Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Presidente do Iepha: mineração na Serra do Curral é o desafio do momento

Patrimônio cultural vai muito além da proteção de construções históricas, preservação da memória, busca de recursos para recuperar igrejas, capelas e outros bens de relevância. No sentido amplo e atual, as instituições do setor devem trabalhar para fortalecer e fazer valer as políticas públicas voltadas para educação, desenvolvimento econômico e meio ambiente.



O último aspecto, por exemplo, está na ordem do dia após o licenciamento concedido à Taquaril Mineração S/A (Tamisa) para atuar na Serra do Curral, símbolo da capital mineira, parte da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, portanto um patrimônio mundial, e com áreas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo município de Belo Horizonte.

Por parte do estado de Minas Gerais, ainda não há tombamento da Serra do Curral, divisa de BH e Nova Lima, onde fica o empreendimento da Tamisa. O sinal verde precisa ser dado pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep), cuja próxima reunição ainda não tem data marcada.

É nesse contexto delicado e polêmico que a arquiteta e urbanista Marília Palhares Machado assume a presidência do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG). Vale destacar que o instituto atua como secretaria-executiva do conselho, cujas decisões são deliberativas.



Com longa experiência na área de patrimônio, incluindo o Iepha, onde foi superintendente de Desenvolvimento e Promoção em dois períodos (2000 e entre 2004 e 2007) e responsável pelo Programa de Municipalização, Marília afirma que sua ida para a direção do instituto significa “dar sequência ao processo de tombamento da Serra do Curral, alinhamento esse já feito com o secretário de Estado de Cultura e Turismo, Leônidas Oliveira”.

Nesta entrevista, ela fala dos desafios, dos programas conduzidos pelo instituto e diz que ser prima do diretor executivo da Tamisa, Guilherme Augusto Gonçalves Machado, não lhe causa embaraço: “Somos primos, mas tenho ética. E ética e técnica sempre prevaleceram no meu trabalho”. Confira os principais trechos da entrevista.




A senhora assume a presidência do Iepha em momento polêmico e delicado para o patrimônio cultural e ambiental de BH. Qual sua posição diante do licenciamento concedido pelo Copam para a mineração na Serra do Curral?


O momento é, de fato, muito polêmico e delicado, mas vejo também como oportunidade para a discussão e aprofundamento da pauta pública do patrimônio cultural, com todos os desafios contemporâneos dessa agenda. As muitas interfaces do patrimônio cultural e sua integração com as políticas de meio ambiente, desenvolvimento econômico, educação e integração regional estão na ordem do dia, como também está na ordem do dia o clamor da sociedade pela proteção desse bem cultural.



No que diz respeito ao processo de licenciamento concedido para a mineração da Serra do Curral, estou ainda conhecendo e estudando os fatores que sustentaram a atuação e manifestação do Iepha no âmbito de suas obrigações de avaliação de impacto ao patrimônio cultural, e só então poderei me manifestar institucionalmente.

Naquilo que afeta e é competência direta do instituto, posso tranquilamente dizer que vamos prosseguir nos trabalhos de instrução do processo para deliberação do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep) acerca do tombamento da Serra do Curral. Uso dessa oportunidade também para dizer que a minha vinda para assumir a presidência do Iepha trouxe como pauta dar sequência ao processo de tombamento da Serra do Curral, alinhamento esse já feito com o secretário de Estado de Cultura e Turismo (Secult), Leônidas Oliveira.

A senhora vê possibilidade de tombamento estadual da Serra do Curral, indo além das áreas protegidas pelo Iphan e município de BH?

Sim, conforme indica o dossiê contratado pelo Iepha e desenvolvido com a adoção da metodologia de análise de multicritérios. A Serra do Curral é uma área de visibilidade regional e próxima às áreas já protegidas pela União e pelo município de Belo Horizonte. O Iepha deverá, portanto, cumprir sua obrigação de consolidar os estudos com a definição da área a ser tombada e suas diretrizes de ocupação para apresentar ao Conep. Pretendemos garantir que o tombamento e a preservação da Serra do Curral convivam de forma harmônica com as legislações dos municípios atingidos, para evitar futuros conflitos de gestão.




Somente o Conep poderá decidir sobre a proteção definitiva da Serra do Curral. A senhora, como presidente do instituto que funciona como secretaria-executiva do Conep, já tem a data da próxima reunião do Conselho?

