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Estado de Minas ELAS, AS ''BONEQUINHAS'' DE BH

Mulheres trans e travestis: identidade negada a partir da fala

Elas veem sua identidade de gênero posta em xeque ao ser tratadas como "ele", ato que amplia lista de agressões . "Chame pelo nome feminino", defende ativista


29/03/2022 04:00 - atualizado 07/04/2022 11:20

A filósofa Simone de Beauvoir teorizou que se tornar mulher é um processo. No livro “Segundo sexo”, de 1949, ela levantou a questão: “Não se nasce mulher. Torna-se mulher”. Esse argumento explicita que não é o sexo biológico que determina o gênero, mas a maneira como a mulher constrói a identidade de gênero ao longo da vida. O mesmo pode se dizer em relação às mulheres trans, que passam por esse processo, enfrentando outros desafios em relação à vivência das mulheres cis.
 
Os termos cisgênero e transgênero são usados para denominar a relação entre o sexo biológico e o gênero dos sujeitos. Se há uma correspondência entre sexo biológico e o gênero, a pessoa é cisgênera, ou simplesmente cis. Se há uma diferença entre o sexo biológico e o gênero, a pessoa é considerada transgênera, ou trans. Nesse caso, pode ocorrer um processo de adaptação do corpo ao gênero ao qual a pessoa se identifica. No caso das mulheres trans e travestis, nesse processo, elas passam por transformações para se aproximar cada vez mais dos traços e características femininas.
 
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Alvos de preconceito nas ruas, as travestis enfrentam dificuldades também para ser aceitas na família, impor seu nome social e até no atendimento na saúde pública (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)

Leia mais sobre a minissérie "Bonequinhas", do podcast DiversEM

No entanto, a vivência de Linn da Quebrada no “BBB22” tem demonstrado, em rede nacional, como é difícil para a sociedade reconhecer a identidade de uma travesti. Mesmo com todas as características femininas, Linna foi chamada de “ele” pelos colegas.
 
Em diversas circunstâncias, os participantes do programa, como Lucas, Eslovênia e Tiago, trataram Linna no masculino. Em um dado momento, o brother Rodrigo chegou a perguntar se o uso do termo “traveco” seria ofensivo. Não há nenhum segredo que o termo é empregado exatamente para colocar em xeque a feminilidade das travestis. Este é um ato transfóbico e agressivo que pode se tornar crime.



Amanda Quirino Rodrigues Chaves, assessora parlamentar e ativista LGBTQIA,  lembra que ninguém nasce travesti. É um processo de descoberta. O primeiro passo é uma identificação como se fosse gay. No entanto, com o comportamento feminino, elas percebem que estão desadequadas no corpo com que nasceram. “É como se fosse uma lagarta que vira borboleta. Uma hora ela diz ‘quero ser mais close do que isso’ e ela vira borboleta”, compara. Amandinha desde criança era feminina, e a mãe já percebia. “A mãe sente quando você é gay. Ela sente.”
 
Inclusive, por a filha já ser bem feminina, era uma preocupação da mãe que ela pudesse sofrer abuso na escola. O período escolar foi de muito sofrimento, com situações explícitas de violência. “Já me jogaram dentro de saco de lixo, já me bateram, me fizeram muita maldade. Na época, eu queria só morrer.” Na época, ela não tinha qualquer referência para entender os motivos de se sentir desadequada ao próprio corpo.

PERCALÇOS
 
As travestis também enfrentam o preconceito no atendimento na saúde pública. “A saúde pública não está preparada para meu corpo”, avalia Amandinha. Ela conta que perdeu amigas que morreram fazendo uso de hormônios sem o acompanhamento médico devido com um endocrinologista. “Teve trombose”, lembra.
 
Outro impasse é a identidade de gênero; que elas possam ter o nome social e assumir a identidade feminina. Muitas famílias não respeitam essa vontade nem na vida nem na morte das travestis. “A pessoa passa por um sofrimento a vida inteira. No final, quando ela conseguiu, se ela morre, a família quer enterrá-la como um homem cis, mas ela não é. Isso acontece muito.” Quando sabe da morte de alguma amiga, Amandinha entra em contato com a família para que possa respeitar a vontade da travesti. “A todo tempo, chame e reze pelo nome feminino”, sugere Amandinha.

MUDANÇAS
 
Na década de 1990, nenhuma travesti seria eleita para cargos políticos. “Não dariam nem oportunidade de a gente abrir a boca para falar de políticas públicas”, avalia Amanda, que assessora Duda Salabert, mulher trans que foi a vereadora mais bem votada na história da Câmara Municipal de Belo Horizonte.
 
Naquela década, a travesti mais famosa era a atriz Roberta Close. Duas décadas depois, já no século 21, a vivência de travestis artistas, que ganham visibilidade, contribui para eliminar parte do preconceito.

