Inocentes, pequenos pássaros piavam ao saltar entre as árvores em três bosques, de uma mata a outra. Beija-flores alheios às decisões dos homens mergulhavam em arbustos de flores coloridas. No solo duro e escuro de canga de minério de ferro, aranhas teciam teias para capturar alimento, besouros corriam para não se tornarem presas e cactos raros, ameaçados de extinção, tomavam sol formando canteiros com outras espécies dos campos rupestres. Todos os habitantes desses ninhos, tocas, teias e jardins estão com os dias contados, pois a sua morada e hábitat já pode ser desmatada, escavada e eliminada de um trecho da Serra do Curral.
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As permissões causaram indignação em boa parte da população, movimentando ambientalistas, promotores, procuradores, vereadores, deputados estaduais e a Prefeitura de Belo Horizonte. A área do empreendimento é de 1.250 hectares (3,7 vezes o tamanho do Parque das Mangabeiras), onde serão abertas estradas, pátios de beneficiamento, três escavações (cavas) de extração de minério de ferro e duas pilhas de rejeitos, o que pode trazer impactos e, segundo ambientalistas, comprometer a cadeia montanhosa que é um símbolo mineiro.
As denominadas Cava Norte e Cava Oeste, segundo os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto ao Meio Ambiente (Rima) encomendados pela própria empresa circundam a posição do Pico Belo Horizonte, o ponto culminante da Serra do Curral. A escavação para retirada de minério ao norte ficará a apenas 500 metros da formação montanhosa mais alta da cadeia, enquanto a Oeste é a mais preocupante, situada a apenas 150 metros da montanha, abocanhando e ameaçando, inclusive, a sua base de sustentação. Alerta já feito pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e pelo Ministério Público (MP) de Minas Gerais.
A Cava Norte, com mais de seis hectares, se abrirá do outro lado dos taludes interditados da Mina de Pau Branco, da mineradora Empabra, barrada pelo poder público e principalmente pela PBH de continuar atuando no sopé do Pico Belo Horizonte. O local é severamente degradado, com erosões e desmoronamentos, carecendo de medidas de recomposição. Os receios são de que qualquer atividade minerária nesse local fecharia a chamada Trilha das Aguinhas, que perpassa vales íngremes como cânions e é um dos sonhos de circuitos do ecoturismo para aventureiros e trilheiros.
Mas a responsável por tirar o sono dos que não querem a mineração na Serra do Curral é a Cava Oeste, bem abaixo do Pico Belo Horizonte e com cerca de 22 hectares, quase três vezes a mancha de destruição prevista para a escavação norte. Além da proximidade com o pico que compõe a visada da crista da serra, a área prevista para ser desmatada e escavada é recheada de vida.
Sobre a canga, que é um solo composto de minério duro e escuro, a natureza conseguiu criar extratos orgânicos que sustentam gramíneas, trepadeiras, ramos, arbustos e árvores em três grandes bosques distintos. Nessas matas, que tingem o preto e o cinza da canga de verde, há ninhos de pássaros, flores para os beija-flores das montanhas e os terrenos de caça de aranhas e besouros.
Entre flores, arbustos espinhosos e árvores de troncos tortuosos se alastram os pequenos cactos ameaçados Arthrocereus glaziovii (Cactaceae), que afloram em grupos pequenos buscando espaços nas fraturas das rochas. A espécie só existe na Serra do Espinhaço, mais especificamente no Quadrilátero Ferrífero, onde tem perdido espaços para a mineração. Para a instalação da Cava Oeste do empreendimento, todo esse ecossistema será desfeito, podendo ser dizimado do local.
“Além de representar mais perda de áreas de ecossistemas de cangas, há espécies ameaçadas que serão atingidas e impactadas pela perda e fragmentação do seu hábitat. Destacam-se a perereca-de-folhagem-com-perna-reticulada (Pithecopus ayeaye) e o cacto Arthrocereus glaziovii, endêmico das cangas do Quadrilátero Ferrífero. Ambos têm na mineração sua principal ameaça e já foram impactados por outros projetos de compensação, por supressão na mata atlântica, pautados e aprovados”, afirma a ambientalista Maria Tereza Viana de Freitas Corujo, que participa, entre outros, do SOS Serra da Piedade, Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela e Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM), reforçando um dos pareceres contrários ao empreendimento, proferido pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg).
