“Só se colocarem a gente na lua, porque morador de rua tem em todo lugar”. A frase é uma das muitas reclamações proferidas por quem vive o desafio diário de tentar se abrigar nas ruas de Belo Horizonte. Grades, pedras e outras intervenções acrescentam um obstáculo para quem tenta escapar da chuva e do frio na capital, onde lojas e edifícios residenciais tentam alternativas para evitar a concentração de pessoas ao seu redor.
De acordo com registros do CadÚnico, Belo Horizonte tinha mais de 9 mil pessoas em situação de rua em dezembro do ano passado. Em março deste ano, o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a população em situação de rua, plataforma de direitos humanos do Programa Polos de Cidadania da UFMG, calculou que há uma subnotificação de 45% a 50% nos dados, o que indica que, na realidade, o cenário da vulnerabilidade extrema na capital mineira é ainda mais grave.
A chegada repentina do frio na última semana levantou a discussão sobre os riscos para a população em situação de rua. Com albergues e casas de acolhimento lotados, a situação de quem teve de passar as madrugadas gélidas sem um teto é agravada pelas intervenções no espaço urbano consideradas indevidas pelo professor e coordenador do programa Polos de Cidadania da UFMG, André Luiz Freitas Dias.
“Comerciantes, assim como prédios domiciliares colocarem grade embaixo de marquises tem um nome só: apropriação de espaço público, indevida, obviamente. Não deveria ser tolerado e permitido. Se alguém fizer isso, a prefeitura tem que intervir imediatamente, porque é algo irregular. Agora a própria prefeitura colocar pedras, estacas, bancos para evitar deitar é uma prática higienista, discriminatória, excludente e que só sinaliza para uma cidade que é produzida para quem pode consumi-la”, avalia o especialista.
Para o professor, a existência dessas estruturas que limitam o acesso ao espaço público é reflexo de uma política de aproveitamento das cidades baseada na exclusão e fere preceitos constitucionais do país.
“Pela Constituição Federal e pelo próprio estatuto da cidade, a lógica deveria ser outra, deveríamos estar construindo uma cidade para o bem comum e para o uso compartilhado.
Se eu estou em situação de rua, qual opção eu tenho? Não existe opção de moradia. Nem a marquise, nem a praça, nem debaixo do viaduto. Onde eu posso ficar nessa cidade?”, questiona.
A análise de André Luiz encontra eco na reação de quem está em situação de rua. Ponto onde muitas pessoas se concentram para passar a noite, as ruas do bairro Barro Preto próximas à Avenida do Contorno têm recebido grades nos últimos meses. Na Rua dos Tamoios há um quarteirão com grades de ambos os lados: uma instalada há sete meses, outra há duas semanas; uma em frente a um estabelecimento comercial e outra na entrada de um prédio residencial.
No local, a reportagem conversou com quem costuma passar a noite na região e ouviu as queixas. “Eles pensam que são donos da rua, isso é para expulsar o morador de rua, pra gente não ter lugar de ficar”, disse um homem que costumava se abrigar embaixo de uma das marquises, agora gradeada, para se proteger durante à noite.
O estoquista Wilson Duarte trabalha em um dos estabelecimentos da região que instalou grades na calçada. Ele conta que não se sente bem com a situação, mas também reclamou da sujeira no ambiente quando chegava para a labuta durante a manhã: “colocaram essa grade aqui de fora a fora e o pessoal saiu. O ruim é que ficava muito sujo aqui na porta, a gente fica com dó, mas fazer o quê?”.
Política pública de moradia
Sancionada no início deste mês, a lei estadual 24.082 estabelece que ações de moradia devem ser a primeira etapa na política de atendimento à população em situação de rua em Minas. Para o coordenador do Polos de Cidadania, a lei é importante, pois estabelece corretamente as prioridades no atendimento a quem está em situação de vulnerabilidade social.
“As principais alternativas efetivas para a garantia de direitos da população em situação de rua são um investimento massivo em políticas públicas estruturantes para moradia e o combate sistemático do racismo estrutural nas cidades, instituições e sociedade. Nesse sentido, a lei estadual está no caminho correto, certíssimo”, afirma.
Ainda assim, o professor da UFMG ressalta que medidas emergenciais são necessárias para assistir à população nas ruas. Durante dias de muito frio, por exemplo, os abrigos são fundamentais para oferecer uma opção de fuga das baixas temperaturas. Para o especialista, BH falha na oferta de vagas em casas de acolhimento.
“Existem 2.200 vagas em acolhimentos provisórios na cidade. Dessas 2.200 vagas, somente 600 estão no que a gente chama de modalidade ‘casa de passagem’, que é o equipamento público que a pessoa entra de maneira espontânea. As outras 1.600 vagas a pessoa tem que entrar em um fluxo de encaminhamento que pode ser restritivo. E Belo Horizonte tem mais de 9 mil pessoas em situação de rua”, critica.
Uma discussão racial
“A política de moradia para população em situação de rua deve ser vista como uma medida de reparação histórica para a população negra. 84% da população de rua que se declara negra em BH. Estamos falando de um fenômeno social complexo marcado por um racismo estrutural que historicamente deixou e deixa marcas em determinadas existências em nossas cidades”, aponta André Luiz Freitas Dias.
Para o especialista, não existe coincidência na estatística que aponta esmagadora maioria de negros dentre os mais vulneráveis. O professor defende a racialização da discussão para enfatizar que a discriminação sistematizada durante séculos está na raiz da desigualdade social e na formação de espaços urbanos excludentes, como pedras, estacas e grades tornam visível aos olhos.
“A população em situação de rua é um fenômeno complexo e mundial, mas que no Brasil especificamente está muito marcado pelo racismo estrutural. A população negra nas cidades ou está nas ruas, ou nas vilas e favelas, ou nas cadeias ou em hospitais psiquiátricos”, conclui.