ele disse: ‘hoje tá aqui só dando voltinha, né?’ No sentido de que o shopping é pequeno e eu estava passando naquele local várias vezes”, contou Júlia.

“Eu fiquei super constrangida porque foi na frente das outras pessoas. E a gente sabe que julga mesmo. Mas não foi no sentido de brincadeira. Nunca tinha acontecido de nenhum segurança de nenhum shopping me parar para falar algo assim”, completou.  

Júlia contou que a maioria das pessoas que estavam no shopping a lazer eram brancas e as pessoas pretas estavam trabalhando. “De preto, que estava passando, eram eu e meu tio”. 
 

Aos prantos 

Após a abordagem do segurança, a empreendedora entrou em uma loja e comprou um produto “para mostrar que poderia estar no shopping”. 

Assustada, Júlia ficou sem reação e sentou-se na praça de alimentação. “O único sentimento que eu tive é que parecia que eu estava sendo espancada na frente de todo mundo”, conta. 





Ao mesmo tempo, assim que terminou a reunião, Vitor ficou apreensivo ao não achar a sobrinha. “Eu liguei para ela, mas ela não conseguia me atender. Eu rodei o shopping procurando e encontrei com ela na praça de alimentação. Ela estava aos prantos. Eu também tomei aquele susto”, relata Vitor.

O tio conta que a sobrinha estava se sentindo constrangida e queria ir para casa, mas ele incentivou que ela fizesse as denúncias para evitar que a situação se repita. 

“Não vai ficar por isso. Porque, se aconteceu comigo, que tenho um celular bacana, estava com uma bolsa cara, com uma sandália cara... Imagina para as pessoas que não tem isso que eu tenho. Imagina o tratamento”, disse Júlia em seu Instagram.  
 

O que diz o Pátio? 

Em nota divulgada na noite deste domingo (20/3), o Pátio Savassi afirma que está apurando os fatos do ocorrido e se dispôs a trabalhar em conjunto com as autoridades nas investigações. Além disso, o shopping completou que “não compactua, não tolera e repudia quaisquer atitudes discriminatórias”. 

"O colaborador de segurança que fez contato com a cliente afirmou que a abordou para lhe oferecer ajuda. Após seu relato, a equipe de atendimento tentou fazer contato novamente com a cliente, mas até o momento não obteve retorno", diz, em trecho de nota (leia a íntegra abaixo).



'Não fui a primeira'

Assim que a família conversou com a chefe de segurança do shopping, a funcionária disse que esta forma de abordagem da equipe “não acontece”. Porém, Júlia conta que recebeu vários relatos de outras pessoas que passaram pela mesma situação no local. 

Júlia conta que está tomando todas as providências necessárias para que o caso não fique ileso. O principal intuito é evitar que outras pessoas pretas passem pela mesma situação.

“Tudo o que eu estou fazendo é para que o shopping mude a forma de treinamento dos seguranças e outras pessoas não precisem passar por isso que eu to passando”, ressalta, em entrevista ao EM.





A família já escreveu uma queixa no Serviço de Atendimento ao Cliente do shopping e no Ministério Público. 

Racismo é crime e pode ser denunciado no número 100
 
Para Julia, relembrar o ocorrido é doloroso. “É um episódio que eu nunca mais vou esquecer. E é muito revoltante saber que eu não fui a primeira e não vou ser a última”.

Redes Sociais

O tio também postou um vídeo em seu perfil no Instagram relatando o caso. A postagem conta com 20 mil visualizações e 169 comentários. Júlia conta que recebeu apoio online, mas outras pessoas desacreditaram de seu relato. 



Nota do Pátio Savassi 

“O shopping informa que está apurando os fatos e, desde já, reitera que não compactua, não tolera e repudia quaisquer atitudes discriminatórias. Imediatamente ao tomar conhecimento da situação relatada pela cliente, a equipe de atendimento prestou suporte a ela e buscou verificar o ocorrido. O colaborador de segurança que fez contato com a cliente afirmou que a abordou para lhe oferecer ajuda. Após seu relato, a equipe de atendimento tentou fazer contato novamente com a cliente, mas até o momento não obteve retorno. O shopping afirma que permanece aberto ao diálogo e à disposição das autoridades”.





O que é racismo?

O artigo 5º da Constituição Federal prevê que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

Desse modo, recusar ou impedir acesso a estabelecimentos, recusar atendimento, impedir ascensão profissional, praticar atos de violência, segregação ou qualquer outra atitude que inferiorize ou discrimine um cidadão motivada pelo preconceito de raça, de etnia ou de cor é enquadrado no crime de racismo pela Lei 7.716, de 1989.

Qual a diferença entre racismo e injúria racial?

Apesar de ambos os crimes serem motivados por preconceito de raça, de etnia ou de cor, eles diferem no modo como é direcionado à vítima. Enquanto o crime de racismo é direcionado à coletividade de um grupo ou raça, a injúria racial, descrita no artigo 140 do Código Penal Brasileiro, é direcionada a um indivíduo específico e classificada como ofensa à honra do mesmo.



Leia também: O que é whitewashing?

Penas previstas por racismo no Brasil

A Lei 7.716 prevê que o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, ou seja, não prescreve e pode ser julgado independentemente do tempo transcorrido. As penas variam de um a cinco anos de prisão, podendo ou não ser acompanhado de multa. 

Penas previstas por injúria racial no Brasil

O Código Penal prevê que injúria racial é um crime onde cabe o pagamento de fiança e prescreve em oito anos. Prevista no artigo 140, parágrafo 3, informa que a pena pode variar de um a três anos de prisão e multa. 

Como denunciar racismo?

Caso seja vítima de racismo, procure o posto policial mais próximo e registre ocorrência.
Caso testemunhe um ato racista, presencialmente ou em publicações, sites e redes sociais, procure o Ministério Público e faça uma denúncia.