O Rio das Velhas, embora dura e continuamente agredido em seu trajeto de maior afluente do São Francisco, desde Ouro Preto até Várzea da Palma, é fonte de vida para o maior aglomerado urbano de Minas Gerais: a Região Metropolitana de BH. É dele que sai mais da metade da água consumida pelos cidadãos, empresas e setor público da Grande BH. Mas em janeiro, seu curso se tornou caminho de destruição, em uma resposta natural ao excesso de chuvas, mas também à ocupação irregular, ao assoreamento, ao despejo de lixo e a tantas outras agressões. Três meses depois, percorrer suas margens é encontrar repetidas histórias de desalento e de pessoas que tentam lutar com as próprias forças para se recuperar dos estragos. É o que mostra hoje a segunda parte da reportagem “Depois que a água baixou...”, que ontem revelou danos e descasos semelhantes na Bacia do Rio Paraopeba.
Honório Bicalho e as cicatrizes das cheias
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Werbert e seus assistentes evacuaram a área, mas viram ferramentas e veículos se perderem em meio à enchente. O mecânico calcula um prejuízo de R$ 80 mil somente em equipamentos, fora os carros dos clientes. Os danos causados pelas chuvas ficaram na sua conta. Três meses depois, ele trabalha diariamente para amenizar os prejuízos, mesmo estando ciente de que a luta está longe do fim.
“Quero recuperar os carros para entregar para os clientes. Trabalhamos com alguns modelos caros, como caminhonetes, que exigem peças caras. Tenho de fazer tudo por minha conta. Perdi a maleta de rastreador, que custava R$ 12 mil, ferramentas, máquinas, computador e aparelhos de som de clientes. Recuperamos algumas coisas, mas foi muito pouco”, afirma o mecânico, que nasceu na parte central de Nova Lima, mas cresceu em Honório Bicalho, onde trabalha.
Além do susto e da necessidade de comprar novas máquinas para trabalhar, Werbert lida diariamente com a insegurança. A todo instante, pensa nos momentos em que a chuva ultrapassa o volume normal para o dia, temendo novos transbordamentos. “Não tenho como pagar aluguel e sou obrigado a trabalhar na cara e na coragem. Estamos tentando, por enquanto, amenizar os prejuízos dos clientes. Sou pai de quatro filhos e meu único ganha-pão é a oficina. Venho trabalhando sem todas as ferramentas de que preciso. Tudo ficou difícil.”
Ele não foi contemplado pelo auxílio emergencial concedido pela Prefeitura de Nova Lima às vítimas das chuvas. No total, segundo o município, 672 famílias receberam o primeiro pagamento e 558 a segunda parcela do benefício, que prevê R$ 8 mil para cada grupo familiar. Até o momento, segundo a administração, foram pagos quase R$ 5 milhões às vítimas.
Segundo Werbert, uma irregularidade em relação ao CNPJ da empresa o impossibilitou de receber o auxílio. A prefeitura também alega que disponibilizou ajuda de R$ 10 mil às micro e pequenas empresas e de R$ 5 mil a microempreendedores individuais atingidos pelas enchentes. Além disso, foi disponibilizado microcrédito empresarial de R$ 5 mil a R$ 30 mil. Valores, de toda forma, bem abaixo do prejuízo calculado pelo mecânico.
Três meses depois das cheias do Velhas, o caso de Werbert está longe de ser exceção. Às margens do leito, é fácil observar rastros da tragédia de janeiro: é grande o volume de lixo, as árvores caídas e até mesmo restos de animais mortos boiando nas águas. A quadra de esportes do distrito de Honório Bicalho, que ficou debaixo d'água, virou uma grande poça de lama.
Bem próximo ao local, casas totalmente destruídas abrigam restos de histórias familiares: sapatos, roupas, quadros, móveis e até mesmo fotos de crianças deixados para trás por quem tentava se salvar dão a verdadeira dimensão da tragédia. Ao mesmo tempo, trabalhadores e máquinas pesadas continuam o processo de recuperação, que, mesmo chegado o fim da estação chuvosa, parece longe de terminar.
Corrente de solidariedade
Em meio ao panorama de perdas de moradias e móveis, uma grande corrente do bem se formou em Honório Bicalho. Muitos dos que não foram atingidos se mobilizaram para ajudar as vítimas do distrito de Nova Lima a recuperarem parte de sua vida, histórias e pertences. Foi o caso da dona de casa Maelen Karoline Machado, de 28, que reuniu um grupo para ajudar a limpar moradias atingidas pela enchente: “Deixei meus filhos com minha sogra para ajudar as pessoas a limparem suas casas, que estavam cheias de lama. Viramos noites e noites tentando tirar o barro. Ajudamos primeiramente nossos familiares e depois ajudamos outras pessoas. Além disso, arrecadamos doações. Ajudava a fazer um café, dava um lanche. Foi muito duro. Mas a gente tentava ajudar da forma que podia”, recorda-se.
