O pesadelo das chuvas do início de ano ficou para trás, mas, embora os que tiveram a sorte de não ser atingidos hoje pouco se lembrem dele, para milhares de pessoas da Grande BH os prejuízos ainda são uma realidade duramente presente. Toneladas de escombros e entulho em ruas que antes esbanjavam vida, atividades e união comunitária hoje são o retrato dessa tristeza. Em um ambiente marcado por construções em escombros e rios poluídos, famílias inteiras tentam se recuperar do baque emocional e entender as causas de sofrimento tão prolongado. Três meses depois das enchentes que destruíram várias cidades às margens do Rio das Velhas e do Rio Paraopeba, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, vítimas ainda buscam a reconstrução dos lares e a reparação dos danos, em um cenário também de indignação e luto pela perda de pessoas próximas. Para mostrar um pouco dessa realidade, equipes do Estado de Minas percorreram os municípios de Betim, Mário Campos, Brumadinho, Nova Lima, Raposos, Santa Luzia e Sabará, a fim de revelar o drama de famílias que, em meio à insegurança, sonham em voltar à “vida normal”. A maioria delas passa por dificuldades e reclama não ter recebido ajuda financeira de órgãos municipais ou estaduais. Elas são apenas parte da memória de um período chuvoso que começou em outubro do ano passado, deixou um rastro de 30 vidas perdidas e mais de 9,5 mil pessoas desabrigadas em todo o estado. Hoje e amanhã o EM revela parte dessas histórias de gente que perdeu parentes e amigos, ficou sem nada, sofreu com o sofrimento do vizinho e segue lutando para sobreviver com dignidade. Nossa primeira parada é na maior das cidades atingidas, Betim, onde as marcas da cheia do Paraopeba ainda estão presentes nos bairros e nas vidas dos moradores. Em seguida, acompanhamos o rio e as histórias de desolação que como a lama se acumulam em outras comunidades às suas margens.
Em Betim, só o medo
é maior que os danos
Vanderlei Antonio da Silva, de 52 anos, mora às margens do Rio Paraopeba em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e em janeiro viu sua casa ser completamente inundada em consequência das fortes chuvas que fizeram o rio subir a ponto de cobrir até mesmo o telhado de seu imóvel. “Quando a água entrou na minha casa, fui para a do meu vizinho. Depois, fiquei um tempo alojado no colégio, mas tive que voltar”, recorda. Ele conta que a prefeitura mandou caminhões para retirar a lama da casa, mas foi o único momento em que teve qualquer tipo de ajuda. “Deram um jato d’água, removeram a lama e mandaram eu ajudar a tirar o barro”, conta.
Três meses depois, Vanderlei enfrenta, além do prejuízo material, o de saúde, agravado pelo fato de continuar dormindo no chão. “Eu perdi tudo, não tenho nada. A geladeira queimou e o fogão foi embora... Sinto uma enorme dor na coluna, porque estou dormindo no chão. A cama que eu tinha foi destruída. Ainda tenho de tentar recuperar e conseguir um colchão”, acrescenta.
Desempregado, ele tirava boa parte do seu sustento pescando no Paraopeba, mas há muito já não podia contar com essa renda, devido à contaminação das águas pelo rompimento da barragem de rejeitos do Córrego do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho, em 2019. “Veio um pessoal aqui... Pediram para eu não mexer em nada porque o rio está contaminado. Disseram que vão dar uma ajuda de custo, mas ninguém falou mais nada. Só chegaram e olharam que o rio está contaminado. Já cheguei a pegar 40 quilos de peixe por aqui em um dia, e hoje a gente não pode nem chegar perto da água”, lamenta.
Três meses depois das enchentes, agora ele sobrevive com o que restou de duas cestas básicas que recebeu. Reclama que ainda não ouviu falar de nenhum tipo de auxílio dos órgãos municipais ou estaduais. “Recebi duas cestas básicas que passaram distribuindo, e mais nada. Estou precisando de material para reconstruir o que a chuva levou, tenho que fazer muita coisa ainda. Mas, por enquanto, é só dor e sofrimento”, ressalta.
Ele dividia a casa com um amigo, Edvaldo Francisco de Oliveira, de 52, que tenta sobreviver com o que restou. “Moro aqui há 40 anos, mas nunca vi uma enchente como essa. Perdi tudo que lutei muito para conseguir: som, televisão, cama, colchão... A prefeitura levou minhas coisas. Falaram que iriam me dar outras, mas nunca mais apareceram”, conta. “Agora, estou morando em um barraco que tem aqui em cima, de um colega, de aluguel. Tenho a perna e o braço quebrados, não consigo trabalhar. Pego uns bicos para capinar lote, vendo tempero na rua pra conseguir pagar aluguel e comer”, completa.
