Londres – A bravura dos indígenas krenak deixou o território sagrado do Rio Doce em uma jornada de 10 mil quilômetros, que levou seus líderes a enfrentarem, ontem, um batalha sob insistente chuva fina, vento cortante e frio de 3°C em Londres. A missão: defender os direitos dos atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, na primeira audiência que definirá, até o fim da semana, se a Justiça do Reino Unido pode julgar o caso e determinar uma indenização pelo desastre.
Os advogados dos atingidos pretendem responsabilizar a mineradora BHP Billiton, inglesa e australiana, pelas consequências do colapso da barragem, que era operada por sua subsidiária, a Samarco – a Vale é a outra proprietária da empresa brasileira.
Em frente à Royal Courts of Justice, onde fica o Tribunal de Apelação, os krenaks chamaram a atenção dos ingleses ao expor o drama enfrentado por toda a bacia do Rio Doce e por uma população de mais de 700 mil pessoas. Para isso, mostravam garrafas cheias de água turva de lama, com a etiqueta: River Doce (Rio Doce). Com faixas abertas na Avenida Strand, pediram “Justiça por Mariana”.
A inesperada manifestação de indígenas entre os edifícios vitorianos de Londres foi registrada pelas lentes de fotógrafos, cinegrafistas e curiosos da Inglaterra, o que pode despertar a simpatia da opinião pública londrina durante o julgamento.
Os cerca de 200 mil atingidos listados nessa ação são representados pelo escritório internacional PGMBM. A maioria é formada por pessoas físicas, mas os maiores valores pleiteados são referentes a 25 municípios mineiros e capixabas – incluindo o de Mariana, o mais devastado –, cinco autarquias, seis instituições religiosas e 530 empresas de diferentes portes. Estima-se o valor do processo em cerca de 5 bilhões de libras (mais de R$ 31 bilhões). O julgamento da ação está previsto para terminar na sexta-feira.
A Samarco operava a Barragem do Fundão quando ela se rompeu, em 5 de novembro de 2015, matando 19 pessoas – um corpo nunca foi encontrado – e devastando a Bacia Hidrográfica do Rio Doce entre Mariana e a foz, no litoral do Espírito Santo. Diante da falta de respostas da Justiça no Brasil, a intenção é processar no Reino Unido a BHP Billiton (BHP Reino Unido e BHP Austrália).
Dentro do tribunal, o julgamento se mostrou mais meticuloso do que o ocorrido em primeira instância, em 2020, e que considerou que o pedido dos atingidos não caberia à Justiça do Reino Unido, sem condições práticas para julgar o número grandioso de clientes e com risco de se sobrepor a ações em curso no Brasil. Essa decisão está sendo contestada pelos advogados do escritório PGMBM.
Desta vez, participam três juízes, incluindo o vice-presidente do Tribunal de Apelação, o que mostra a importância do caso, que pode se transformar no maior do Brasil e do Reino Unido em termos de valores e número de pessoas defendidas. Os advogados da PGMBM e da BHP Billiton concordaram inclusive em ampliar o tempo previsto para a audiência, devido à grande amplitude de argumentos.
E logo no primeiro dia essa dilatação de tempo se mostrou necessária. Os argumentos dos advogados dos atingidos foram sistematicamente submetidos a exames, reexames e sua validade posta em xeque em simulações de passos futuros e possíveis choques com as legislações brasileira e do Reino Unido, em caso de progressão da ação.
Com isso, o primeiro dia foi suficiente apenas para a sustentação dos advogados dos atingidos do escritório PGMBM. Para mostrar que há precedente para o pedido de julgamento de uma empresa inglesa com múltiplas vítimas, foi trazido o caso do derramamento de petróleo ocorrido na Nigéria, causado pela empresa anglo-holandesa Shell. Esse caso, julgado em 2017, tinha 15 mil pescadores africanos atingidos e prosseguiu, só não indo a julgamento devido ao fato de a empresa ter feito um acordo com pagamento de 55 milhões de libras (R$ 332 milhões).
NO BRASIL
Sobre a questão da competência da Justiça inglesa e do risco de sobreposição entre ações brasileiras e inglesas, os advogados do PGMBM lembraram que a maior causa coletiva no Brasil – a Ação Civil Pública do Ministério Público Federal (MPF), de R$ 155 bilhões –, está parada. Lembraram, também, que prefeituras como a de Mariana, que pode receber mais de R$ 1 bilhão em indenizações, não participam de ações em curso no Brasil, como milhares de clientes, que veem apenas no processo do Reino Unido uma chance de justiça.
O trio de juízes chegou a alegar que essas pessoas e entidades poderiam entrar na Justiça a qualquer tempo. Mas os advogados salientaram que o tribunal não pode trabalhar com possibilidades e que há remédios específicos para lidar com aqueles que, nesse caso, cometerem algum abuso. A BHP Billiton informa que os casos já são tratados no Brasil e que duplicariam demandas que já estão em curso, informando que mais de R$ 30 bilhões em reparação e auxílios emergenciais já foram pagos desde 2015.
Tribo diz que desastre sepultou suas tradições
As disputas da corte são intensas. Mas a dos indígenas, do lado de fora, não são menos duras. O grosso agasalho umedecido pela chuva e fechado até o pescoço mostrava como a manhã chuvosa londrina castigava o vice-pajé Tum Krenak, de 39 anos, que chegou cedo com outros quatro representantes da tribo do Rio Doce até a porta das cortes de Londres. A mesma vestimenta simbolizava determinação ao ostentar adereços rituais de penas sobre os ombros de um dos líderes da aldeia Atorã, de Resplendor, no Vale do Rio Doce.
"A gente está atrás de justiça. Morreu o espírito do povo krenak. O rio, que chamamos de Watu, era onde batizávamos nossos meninos. Era onde fazíamos os nossos rituais. Hoje, não podemos mais fazer nada, devido a esse crime. O rio está morto. Ele é da nossa religião e tem alguns costumes que para a gente acabaram, como o da caça da capivara, a pesca, os remédios do rio e as nossas religiões."
Para os krenaks, a injustiça que consideram ter sofrido no Brasil faz com que a esperança desse povo repouse sobre os tribunais do Reino Unido. “Até hoje não tivemos compensação. Espero que a justiça venha em relação a isso. Não tem preço que pague essa devastação, porque foi destruidor demais, grande demais, não tem jeito de recuperar mais a morte do nosso rio. Temos a nossa luta agora, porque temos a próxima geração de crianças. Queremos ter um futuro melhor para as nossas crianças, com educação, qualidade de vida e uma esperança de manter nossas tradições”, disse Tum Krenak.