A última semana de recordes negativos de temperatura colocou à prova em Belo Horizonte o ditado popular segundo o qual “Deus manda o frio conforme o cobertor”. Com termômetros despencando, na quinta-feira (19/5), a cidade registrou 4,4°C na Estação Cercadinho, no Buritis, Região Oeste, a menor marca entre todas as capitais brasileiras e o dia mais frio para um mês de maio na história da cidade, segundo os registros do Instituto Nacional de Meteorologia.
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Leia: Veja como ajudar a população carente em Belo Horizonte
Em um dos pilares que o ajudam a se esconder do vento, pintou com tinta azul e com letras bem grandes o pedido: “Precisamos de blusa de frio…” Teve a ideia uma semana antes de a frente fria chegar, de forma que quando esfriou já havia recebido casacos e cobertores. Tantos que não soube precisar em números, mas que permitiram que ele pudesse ajudar outras pessoas que vivem embaixo dos viadutos da região. “As roupas que não servem para nós, doamos para o pessoal. Recebemos e distribuímos”, contou.
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Em um dos pilares que o ajudam a se esconder do vento, pintou com tinta azul e com letras bem grandes o pedido: “Precisamos de blusa de frio…” Teve a ideia uma semana antes de a frente fria chegar, de forma que quando esfriou já havia recebido casacos e cobertores. Tantos que não soube precisar em números, mas que permitiram que ele pudesse ajudar outras pessoas que vivem embaixo dos viadutos da região. “As roupas que não servem para nós, doamos para o pessoal. Recebemos e distribuímos”, contou.
Um dos agasalhos que recebeu, um casaco esportivo preto, usava na manhã de sexta-feira (20/5) com um gorro na cabeça, quando se preparava para sair para catar papelão e outros materiais recicláveis que serviriam para pagar a refeição do dia. No local em que mora com o irmão e dois conhecidos, as cinzas são testemunhas das fogueiras acesas no dia anterior.
No frio incomum do outono, a forma primordial de aquecimento é das poucas opções que restam a quem vive ao relento. Ao lado de um dos restos de fogo, chama a atenção um jardim de pimenta que plantou, uma tentativa de tornar lar improvisado mais aconchegante.
No frio incomum do outono, a forma primordial de aquecimento é das poucas opções que restam a quem vive ao relento. Ao lado de um dos restos de fogo, chama a atenção um jardim de pimenta que plantou, uma tentativa de tornar lar improvisado mais aconchegante.
Thiago é muito grato a quem doou cobertores e agasalhos, mas confessa que ali, no relento, principalmente de madrugada, as peças amenizam o frio, mas não são suficientes para impedir o sofrimento com a queda das temperaturas. “O frio aqui é demais. O jeito é deitar e tentar se esquentar o máximo possível. Mas, graças a Deus, estou aqui lutando”, conta ele, que veio de Governador Valadares há um ano e meio. Desde então, vive na rua.
MUDANÇA DE CLIMA
O frio neste maio de madrugadas congelantes surpreendeu muita gente, mesmo que as provações sejam infinitamente menores. A assistente social Adriana Muzzi, de 57, mesmo muito agasalhada na manhã de sexta, admitiu que não esperava tanto frio no bairro para o qual acabou de se mudar – há três dias, ela trocou o Gutierrez pelo Buritis. “Percebi muita diferença na temperatura. Moro no oitavo andar, então venta muito, faz muito frio.”
Hora, então, de tirar todo o arsenal de agasalhos e cobertores do guarda-roupas. Cachecol, por exemplo, virou item indispensável. Para ajudar a enfrentar o frio, outra estratégia é se recolher mais cedo. “Dormia por volta das 23h e agora às 21h30 já estou na cama”, conta. Para dar uma mãozinha humana ao ditado do “frio divino do tamanho do cobertor”, ela procura fazer a sua parte e, nestes dias gelados, doou itens como agasalhos e cobertores.
Devido à altitude, o Buritis é um bairro em que as temperaturas costumam ser mais baixas do que em outros pontos da cidade. Lá da fachada do oitavo andar de um edifício na Rua José Hemetério Andrade, André Soares da Silva, de 29, tinha visão panorâmica em uma das áreas mais altas. Içado por cordas, limpava o revestimento externo do prédio com jatos d'água em momento em que os termômetros marcavam 9°C para quem estava no nível do solo. Naquela altura, a sensação era de três graus a menos, na avaliação dele. “Para um serviço como o nosso, o frio é ruim. Nós trabalhamos em altura e atrapalha um pouco”, disse. Para aguentar, só usando três casacos.