A área que a Tamisa pretende minerar também pode impactar uma série de cavernas, das 49 identificadas pelos EIA e Rima encomendados para viabilizar a atividade. De acordo com o professor de química Luciano Faria, pesquisador em espeleologia e ambientalista, pelo menos duas cavernas de média e alta relevâncias científicas estão exatamente dentro de uma das cavas, a Oeste, e fatalmente serão desmanchadas. “Sem falar da proximidade muito grande de outras cavernas de alta importância, sendo que uma das ameaçadas é de máxima relevância e não poderia sofrer impactos diretos ou indiretos, estando a menos de 300 metros do projeto e tendo em seu interior uma espécie de aracnídeo que foi tão pouco estudado que nem nomenclatura recebeu ainda. A meu ver, um projeto desses jamais deveria ser licenciado”, critica.
Ciclistas preparam abraço simbólico
Ana Magalhães*
Grupos de ciclistas de Belo Horizonte e região metropolitana vão fazer um movimento em defesa da Serra do Curral no domingo. Com saída prevista para as 8h, os ciclistas pretendem pedalar da Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul da capital, até a Israel Pinheiro, mas conhecida como Praça do Papa, no Bairro Mangabeiras, em ato que culminará em abraço simbólico no cartão-postal natural da capital mineira.
Até ontem, 13 grupos de pedal já haviam aderido à ação. “É importante que todos nós possamos defender a fauna, a flora, as nascentes e as futuras gerações. A atividade da mineração é muito importante, porém com as duas feridas abertas em Minas Gerais (os desastres de Mariana e Brumadinho), é preciso tomar muito cuidado e estudar bastante, sobretudo por conta da adutora presente no local”, disse o organizador da ação e criador do grupo Thod, Gilberto Gonçalves, de 51 anos.
Segundo Gilberto, o licenciamento do projeto de mineração da empresa Taquaril Mineração S.A. (Tamisa) acelerou a decisão sobre o movimento, que já vinha sendo cogitado antes. “Já tem um tempo que estávamos pensando em fazer algo relacionado à Serra do Curral e ao Pico BH, pois temos uma ligação muito forte com esses locais. Os grupos de pedal costumam praticar a modalidade esportiva nesses lugares e, com as últimas notícias, nos empenhamos em fazer o movimento”, contou.
O corredor destinado ao complexo minerário da Tamisa é usado como trilha por ciclistas. “Lá está uma antiga linha férrea abandonada, que é patrimônio histórico do Brasil, e, dessa maneira, para fazer qualquer projeto é necessário conseguir aprovação dos órgãos públicos. Queríamos fazer a Ouro Trilha, que liga BH a Ouro Preto, e não conseguimos porque ainda não tivemos autorização do Departamento Nacional de Infraestrutura de Trânsportes (Dnit). Como uma mineradora tomará ‘posse’ da estrada? ”, questionou o organizador da ação.
O acesso ao Pico BH também é outra questão, pois os grupos de pedal não sabem se poderão continuar frequentando o ponto turístico. “Estamos também pre- ocupados se, após a instalação da atividade mineradora, o pico sofrerá alguma erosão ou dano irreparável”, completa Gilberto.
Apesar de admitir a possibilidade de o movimento perder alguma força pelo fato de domingo ser Dia das Mães, Gilberto não desanima. “É uma ótima data, já que a ‘mãe natureza’ precisa de todos nós e, como ela não tem, digamos assim, uma voz, podemos nos manifestar por ela”, defendeu.
O Juntos na Bike é um dos grupos que participarão do ato no domingo. “Recebemos o convite e estamos mobilizados para proteger a Serra do Curral e a sua preservação. A partir das redes sociais, fomos nos juntando para defender a causa”, contou Gleiberson Fernando, de 39, idealizador do grupo esportivo.
* Estagiária sob supervisão da subeditora Rachel Botelho