Cerca de 130 famílias de Itabira, no interior de Minas, foram vítimas de um golpe que, além de levar seus recursos financeiros, levou também os sonhos de seus filhos e parentes, depois de inscrevê-los em um curso de “bombeiro aprendiz civil”. Na última quinta-feira (24/3), o portal DeFato denunciou o golpe em que os organizadores prometeram 24 aulas, porém apenas nove delas foram ministradas antes de eles desaparecerem, sem terminar a formação e sem informar quando o curso seria retomado.
Além das centenas de famílias que pagaram pela formação, mas não receberam nem metade das lições, brigadistas itabiranos também foram prejudicados, porque deram as aulas e não foram pagos pelo serviço. O clube Arfita, que sediou o curso, também tomou prejuízo. Os organizadores da formação ficaram devendo o aluguel do espaço para o clube, que não consegue contatá-los para receber.
O curso
A proposta e divulgação do curso aconteceu em setembro de 2021. Inicialmente, seriam oferecidas 50 vagas, no entanto os organizadores utilizaram uma estratégia de marketing que tem um apelo de urgência e atraíram mais de 130 participantes para o evento.
As aulas começaram no mês de outubro, aplicadas a cada sábado, sendo quatro aulas mensais e seis meses de formação. Todavia, com as festividades de fim de ano, o ritmo foi reduzido, voltou em janeiro com uma frequência ainda menor e, em fevereiro, foram suspensas em função do carnaval, mas nunca foram retomadas.
Modus Operandi
A instituição que oferece o curso de bombeiro aprendiz é uma companhia limitada, que está cadastrada em um CPF. A página de Instagram da organização tem mais de 50 mil seguidores e, entre eles, diversos clientes insatisfeitos com o serviço.
O curso é oferecido em setembro, começa em outubro e perde força durante o período de festividades do fim de ano - em que os organizadores utilizam exatamente esse pretexto para reduzir o número de aulas. Já no momento que antecede o carnaval eles contatam as famílias e suspendem o curso até o fim do feriado, contudo não retornam a formação.
Ao observar os comentários das postagens, é possível perceber que eles passaram por diversas cidades e fizeram o mesmo: deram algumas aulas, embolsaram o dinheiro do pagamento e desapareceram deixando as pessoas no prejuízo. Além disso, existem diversos feedbacks negativos sobre o curso no site Reclame Aqui, em que os usuários relatam a mesma situação vivenciada pelos itabiranos.
Em uma pesquisa, foi possível identificar que golpes semelhantes (possivelmente aplicados pelo mesmo grupo) aconteceram em diversos estados. A empresa responsável pelo CNPJ e maquininha de cartão, que recebe os valores à prazo, possui um grande número de processos contra suas atividades, os quais estão disponíveis para consulta no site JusBrasil.
As famílias e as perdas
Os responsáveis pelos participantes do curso assinaram um contrato particular de prestação de serviços, que oferecia as garantias citadas acima e determinava o valor de R$ 600 pela formação. Muitos pais pagaram este valor no cartão de crédito, alguns chegaram a pagar à vista.
Uma mãe que vivenciou a situação com seu filho desabafa:
“Eu, como mãe, me sinto muito frustrada pelo acontecimento, foram sonhos de nossos filhos jogados fora. No dia da apresentação do curso falaram mil coisas, prometendo que seria de bom proveito e que não iríamos arrepender... e hoje estamos assim, de mãos atadas. Ninguém responde mais por isso, só recebemos mensagens toda sexta-feira falando que não haverá o curso, e para eles é simples mandar somente esse aviso e não nos manter informados do que aconteceu e o porquê disso tudo.”
A ação em outras cidades
Com a repercussão local do caso, diversas outras denúncias e informações acerca da publicidade de cursos semelhantes em outras localidades foram sendo reveladas.
Está circulando nas redes sociais uma publicidade dessa formação, que deverá ser ministrada em Coronel Fabriciano. O nome e a logomarca são diferentes, contudo as vítimas itabiranas acessaram a página e destacaram, nos comentários, que a situação se trata do mesmo golpe. Especialmente porque, segundo algumas delas, a publicidade e o método de contato são exatamente os mesmos.
Recentemente, também houve a tentativa de aplicação de um golpe semelhante no município de Mariana. Contudo, a ideia era oferecer um curso de preparação para o concurso para Guarda Civil Municipal, tendo em vista a proximidade da prova, que acontecerá em meados de 2022. Segundo relatos, a tentativa de realização da capacitação não foi bem sucedida pela falta de informações e garantias, além de pouco profissionalismo (erro no número do edital referente ao concurso, ausência de detalhes sobre a ementa do conteúdo, pouco aprofundamento na proposta), despreparo e características extremamente arrecadatórias.
