A Rainha Conga do Estado Maior de Minas Gerais, Isabel Casimira Gasparino, prestou uma homenagem aos antepassados negros e negras, que podem estar enterrados na Rua da Bahia no Centro de Belo Horizonte. Marcado pelo toque da caixa (um tambor usado nas cerimônias dos Reinados), foi evocada a memória de homens e mulheres negras que viveram na região, antes mesmo da construção da capital conduzida pelo engenheiro Aarão Reis.
A homenagem foi um dos momentos da Expedição "Largo do Rosário: uma expedição pelo território negro em Belo Horizonte" realizada neste sábado (28/05). Durante o evento, foi anunciada que a próxima etapa de resgate histórico do Largo do Rosário será a realização de uma sondagem arqueológica para buscar evidências da presença da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e do cemitério da irmandade negra.
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Vice-presidente da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, a rainha Belinha acompanhou o padre Mauro Luiz da Silva, um dos responsáveis pela pesquisa histórica e trabalho de reconhecimento do Largo do Rosário. A ação destaca que as irmandades tiveram papel fundamental para a população negra que vivia no Curral Del Rei antes da transferência da capital de Minas de Ouro Preto para Belo Horizonte.
"Ali podem estar irmãos e irmãs do rosário. não tem documento que faz a traslado para o Cemitério do Bonfim", afirma o sacerdote, que realizou pesquisa de doutorado resgatando a história de comunidades negras que foram retiradas de onde viviam para a construção da capital de Minas.
Padre Mauro integra o grupo de pesquisadores, com o arquiteto Thiago Fialho e com o arqueólogo Fernando Costa, que propõe a sondagem arqueológica em busca de artefatos do séculos XVIII e XIX. O sacerdote explica que, no primeiro momento, será feita uma sondagem sem que haja perfuração, "uma espécie de ultrassom" do solo, e, de acordo com os achados, o grupo poderá solicitar ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) autorização para perfurar o solo para dar sequência à pesquisa arqueológica.
Nessa sondagem, os pesquisadores esperam encontrar o alicerce da capela, a muralha que cercava o espaço cemiterial e até mesmo identificar as sepulturas. "A expectativa é pequena. Mas o que sabemos é que, no local, foi colocada terra e não retirada", diz, aspecto que reforça a esperança de encontrar algo. Ele destaca que o Largo do Rosário recebeu a população negra por cerca de 90 anos até a demolição.
Lei do Padroado
A Lei do Padroado (que organizava a relação entre a Santa Sé e o Reino de Portugal no período colonial) previa que o sepultamento, nas colônias, era uma prerrogativa da Igreja Católica. Mas, em muitos locais, os negros estavam vinculados às estruturas católicas por meio das irmandades. Portanto, para que os negros pudessem ser sepultados com dignidade, as irmandades erguiam as igrejas próprias. Como há indícios da construção da igreja no local, muito provavelmente havia um cemitério onde os negros eram enterrados.
A relação entre igreja e Estado, representado pelo rei de Portugal, só foi superada com a Proclamação da República. O primeiro cemitério laico em Belo Horizonte, o Cemitério do Bonfim, foi planejado pela comissão construtora da capital e inaugurado em 1897. No entanto, não há documentos que apontem que os corpos do cemitério do Largo do Rosário tenham sido levados para o Cemitério do Bonfim.
"As irmandades queriam ter um templo, porque queriam ter um cemitério que pudessem administrar", diz Padre Mauro. Somente assim, poderiam fazer enterros dignos de pessoas negras, com os ritos que eram enterradas pessoas brancas. A igreja católica tinha direito aos sepultamentos, fora da jurisdição dos templos, os sepultamentos eram considerados informais.