“Graças a Deus, não fui atingida, pois moro no segundo andar. Mas minha dor foi a mesma, pois meu irmão e meus tios perderam tudo. Você olha para o fundo da rua e acaba ficando triste”, afirmou Maelen, que relatou a dificuldade encontrada por várias pessoas para se restabelecerem. “Desde a enchente, recolhemos nomes de pessoas atingidas. Foi liberado um auxílio emergencial de R$ 8 mil. Mas o que são R$ 8 mil perto de tudo o que as pessoas perderam? Muitos não perderam somente geladeira ou fogão. Perderam parte da casa, ficaram sem moradia. Foi oferecido o aluguel social, mas a pessoa deveria se virar num momento de fragilidade para procurar casa em outro lugar. Além disso, o teto era de R$ 880. É muito difícil”, conta.
Raposos encara um baque atrás de outro
Um famoso dito popular sustenta que “dois raios não caem no mesmo lugar”. Mas, para moradores de Raposos, na Grande BH, o drama provocado pelas chuvas foi repetido, e certamente pode trazer lições para os próximos anos. Depois de ficar debaixo d’água em 2020, o município de 16,5 mil habitantes voltou a sofrer os efeitos dos alagamentos em janeiro, mas desta vez em intensidade maior.
“Nem tínhamos nos recuperado de um baque e veio outro pior”, afirma a cuidadora de idosos Joelma Juliana Gonçalves, de 45 anos, que viu geladeira, fogão, colchão, móveis e utensílios carregados pela correnteza. Para ela e o marido, Herval Silva, o prejuízo foi duplo, pois a loja do outro lado da rua que eles alugavam para um comerciante – que antes teve toda a parte elétrica reformada pelo casal – também foi inundada pela lama.
Os primeiros dias depois dos alagamentos foram os mais sofridos. “Você vê a água subindo e não pode fazer nada. Tivemos que ficar fora de casa. Uma pessoa nos emprestou um barraco numa área mais alta para termos onde dormir, senão teríamos ficado todos na rua. Foram danos que não tem como estimar”, relembra a cuidadora.
A partir daí, segundo ela, o medo passou a ser o sentimento predominante da família. “Sempre temos de vigiar. A gente fica pensando se o drama vai vir outra vez, se a água vai subir de novo. Estava habituada a ver o rio subir até o começo da rua, mas do jeito que aconteceu em 2020 e 2022 foi algo surreal. Ficamos com trauma. O rio está com todos os rejeitos de mineradoras.” Segundo ela, comprar todos os objetos perdidos tem sido um sacrifício a mais, que continua sendo pago: “Tive que fazer dívidas enormes e comprar parcelado. O bom é que todos nos conhecem aqui na cidade e isso gera confiança na hora de comprar”.
O comerciante Izael Costa, de 54, ainda tem vivos na memória os momentos de tensão de quando tentava escapar da enchente. “Essa enchente foi pior que a anterior. O rio subiu uns 9 metros e meio. Subiu 1 metro e meio acima do segundo andar da casa acima da minha mercearia. Virou um cenário de guerra”.
Além dos freezers, Izael perdeu quase todas as mercadorias que tinha para vender. Ao ver a água subindo rapidamente em direção ao seu estabelecimento, não pensou duas vezes e fugiu, deixando tudo aberto. O prejuízo chegou a R$ 40 mil, segundo o vendedor. “Temos de nos apegar a Deus e olhar para a frente, senão a gente desanima”, afirma.
Izael lamenta diz que a enchente agravou a crise provocada pela pandemia, que o fez contrair dívidas. “Estava negociando nossos débitos. Já vínhamos com problemas de 2020 e em seguida veio a pandemia. A nova enchente piorou tudo. Sofri três vezes, e tive de ficar com a loja fechada”, diz.
De acordo com a Prefeitura de Raposos, os atingidos pelas chuvas foram atendidos com doações de materiais de limpeza, de higiene pessoal e cestas básicas, além de utensílios domésticos, como fogões, colchões e armários. O município atende aos critérios do Cadastro Único do Governo Federal. Além disso, a prefeitura prevê a distribuição do auxílio Recupera Minas, do governo estadual – o cartão com a primeira parcela, de R$ 400 por beneficiário, totaliza a quantia de R$ 1.200 em três meses.