De repente, vidas agitadas e felizes se transformam radicalmente em dias nebulosos, provocados por um baque terrível, que deixará sequelas por longo tempo. Habituado a uma rotina intensa de trabalho, o bancário Luciano Guilherme de Barros, de 58 anos, hoje luta incansavelmente pela recuperação, depois de sofrer intoxicação provocada pela cerveja Belorizontina em dezembro de 2019. Durante meses, esteve entre a vida e a morte. Agora, se submete a um rigoroso tratamento para poder seguir em frente, de cabeça erguida.
Luciano é uma das 29 vítimas que consumiram a bebida e foram contaminadas com a substância dietilenoglicol. Dos afetados, 10 morreram. Desde então, os sobreviventes travaram uma árdua luta na Justiça pela reparação dos danos provocados pela Cervejaria Backer, hoje Três Lobos, responsável pela produção da marca. Ainda cercado por um cenário de revolta e incertezas por parte de quem viveu de perto a tragédia, a empresa obteve na semana passada a liberação do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) – confirmada pela prefeitura de Belo Horizonte e pelo Corpo de Bombeiros – para voltar a fabricar as cervejas em seu parque industrial, no Bairro Olhos D'Água, na Região Oeste de BH.
A decisão ocorre sem que os atingidos tenham recebido indenização da cervejaria por danos relativos à intoxicação. Ao todo, 10 pessoas foram indiciadas pela Justiça de Minas por lesão, tentativa de homicídio e contaminação de alimentos - eram 11 réus, no total, mas um deles morreu no fim do ano passado. O julgamento está previsto para 25 e 26 de maio, no Forum Lafayette.
Desde que consumiu a cerveja, Luciano viveu diversas complicações. “Estava internado desde o início de dezembro, mas foram descobrir o problema em 11 de janeiro, quando outras pessoas tiveram o mesmo problema. Fiquei internado e passei para o CTI em seguida. Foram 180 dias no hospital e 35 no CTI, sendo 28 em coma”, conta o bancário.
“A minha capacidade renal reduziu-se em 72%. Perdi 35 quilos nesse tempo. A cada três meses, tenho consultas com urologista e sou passível de fazer um transplante do rim. Perdi parte da audição, parte da visão e tive que retirar parte do intestino por causa do veneno que vazou para lá. Usei bolsa de colostomia. Todas as vítimas tiveram a parte urológica afetada. Fiz diálise no hospital durante meses”, complementa.
O cardápio diário também sofreu mudanças drásticas. “A alimentação hoje é diferente, pois não posso comer proteínas, carnes e leite. Tudo o que eu gostava não posso fazer. Mas você vai se acostumando com as sequelas”.
Apesar do abalo emocional e de todo sofrimento, ele fala em seguir firme adiante: "Infelizmente, minha mulher teve de parar de trabalhar depois de 27 anos para cuidar de mim. Teve gente que morreu, outros ficaram piores. Reclamar de que agora? Vou me esforçar para ter uma vida melhor. Estou evoluindo aos poucos e levando a vida do jeito que dá".
Enquanto Luciano luta diariamente pela reabilitação, a analista de gestão econômica Christiani Neves de Assis, de 43, não teve muito tempo para salvar a mãe, Maria Augusta, de 59, que se intoxicou com dietilenoglicol em dezembro de 2019, após ingerir a cerveja Belorizontina. Ela morreu dois depois de ser internada no hospital com sintomas de insuficiência renal. Maria Augusta sofreu sintomas como náuseas, vômitos, diarreia e paralisia facial, comuns às outras vítimas.
“Em abril de 2019, tinha perdido meu pai. E minha mãe estava se recuperando dessa perda, pois estavam juntos há mais de 40 anos. Foi muito assustador. Ela era muito saudável e não tinha problemas de saúde. Foi internada às 11h no dia 25 e morreu à 1h do dia 27. Foram pouco mais de 30 horas depois de dar entrada no hospital”, conta Christiani, que vem acompanhando de perto todo o processo judicial.
Ela vê com perplexidade o retorno da cervejaria às atividades e diz que uma indenização não apagaria todo o baque sofrido nos últimos dois anos: Temos sempre acompanhado o caso em busca de Justiça. Não fomos procurados pela Backer, não fomos indenizados e não temos qualquer apoio. Semana passada, já saiu a liberação para que eles produzissem no polo de BH. Para a gente, isso gera uma revolta e tristeza, porque ela acabou com nossas vidas. Sabemos que há um acordo em que ela só irá indenizar as famílias depois da volta do funcionamento. Queremos ser indenizados, mas o dinheiro não vai reparar o que ela fez, seja qual for o montante”.