E se o agasalho não dá conta sozinho da friagem, o jeito é perseguir os raios de sol para ajudar. Robson Egita, de 44, recorreu a eles enquanto esperava o transporte que o levaria ao trabalho em um supermercado. Morador do Bairro das Indústrias, às margens do Anel Rodoviário e próximo a um córrego e uma área de mata, para ir ao trabalho, às 6h, o jeito é se proteger como dá. “Saio de calça, bota, procuro me agasalhar todo. Uso luvas e blusa de frio para ver se aguento.” Em casa, ele também se socorre do fogo nos dias mais gelados. “Tem que fazer fogueirinha”, confessa, sem abrir mão de touca e luvas para dormir.
BH perto de zero
De acordo com a meteorologia, este é o maio com temperaturas mais baixas em BH. Contra os 4,4°C de quinta-feira, o recorde anterior do mês era de 7,5°C, em 1977, no dia 20. Mas a menor temperatura já registrada foi em junho: 3°C, em 1961. Para hoje, a previsão é de mínima de 10°C.
Pouca esperança sob viaduto e a bandeira
A Bandeira do Brasil fica hasteada em meio às barracas que ocupam um dos espaços embaixo do Viaduto Leste, um dos acessos à área central de Belo Horizonte. Entre as moradias improvisadas, pessoas que vivem em situação de rua acendem uma fogueira para espantar o frio do outono com temperaturas de inverno que se instalou na capital.
O fogo ajuda a vencer as madrugadas congelantes, mas Jason Carlos, de 43 anos, se queixa da falta de agasalhos e cobertores. Ele vive nas ruas da capital mineira há seis meses, desde que veio de Santos (SP) com o objetivo de ajudar uma prima. O lugar onde vive foi forrado com uma lona preta onde se lê pelo lado de fora a palavra “brasileiro”, escrita incompleta.
A prima, que enfrentava um relacionamento abusivo, conseguiu se separar, mas Jason acabou indo viver debaixo do Viaduto Leste. Em meio ao processo de mudança de estado, ele conta ter perdido todos os documentos. Por isso, afirma, não consegue voltar para a cidade natal, não tem acesso a programas assistenciais e não consegue arranjar emprego. “Procuro me agasalhar e ficar dentro da barraca, mas está sempre faltando alguma coisa”, diz.
Quando o frio vem acompanhado de vento, a situação para quem mora na rua fica ainda mais dramática, conta. Além da piora na sensação térmica, há o risco de que a barraca seja desmanchada. Na rua, em meio à poeira, ao pó de asfalto e à falta de água, as roupas acabam virando itens descartáveis. Por isso, Jason considera que as doações são uma ajuda indispensável.
“A prefeitura poderia arrumar uma barraca para nós. Nesta época, bate o vento e a pessoa perde tudo. É só ver as barracas voando.” A carência de agasalhos, muitas vezes, é também de comida. A realidade de Jason e de quem vive ali na Vila dos Cachorros – como identifica um letreiro em um dos pilares do viaduto, é de apenas uma refeição ao dia. Os sem-teto recorrem ao Restaurante Popular mantido pela prefeitura ou dependem de doações. Muitas vezes, eles ainda têm que decidir se vão comer ou alimentar cães e gatos que lhes servem de companhia fiel.
Enquanto olha para a Bandeira do Brasil, que é de um colega, Jason diz que não tem muita esperança com o futuro do país. Sem documentos, inclusive sem título de eleitor, ele diz que não sabe ainda se vai votar nas eleições de outubro. De toda forma, pede ao futuro comandante do país que olhe para as pessoas em situação de rua. Mas confessa que não espera muito.
“No Brasil, quem tem mais tira de quem tem menos”, reflete. Segundo ele, a lógica se repete até na hora de ajudar. Jason acredita que algumas pessoas levam agasalhos ou alimentos aos moradores de rua para “fazer marketing pessoal”. “É gente que tem interesse em fazer propaganda da doação. Um dia desses mesmo tinha um 'tik toker' fazendo uma filmagem aqui para ganhar dinheiro em cima da gente, da nossa miséria”, diz.
E esse contingente vai crescendo, enquanto o frio aumenta. Laércio Antônio Costa Marques, de 29, chegou esta semana de João Monlevade, na Região Central de Minas. Sem ter para onde ir, juntou-se ao grupo que vive sob o Viaduto Leste. Chegou com a roupa do corpo: uma blusa de malha vermelha, uma calça preta e chinelos. “Minha intenção é arrumar serviço como ajudante de pedreiro”, conta.
No pescoço, ele tem a palavra “fé” tatuada. Mas procura esconder. Teme que as escritas no corpo atrapalhem de conseguir trabalho. Ao futuro presidente do Brasil, ele pede que olhe para os moradores de rua. “Nós também temos sonhos. Também somos dignos de oportunidades.” Entre as oportunidades mais urgentes, ele pede um cobertor e um emprego. O relógio marcava 15h e Laércio ainda não tinha almoçado. Na verdade, não fazia ideia de como poderia conseguir a refeição do dia.