Sim, é importante que isso fique bastante claro. À luz da legislação estadual, cabe ao Conep deliberar sobre a proteção do patrimônio cultural no âmbito do estado. Ao Iepha, na qualidade de secretaria-executiva, cabe a preparação e instrução das pautas das reuniões. A definição da data de reunião e definição da pauta cabe ao seu presidente, conforme regulamento em vigor.


A senhora é primeira de primeiro grau do diretor executivo da Tamisa, Guilherme Augusto Gonçalves Machado. Como recebeu a divulgação dessa informação?


Somos primos, mas tenho ética. E a ética e a técnica sempre prevaleceram no meu trabalho. Minha família Machado tem histórico de atuação na área de patrimônio cultural e inclui nomes de reconhecida contribuição para a sociedade, como o de Abílio Machado Filho, um dos fundadores do Iepha e da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop). Minha nomeação ocorreu baseada em critérios técnicos e minha experiência profissional, visto que já atuei no Iphan, Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana e no próprio Iepha, como superintendente de Desenvolvimento e Promoção, no ano 2000 e entre outubro de 2004 e julho de 2007. Fui responsável pela coordenação do Programa de Municipalização do Iepha, que recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade em 2002, concedido pelo Iphan.

Além da questão da Serra do Curral, que ganhou repercussão nacional, quais os outros desafios da sua gestão?

Reitero que a questão da Serra do Curral é, sem dúvida, o desafio do momento e se impõe como uma agenda urgente, não apenas para a valorização do instrumento do tombamento, mas também para o reposicionamento e fortalecimento do Iepha, sobretudo em sua interface com as várias políticas. Desconheço momento como o que estamos vivendo, onde a sociedade clama pelo tombamento de um bem cultural, a Serra do Curral. Outros desafios existem. Participei do corpo de técnicos do Iepha desde 2000, com idas e vindas até 2015. O Iepha que encontrei agora cresceu muito em termos de atuação e de responsabilidades. Exemplo disso é a análise dos Planos de Ação de Emergência de Barragens, coordenados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e Defesa Civil.



Definido a partir da “Lei Mar de Lama Nunca Mais”, cada plano traz as ações que devem ser empreendidas para prevenir e/ou minimizar os impactos que podem ocorrer, por exemplo, em rompimento de barragens como as que ocorreram em Mariana e Brumadinho. Há uma agenda clara e um desafio importante para o Iepha na análise desses planos. Outro exemplo é a análise dos estudos de impacto do patrimônio cultural que devem ser elaborados por empreendedores no compromisso de respeitar o patrimônio cultural existente em áreas dos empreendimentos passíveis de licenciamento ambiental.

São áreas recentes de atuação do Iepha, que vêm sendo desenvolvidas por um corpo de técnicos extremamente competente e dedicado, porém pequeno na proporção do volume de entregas. Precisamos conciliar objetividade e racionalização dos processos, para que possamos cumprir com os objetivos e fortalecer o compromisso da instituição. Outro desafio está na ampliação do acesso e uso da edificação que hoje abriga a sede do Iepha, no Circuito Liberdade, em Belo Horizonte.

O Iepha ja transferiu a sede administrativa para o chamado Prédio Verde, na Praça da Liberdade. Várias vezes foi anunciado que lá será também a Casa do Patrimônio. Quando o projeto será concretizado e qual a finalidade da Casa do Patrimônio?

Estamos planejando abrir o Centro do Patrimônio Cultural Cemig ainda este ano, com uma agenda de promoção e divulgação do patrimônio cultural mineiro. Neste momento estamos ajustando e planejando a ocupação do prédio, pois acolheremos outros projetos que funcionarão junto ao Centro.




O projeto anunciado de proteger, com iluminação e segurança, prédios de relevância histórica na capital e interior está sendo conduzido? Há resultados?


Sim. Estão em andamento três projetos. No “Minas Para Sempre”, já foram instalados em mais de 58 edificações protegidas alarmes contra intrusão. Estão sendo implantados nos sete museus do estado o sistema de prevenção e combate a incêndio e pânico: Museu Mineiro, Centro de Arte Popular, Museu dos Militares, Museu Casa Guignard, Museu Alphonsus de Guimaraens, Museu do Crédito Real, Arquivo Público Mineiro e Centro do Patrimônio Cultural.

E, por fim, o projeto Luzes no Patrimônio, que se encontra em fase de levantamento de custos e projetos de intervenção.

O cabeamento subterrâneo para iluminação pública em algumas localidades já começou?