Os familiares das crianças itabiranas também receberam outras ofertas de curso recentemente, realizadas pelos mesmos números de telefone que divulgavam o curso dos bombeiros aprendizes. Contudo, dessa vez a chamada é para uma formação de “Mini-Chef aprendiz”.
Ameaças e intimidação
Em Itabira, infelizmente, o golpe foi aplicado e consolidado, como em diversas cidades do país. Após a repercussão do caso, os jornalistas do portal DeFato receberam ameaças de um dos prováveis criminosos. O homem promoveu uma clara tentativa de intimidação, motivada por sua insatisfação com a reportagem que denuncia a suposta prática criminosa.
Conhecido pelos pais como sendo um dos “coordenadores pedagógicos” do curso, essa pessoa relatou a eles que não estava mais na organização da formação. Uma familiar de um participante tentou contatar o coordenador do curso na tarde de quinta-feira (24), ao que ele respondeu não fazer mais parte da integração e corpo organizador do curso:
“(...) não sei quem é o novo coordenador, enfim… ela tem que tomar providências com o administrador, comigo não.”
Contudo, este mesmo homem vem tentando intimidar os jornalistas e alguns dos profissionais que ministraram a formação e foram lesados por ele. Uma das brigadistas que trabalhou no curso também falou sobre o golpe. “Quem nos acompanhou sabe do nosso esforço e também do nosso caráter. Teve uma mãe que, no começo, até nos questionou se tínhamos algum documento formal para dar aula e não, não tínhamos e não temos. Confiamos neles. E, infelizmente, quebramos a cara.”
A bombeira civil mostrou um áudio do “Tenente-coronel”, termo que o golpista usa para se apresentar para suas vítimas, em que afirma que ela não está apta para dar as aulas. “Ele nos ameaçou, não pagou nenhum centavo, a gente foi humilhado e ele não cumpriu nada do que prometeu. E nós tivemos um duplo prejuízo, porque além de instrutores, nossos filhos também eram alunos”, disse a brigadistas.
Alguns dos familiares e responsáveis pelas crianças declararam que, após a veiculação da denúncia, receberam retorno pelo WhatsApp e ligações telefônicas deste mesmo homem, mas, com receio, não atenderam aos chamados.
Órgãos oficiais
O Comando do 6° Pelotão de Bombeiros de Itabira, Tenente Marlon Medeiros, trouxe orientações e posicionamento da instituição
“Cabe primeiramente afirmar que esse curso não possui qualquer relação com o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais. Em 18 de junho de 2021, saiu uma nota técnica da Diretoria de Atividades Técnicas, a respeito desses cursos oferecidos por entidades que realizam a formação de crianças e adolescentes para atividades de bombeiros civis mirins.
Nela se estabelece que, somente os cursos de formação de voluntários e profissionais que exerçam atividades na área de competência do Corpo de Bombeiros são passíveis de regulamentação pelo CBMMG (prevista na Lei Estadual 22.839/2018, em seu artigo 7°).
O curso em comento não identifica a possibilidade de interferência da Corporação, uma vez que o objetivo deles é a formação de crianças e adolescentes, apesar de que em suas malhas curriculares existam muitas disciplinas que tangenciam as atividades de competência do Corpo de Bombeiros Militar.”
O tenente destaca também o que fazer para evitar esse tipo de situação:
“A orientação que temos à população é que sempre verifiquem referências dos cursos realizados (se são boas ou não), verificação se já houve outras turmas formadas, denúncias em outros municípios e estados (facilmente consultadas via internet).”
Ele pontuou quais as providências a serem tomadas pelas vítimas:
“Aquelas pessoas que se sentiram lesadas e suspeitam da prática de estelionato ou publicidade abusiva, e possuem documentos e provas de sua irregularidade, devem procurar os órgãos competentes para a adoção das providências cabíveis (Polícia Civil de Minas Gerais, Ministério Público e etc).”
Providências
Algumas dessas pessoas que foram lesadas já fizeram boletim de ocorrência na Polícia Civil. A partir destas denúncias, será instaurado um inquérito para avaliar o golpe e o assunto.
As famílias também estão se articulando para tentar prestar uma denúncia coletiva e ajuizar uma ação, para que buscar reaver seus direitos. Os responsáveis pelas crianças que participaram do curso ainda não conseguiram um contato adequado com o financeiro da instituição, não obtiveram resposta sobre a retomada da realização do curso ou, tampouco, informação sobre reembolso e estorno.