‘Se fosse à noite, ia
matar todo mundo’
Na mesma região, Alzira de Fátima, de 58, tinha um sonho de construir um restaurante para tirar o sustento para os netos. Agora, no lote que mora junto a três famílias, só restou lama. “Na hora que começou a encher, tirei o armário, botijão, colchão... O resto ficou tudo”, aponta. “Achei que todo mundo ia morrer. Tinha o sonho de montar um restaurante aqui, para conseguir uma renda para ajudar os meus 17 netos. Mas meu sonho foi embora. Á água destruiu tudo”, afirma.
Depois de tudo o que aconteceu, ela não tem mais paz. “Tenho medo de isso acontecer de novo. Se fosse à noite, ia matar todo mundo. Além disso, também tenho medo de pegar alguma doença, já que agora aqui está cheio de caramujo”, diz, preocupada. “Ninguém passou aqui para informar os cuidados que temos que tomar, orientar sobre as doenças...”, completa.
Para os donos de uma mercearia próxima, o prejuízo inclui a perda de todas as mercadorias. Isabel Cristina, de 35, proprietária do comércio, explica que nunca havia visto uma enchente daquele nível. “Foi assustador na hora que a água do rio começou a subir. A enchente de 2011 veio aqui também, mas foi mais baixa e era só água. Dessa vez veio muita lama”, relata.
Para ela, faltou apoio: “Conseguimos tirar bastante coisa, com ajuda de muita gente, mas não tivemos nenhuma ajuda do poder público. Ficamos sem água, sem luz, nosso esgoto está entupido até hoje, qualquer chuva que der a água volta toda. Meu marido já pediu para a prefeitura, eles vêm aqui e limpam por cima e não desentopem. Só limpam a beira da rua.”
Entre o aluguel social e
o drama de sair de casa
Também em Betim, o Córrego Bandeirinhas, que deságua no Rio Paraopeba, foi afetado pela enchente e deixou casas imersas em água e lama. O casal Simone de Almeida, de 45 anos, e Ailton do Carmo, de 57, vive em uma rua em frente ao córrego há pelo menos dois anos, e também perdeu móveis. “Quando começou a encher, a água levou três dias pra chegar no nível acima de cinco metros. Nós corremos com as coisas. Levamos para outro cômodo, mas ele também encheu de água e perdemos sofá, cama, geladeira e várias coisas. Só salvamos os cachorros”, diz.
Eles foram orientados a se cadastrar no site da prefeitura para receber o aluguel social. O benefício de R$ 450 para os atingidos pelas chuvas foi aprovado pela Câmara de Betim em janeiro. “Vamos receber aluguel social, muita gente já saiu de casa, mas a maioria não vai sair de casa. Está todo mundo esperando uma indenização”, explica Ailton.
DEFESA CIVIL A reportagem do Estado de Minas entrou em contato com a Prefeitura de Betim, que sustenta que todas as moradias afetadas pelas tempestades do início do ano foram mapeadas e vistoriadas pela Defesa Civil municipal. Os imóveis foram classificados conforme o nível de segurança para os moradores, informou a administração, acrescentando que em casas consideradas seguras foi liberado o retorno dos moradores. Os demais foram orientados a deixar o local e direcionados para o recebimento do auxílio habitacional, informou o município.
“Além das inspeções, a prefeitura providenciou a limpeza das áreas após as chuvas e entregou para as famílias afetadas cestas básicas, kits de limpeza, kits de higiene, roupas de cama e colchão”, afirma a administração, em nota, acrescentando que as famílias afetadas recebem mensalmente, desde fevereiro, cestas básicas. “Ao todo, foram distribuídas 14.450 cestas básicas, sendo que 10 mil foram adquiridas com recursos do município e 4.450 com recurso do governo federal”, contabiliza.
A prefeitura afirma ainda que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semmad), criou uma equipe multidisciplinar com o objetivo de mover ação civil pública de reparação do dano ambiental sofrido nas regiões alagadas pelo Rio Paraopeba. “Por meio de um drone, está sendo realizada a sondagem para calcular a área e o volume de lama depositada na margem do rio. As análises foram enviadas para laboratórios especializados a fim de determinar os componentes químicos presentes na lama”, acrescenta. Segundo o município a providência permitirá determinar se a lama é proveniente de rejeitos do rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, da Vale, e determinar se é tóxica.
Com relação à queixa sobre os caramujos, apesar de os moradores se queixarem de falta de providências, a prefeitura informou que o Centro de Controle de Zoonoses e Endemias atua na região no controle da infestação, fazendo combate químico e orientando a população.