Quanto ao “Luz no Patrimônio”, estamos na fase de desenvolvimento de projetos para realizar a intervenção nos núcleos protegidos. Os primeiros municípios a implantar a iluminação por cabeamento subterrâneo deverão ser Conceição do Mato Dentro, Catas Altas e o Distrito de Santa Rita Durão, em Mariana.

Qual será a linha de atuação da sua administração? Há algum direcionamento para programas de educação patrimonial?

Quero integrar o patrimônio cultural a outras matérias. A articulação, por exemplo, com a habitação, poderá resolver muitas pressões que as áreas tombadas sofrem pela ausência de alternativas de moradia. É o caso da Serra dos Cristais em Diamantina, que vem sendo ocupada por pessoas sem teto.



Se houver um programa de moradia que atenda a essa população, a preservação da serra será menos complexa. Outra possibilidade é a integração com a legislação urbanística, que tem muitos instrumentos capazes de contribuir para a preservação do patrimônio cultural com a definição de Áreas de Diretrizes Especais e com a definição de parâmetros urbanísticos que respeitem a paisagem original.

O caso de Tiradentes, onde o Iphan definiu a ocupação do Centro Histórico respeitando o traçado e paisagem originais, garantiu a preservação. O resultado é muito didático. Há diversos outros exemplos.

A educação para o patrimônio tem um grande potencial, não só por poder contribuir para a preservação do patrimônio cultural, mas também para a inclusão social Identificar coisas e manifestações que podem ser protegidas pelo estado podem levar a muitas comunidades a noção de pertencimento. Pretendo ainda dar início a estudos buscando um programa de recuperação de áreas degradadas pela mineração.



O ICMS do Patrimônio Cultural é uma ferramenta importante para a preservação de bens culturais protegidos. Há alguma sugestão para melhorar a aplicação dos recursos?

A mudança da lei ocorrida em 2009, com a inclusão do Fundo Municipal de Patrimônio Cultural como critério de pontuação, trouxe um enorme avanço. O fundo passou a garantir investimentos para a preservação do patrimônio cultural local, configurando não só uma política de arrecadação, mas também uma política de proteção ao patrimônio cultural.

Mas nunca se tem uma ferramenta definitiva. Ela precisa sempre de aprimoramento em cada época, em cada contexto, pelo dinamismo da vida. À Diretoria de Promoção cabe a gestão da ferramenta para propor melhoras para a aplicação dos recursos, como estímulo ao adequado envolvimento dos municípios. Conhecer o estado do ICMS do Patrimônio Cultural está nos meus planos imediatos, para então sugerir aprimoramento.

O tombamento ainda é visto, por muitos gestores e moradores, como uma forma de engessar o desenvolvimento das cidades, e não como guardião da memória e motor do turismo. Como mudar essa mentalidade?

A polêmica da Serra do Curral pode ser, como afirmei antes, um divisor de águas dessa visão sobre o instrumento. O tombamento deverá conjugar a proteção ambiental e a leitura da paisagem. A esse respeito, o exemplo de Ouro Preto é emblemático.



Ao observar a paisagem da cidade e comparando fotos antigas e recentes, pode-se constatar que não houve congelamento da cidade, mas a continuidade de sua ocupação por novas construções que se integram harmonicamente à paisagem. Essa mentalidade pode mudar com o incremento da comunicação do Iepha com a sociedade e vice-versa, e com a definição de diretrizes para as ocupações futuras. Outra possibilidade é resolver impasses que o tombamento gera.

Eu conheci Ouro Preto antes e depois do Centro de Artes e Convenções (Cacop). A manutenção do conjunto urbano parecia para a sociedade local como um ônus do tombamento, já que sua sustentabilidade exigia investimentos pessoais dos moradores.

A instalação do Cacop incrementou o turismo no município e concretizou a vocação turística do patrimônio cultural, que passou a gerar renda para os moradores. Esses mudaram a sua percepção sobre o patrimônio, que passou a ser bem conservado pela população local.



A grande campanha conduzida em Minas para resgate de bens desaparecidos já teve o Iepha como instituição de destaque. Como retomar o programa e sensibilizar as comunidades para as ações de proteção, preservação e recuperação do seu patrimônio?

Estamos trabalhando com a Coordenadoria das Promotorias de Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC/Ministério Público de Minas Gerais) para ampliar as informações sobre os bens desaparecidos. No Centro do Patrimônio Cultural, estamos implantando uma reserva técnica visitável para que os bens que foram recuperados sejam expostos à visitação permanente, de modo que a divulgação possa ajudar a retornar aos seus locais de origem.