“Majur, Linna, Liniker vêm com música de dores. É uma música poética. Uma música para você tomar um vinho e ficar em casa, de noite, refletindo. A música delas não determina o gênero. Elas falam de dores. A Linna, no ‘BBB’, com todas as palavras e todos os conselhos dela, transita com o que a sociedade fez com que a gente refletisse como a gente era”, afirma.

Amandinha está se referindo a três cantoras travestis e negras.  Amandinha, que é negra, lembra que a condição é ainda mais difícil para a travesti negra. “A não ser que você seja famosa, blogueira ou ‘BBB’”, pondera.
 
Apesar de reconhecer a importância do holofote para a trajetória dessas travestis artistas, Amandinha lembra que a exposição na mídia também revela aspectos negativos. No próprio “BBB”, Amandinha lembra que, em alguns momentos, Linna não é completamente incluída. “Ela está do lado de duas mulheres pretas, uma que é professora, bióloga, e a outra que é manicure em Sabará, pessoas que são vulneráveis como a gente. Elas não têm abertura, são excluídas o tempo inteiro no ‘BBB’. Ela não faz parte daquele mundo. Eles não a acolhem”, diz Amanda.

As travestis nas artes

Apesar de o caso de Linn da Quebrada estar tomando proporções nacionais devido ao reality, várias pessoas trans sofrem diariamente agressões transfóbicas em Belo Horizonte. A cantora e compositora mineira Lua Zanella, que é uma mulher trans, relata que sair de casa na capital mineira é sinônimo de estar em contato com a violência e a transfobia. “Seja no olhar, numa fala, seja num atravessar de rua enquanto a gente passa”, conta.
 
Lua lamenta os ataques que Linna vem sofrendo na casa mais vigiada do Brasil. “É triste porque ela entrou na casa se apresentando como uma mulher trans e travesti e não está sendo respeitada”, afirma. A artista diz que está sofrendo gatilhos emocionais porque vê, em rede nacional, os ataques que sofre diariamente.
 
No ambiente on-line, a situação não é diferente. “A gente tem a opção de ficar dentro da nossa bolha. Mas a gente percebe que um pouco que a gente sai é violento para corpos como o nosso. Porque as pessoas temem aquilo que elas desconhecem”, afirma a artista, que também trabalha nas redes sociais para divulgar seus projetos.
 
Em sua arte, Lua aborda as vivências como mulher trans, entre vários outros assuntos da vida, como amizade, amor, festas e romances. “Acredito que a música tem um papel importante para que outras pessoas entendam o que a gente passa”, conta. “A música ‘Capeta’ cita como o olhar masculino pode ser violento ou objetificador em cima do corpo de uma mulher trans, que sempre é visto como uma diversão ou um passatempo.”
 
Assim como Lua, Linna também expressa suas vivências como mulher trans em músicas. A artista já lançou dois álbuns de estúdio, “Trava língua" e “Pajubá”, e duas produções em remix das canções do “Pajubá”.
A música “Eu matei o Junior”, do álbum “Trava língua”, fala sobre se assumir como uma mulher e “enterrar” seu nome “morto”, que é o nome de batismo. A cantora performou a canção no “Big brother Brasil”. Mas, mesmo com a manifestação artística, os outros brothers e uma parte do público continuam se referindo a Linna no masculino.

CONHEÇA A LINNA


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Alvos de preconceito nas ruas, as travestis enfrentam dificuldades também para ser aceitas na família, impor seu nome social e até no atendimento na saúde pública (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
 
Nascida na capital paulista, Linn da Quebrada  (foto) passou a infância e adolescência nas cidades de Votuporanga e São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. A família da artista seguia a religião Testemunhas de Jeová.
 
A artista abandonou a religião da família, saiu de casa e seguiu para a capital. Ela começou a trabalhar como performer em boates e cantava em bares e botecos. Em 2016, Linna lançou sua primeira música “Enviadescer” em seu canal no YouTube.
 
Linna também é próxima da mãe dela. Ela posta várias fotos da mãe nas redes sociais com legendas de amor. No início de 2022, Linna se reencontrou com seu pai depois de anos sem nenhum contato. A artista escreveu, na legenda da publicação no Instagram, que finalmente ela e seu pai estavam se conhecendo.
 
Em 2014, aos 23 anos, ela descobriu um câncer e precisou retirar um dos testículos. A cantora fez tratamento por três anos e está curada.  Linna estreou nos cinemas em 2017, no documentário “Meu corpo é político", que acompanha a vida da cantora e outros três ativistas LGBTQIA. Já em 2018, a artista protagonizou o documentário “Bixa travesty”, que conta sua história como mulher trans preta. O longa está disponível no Globo Play.
Ela estrelou a série “Segunda chamada” da TV Globo como a aluna Natasha do Colégio Carolina Maria de Jesus. A artista contracenou com Arthur Aguiar, que também está no “BBB22”.



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