Padre Mauro lembra que a hipótese de que "irmãos e irmãs do Rosário" estejam sepultados embaixo do asfalto foi levantada durante a atividade de ocupação "NegriCidade", realizada em 2019, que contou com a participação da rainha Belinha. "Nossos ancestrais estão plantados debaixo dos edifícios. Por que plantados? Eles não foram retirados daqui. A minha surpresa, quando fiquei sabendo dessa história, é pensar quantas vezes passamos por cima dos nossos antepassados. Às vezes, sentíamos uma tristeza ou um arrepio e perguntávamos: 'o que está havendo?'", afirma a rainha Belinha. Ela lembra que desde a construção da capital havia um movimento para expulsar a população negra do perímetro da Avenida do Contorno.
As irmandades negras foram proibidas pela Igreja Católica em 1923 e, desde então, foram empurradas para as favelas e periferias para além da Avenida do Contorno. "Cerca de 53 guardas de reinado resistem e sobrevivem nas periferias e favelas, formando um rosário no entorno da Avenida do Contorno", pontua Padre Mauro.
Largo do Rosário é patrimônio imaterial
O registro do Largo do Rosário como patrimônio imaterial de Belo Horizonte,foi aprovada em 27 de abril. A primeira ocupação desse território depois desse reconhecimento, com atividade presencial, foi realizada no dia 13 de maio com o projeto "Caminhos do Rosário".
Durante a expedição, a segunda atividade presencial realizada, foi apresentada aos participantes a carta que a Irmandade na Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Arraial do Curral Del Rei, Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem, enviou para Dom João VI em 1807.
A irmandade solicitava a construção de um templo religioso onde "santíssima senhora" pudesse ser louvada. A resposta de Dom João Vl, em 23 de outubro de 1807, reconheceu que o templo estava em construção. De acordo com a pesquisa de Padre Mauro, a irmandade estava no Curral Del Rei desde meados do século XVIII.
Padre Mauro destaca que, antes da construção da Igreja do Rosário, a irmandade se reunia na Igreja Matriz da Boa Viagem - ainda não havia referência à catedral. "A igreja matriz tem ali a espiritualidade do povo do Rosário. Há documentos de Abílio Barreto que apontam que, em um dos altares laterais, havia a imagem de Nossa Senhora do Rosário", conta. A Igreja Matriz foi erguida em homenagem à Nossa Senhora da Boa Viagem. "A imagem mais importante ficava no altar central. Nos altares laterais, tínhamos a imagem de Nossa Senhora do Rosário, indicando a presença de devotos de Nossa Senhora do Rosário na Igreja Matriz".
A irmandade enviou a carta e um livro de compromisso para Dom João VI, documentos que estão no Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa, Portugal. A capela foi inaugurada em 8 de outubro 1819 e uma foto feita pelo Departamento de Registro da Comissão Construtora, datada de 1895, está guardada no Museu Histórico Abílio Barreto. Essa primeira capela do Rosário foi demolida em 1894 para a construção de uma nova capital "republicana, moderna e organizada". Tempos depois, a Capela do Rosário foi transferida para a Rua São Paulo, onde permanece até os dias de hoje.
Igreja está sinalizada em cadernetas da comissão construtora
O pesquisador Thiago Fialho pesquisa 672 cadernetas da comissão construtora. Em duas das cadernetas, número 6 e 466, o pesquisador encontrou a localização da capela. A fachada ficava virada para o Sol nascente. "A inclinação para o Sol nascente é uma perspectiva afro-diaspórica. Colocar o templo para o Sol nascente é uma experiência pré-cristã", diz Padre Mauro.
O arquiteto informa que na caderneta 6, datada de 1894, foi realizado pela comissão construtora o registro do Largo do Rosário antes da construção da capital mineira. No documento também há a indicação de quem morava naquela região. A estimativa é que cera de 4 mil pessoas viviam no Curral Del Rei na época e uma centena na região do largo.
A caderneta 466, datada de 1898, aponta a localização da Igreja do Rosário entre as estacas 4 e 5. As estacas são usadas no trabalho topográfico para medir o nivelamento do terreno. As estacas estão na Rua 26, o primeiro nome da Rua da Bahia.