Christiani revelou que as dificuldades financeiras são problemas comuns às famílias atingidas pela intoxicação da cerveja: “Se para eles é a única forma de feri-los, que isso seja feito. Temos que passar por dificuldades financeiras, cada uma à sua maneira, nos desfazendo de bens ou tendo que suprir a ausência do outro que era o pilar da casa. Esperamos justiça. É uma batalha diária, quando pensamos, escutamos ou começamos a esquecer o assunto. E aí vem à tona tudo de novo, o que nos faz sentir todas as dores novamente”, completa.
Processos na Justiça
As atividades da Backer estavam suspensas desde 2020, depois que o inquérito policial comprovou que as substâncias tóxicas vazaram para o interior de tanques de cerveja, apesar de a utilização delas não ser recomendada pelos fabricantes dos equipamentos.
Atualmente, existem processos na Justiça envolvendo a cervejaria nos âmbitos civel e criminal. A ação que prevê indenização para as vítimas ainda está em primeira instância. O processo está em fase de produção de provas periciais para depois ser encaminhado para julgamento na 21ª Vara Cível de BH.
“Já foi feito um acordo com a empresa para que eles arquem custos emergenciais de saúde, o que tem ocorrido. Estamos em negociação para tentar acordos para indenização como um todo. Cada pessoa será indenizada de acordo com a extensão de seu dano. Isso pode variar muito”, ressalta o advogado das vítimas, Guilherme Leroy.
No âmbito criminal, cinco responsáveis técnicos foram indiciados por homicídio culposo, lesão corporal culposa e por agirem com culpa na contaminação, além de um funcionário investigado, por falso testemunho, e o chefe da manutenção, indiciado por omissão. Por fim, três gestores da Backer foram processados por atos na pós-produção, sendo eles: Ana Paula Silva Lebbos, Hayan Franco Khalil Lebbos e Munir Franco Khalil Lebbos.
Em novembro de 2020, a 2ª Vara Criminal de Belo Horizonte acolheu, o pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e determinou a quebra do sigilo bancário e fiscal dos sócios-proprietários. A decisão previa o cancelamento de passaportes e a ordem para que os envolvidos não deixassem o Brasil, além da suspensão de atividades das empresas relacionadas à marca. Por sua vez, em maio do ano passado, a cervejaria anunciou a volta da comercialização a cerveja Capitão Senra, amparada por decisão judicial. A produção era feita na cervejaria Germânia, em Vinhedo, no interior de São Paulo.
Volta da produção
Na semana passada, a empresa havia divulgado nota afirmando que oferecia apoio às vítimas e que a volta da produção seria fator decisivo para ampliar a assistência médica e financeira. O comunicado alegou que a companhia manteria total interesse na apuração de toda e qualquer irregularidade relacionada à produção, contribuindo com os órgãos de controle e fiscalização.
Questionada pelo Estado de Minas, a cervejaria Três Lobos disse que vai zelar pela qualidade e pela segurança em seu parque industrial. “Observamos todos os critérios legais e técnicos para garantir a segurança dos produtos, referentes às condições dos tanques de fermentação e equipamentos que serão utilizados neste retorno. Estamos focados na melhoria contínua e na excelência em todos os processos.
Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento disse que o estabelecimento atendeu todas as exigências realizadas pela equipe de auditores fiscais federais agropecuários (AFFAs) da pasta. A liberação foi concedida de forma parcial para duas adegas no parque industrial da empresa. “As linhas de produção foram revisadas; houve substituição do fluido refrigerante para solução hidroalcoólica e revisão de todo o sistema de controle de qualidade, registros e rastreabilidade da empresa”, informou o Mapa.
“O processo de produção de cerveja no parque fabril foi iniciado em novembro de 2021, após aprovação da estrutura em vistoria executada pela equipe de AFFAs. Os produtos produzidos a partir da aprovação da vistoria foram informados semanalmente ao Ministério da Agricultura que realizou a apreensão cautelar e coleta de cada lote produzido e dos fluidos refrigerantes. As amostras coletadas, até a presente data, foram submetidas a análises de Monoetilenoglicol (MEG) e Dietilenoglicol (DEG) e os resultados indicaram ausência do contaminante”, continuou a pasta.
Segundo o ministério, o mesmo procedimento já aplicado até o momento será realizado na produção nas demais adegas ainda não utilizadas. “O estabelecimento passará por regime especial de inspeções periódicas com coletas de amostras para análises fiscais, avaliação das condições higiênico-sanitárias, sendo que tais inspeções obedecem ao cronograma estabelecido e em função de análises de risco”, diz a nota enviada ao EM.