Londres – A passos lentos, um olhar desconfiado e curioso, pela primeira vez desde que a Barragem do Fundão se rompeu em Mariana, em 2015, um atingido de Bento Rodrigues pisou em uma Corte que discute uma indenização coletiva. Não foi no Brasil, mas no Tribunal de Apelação das Cortes Reais de Justiça do Reino Unido, em Londres. Entre os juízes e advogados ingleses com suas tradicionais becas negras e perucas brancas, a bacharel em direito Mônica dos Santos, de 37 anos, representou, na manhã de ontem, os 200 mil atingidos que há seis anos lutam por uma indenização no Brasil e optaram por processar a mineradora anglo-australiana BHP Billiton no Reino Unido, uma vez que, ao lado da Vale, a companhia controlava a Samarco, responsável pela barragem que se rompeu. À tarde, uma das lideranças krenak também assistiu à audiência.
Mônica entrou por um acesso funcional do portentoso edifício de arcos de pedra e vitrais em estilo vitoriano, erguido em 1882 e que atrai turistas na capital inglesa. Ao lado dela, Cíntia Ribeiro de Freitas, uma das coordenadoras das equipes que desde 2018 preparam esse caso ouvindo e arrolando os pedidos dos atingidos da área impactada. A ação é movida pelo escritório internacional PGMBM.
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Mais de 700 mil pessoas foram atingidas pelos 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro despejados depois do rompimento ao longo da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, até a costa. Morreram 19 pessoas. A ação no Reino Unido tem valor estimado de 5 bilhões de libras (cerca de R$ 31 bilhões).
No interior suntuoso da edificação, Mônica se sentou para ouvir a sustentação dos advogados da BHP Billiton, que iniciaram ontem e terminam hoje a apresentação de suas considerações. “É difícil de aguentar. Ouvir alguém contra, principalmente por ter vivido todo esse crime”, desabafou. Quando perguntada sobre o que passava pela sua cabeça durante o julgamento presencial, ela engoliu em seco e a voz, por pouco, não saiu. “Voltei no dia do rompimento, quando vi que não tinha mais casa em Bento Rodrigues. Passei a noite na estrada. Não tinha visto a devastação. Achava que era apenas água suja, que eu ia entrar em casa e limpar, jogar alguns móveis fora e ter de batalhar para comprar as outras coisas. Mas quando clareou o dia e cheguei ao ponto mais alto não avistei mais a minha casa, não vi a igreja. Comecei a entrar em pânico. Meu mundo tinha acabado”, conta.
Mônica faz parte do movimento Loucos por Bento Rodrigues, que não abre mão do vilarejo dizimado pelo rompimento, exigindo que seja restaurado e entregue aos seu proprietários, mesmo em ruínas. Ela faz questão de dizer que é moradora de Bento Rodrigues, e não que foi moradora. “A estrada caiu com as chuvas, tivemos acesso apenas por dentro da Samarco, com horário para passar e tudo. Em dois domingos abrimos outra estrada para chegar até Bento, no braço mesmo”, conta. Ela afirma que a responsabilidade de representar os atingidos na Corte foi um peso e uma honra. “É um sentimento que não dá para explicar. Uma sensação de que estamos sendo ouvidos. De que está acontecendo algo de bom e que vai dar certo. Transmite essa confiança. Os juízes questionaram muito a BHP. Dá para ter essa confiança”, disse.
Em suas considerações, os advogados que representam a BHP Billiton tentaram estabelecer que a Samarco e a Fundação Renova já teriam sido consagradas por decisões na Justiça como as responsáveis pela reparação e as indenizações, o que eximiria a mineradora anglo-australiana de ser acionada no Reino Unido. “Nunca, em nenhum processo, alguém disse que a Samarco se esquivou de suas obrigações ou de culpa”, afirmou representante da empresa. Por outro lado, lembrou que por três anos a Samarco não conseguiu custear os programas da Fundação Renova, tendo as controladoras assumido esses aportes.
Em vários momentos, os três juízes que avaliam o caso pediram evidências de argumentos sustentados pelos advogados da empresa. Como quando foi dito que “o Brasil é o país do mundo com mais advogados per capita” e que “qualquer brasileiro pode conseguir acesso gratuito à Justiça, mesmo sem advogado, por meio dos juízes distritais – uma referência ao Juizado de Pequenas Causas –, e assim ter um amplo acesso (à Justiça) e ampla reparação”. Nos juizados de Pequenas Causas, contudo, o valor da ação está limitado a 40 salários mínimos. Além disso, na Lei 9.099 está previsto que não pode haver produção de prova pericial do dano sofrido, o que tem sido a principal razão de indeferimento de ações nesse foro na Justiça brasileira.
O prefeito de Mariana, Juliano Duarte, afirma que a Justiça no Brasil é muito lenta e vê na ação do Reino Undo uma forma de desenvolvimento do município depois de anos sendo prejudicado pelo fechamento e encolhimento de atividades. “O recebimento dessa indenização pode mudar a vida do município, dos comerciantes e dos donos de empresas. Nosso setor turístico pode ganhar novo fôlego. Mas não será uma batalha fácil. Mariana e as demais prefeituras do Rio Doce enfrentam a BHP, que é a maior mineradora do mundo, dona de um grande poder econômico”, afirma.
Em caso de vitória dos atingidos, o procurador-geral de Mariana, Frederico Faria, destaca que é importante que os recursos financeiros cheguem diretamente aos municípios, sem passar antes pela União ou pelo governo do estado. “Cada município tem suas necessidades específicas e assim poderá fazer valer o seu Poder Executivo constitucionalmente garantido, e aplicar (os recursos) da melhor forma, seguindo os interesses locais. Logicamente, isso se dará sob a fiscalização dos tribunais de Contas e do Ministério Púlico”, salienta o procurador-geral.