Os brasileiros celebram neste ano o Bicentenário da Independência e o Centenário da Semana de Arte Moderna, com espírito cívico em setembro e alma em festa pela cultura em fevereiro. Os mineiros, especificamente, terão mais um motivo histórico para prestar homenagens, ao reverenciar a memória de dom Silvério Gomes Pimenta (1840-1922), cujo centenário de morte será lembrado em 30 de agosto.
Nascido em Congonhas, na Região Central do estado, dom Silvério foi o primeiro bispo negro do país e também o primeiro eclesiástico a entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Está prevista extensa programação na Arquidiocese de Mariana, à qual Congonhas pertence, informa o padre José Carlos dos Santos, diretor da Faculdade Dom Luciano e vigário da Paróquia Santa Efigênia, de Ouro Preto.
“Dom Silvério serve de inspiração ao Brasil de hoje, quando há um percentual tão alto de pessoas que lutam para ter acesso aos estudos, à educação. De família muito pobre, descendente de escravizados, ele enfrentou sérias dificuldades, ficando órfão aos 9 anos e começando a trabalhar cedo para ajudar a mãe e os sete filhos. Chegou a relatar, quando era arcebispo, que viveu a experiência da indigência, sem comida, roupa e agasalho”, conta o padre. Em Belo Horizonte, dom Silvério dá nome ao colégio marista fundado em 1950, no Bairro São Pedro, na Região Centro-Sul.
Na prática, as homenagens ao religioso mineiro já começaram, com a reedição do livro “Vida de Dom Viçoso”, escrito por dom Silvério. Coordenador editorial do projeto comemorativo de um século da última edição, padre José Carlos explica a grande importância de dom Viçoso (1787-1875), que está na lista de beatificação e canonização, na vida do seu afilhado de crisma, biógrafo e primeiro arcebispo de Mariana. Vale explicar que o primeiro bispo de Mariana (primeira diocese do interior do Brasil, criada em 1745) foi o frei dom Manoel da Cruz (1690-1764). Já a Arquidiocese de Mariana foi instalada em 1906.
A vida dos dois religiosos – dom Viçoso, português que chegou ao Brasil aos 32 anos e se tornou o sétimo bispo de Mariana, e dom Silvério, brasileiro descendente de escravizados –, se encontra inicialmente em Congonhas, no momento de o menino ser crismado. Depois, Silvério entra como aluno bolsista para o colégio dos padres lazaristas, mas a escola é fechada e ele fica sem poder estudar.
CARTA
Sempre demonstrando vontade de aprender, embora driblando a fome, Silvério estudava à noite usando a iluminação pública ou do comércio. Foi então que um tio dele decidiu escrever uma carta a dom Viçoso, pedindo ajuda para o garoto. “A resposta foi positiva, e Silvério, que já havia estudado francês, latim e filosofia e demonstrava o desejo de se ordenar padre, foi para o seminário”. Em auxílio, o bispo enviou dinheiro para as despejas de viagem e um animal para o transporte.
O brilhantismo de dom Silvério é enaltecido por padre José Carlos. “Tinha grande inteligência e curiosidade intelectual. Aos 17 anos, era professor de língua latina, um trabalho que desenvolveu por décadas. Depois, aprendeu outros idiomas. Era uma figura quase mítica”, conta o diretor da Faculdade Dom Luciano da Arquidiocese de Mariana.
Dois momentos na trajetória de dom Silvério emocionam o padre José Carlos. Logo após ser ordenado sacerdote, o mineiro foi enviado a Roma na companhia de outro religioso, o padre Cornagliotto. Na Santa Sé, foi recebido pelo papa Pio IX (1792-1878), que, ao ver o jovem negro vindo do Brasil, pergunta a Cornagliotto em que língua poderia falar com o ele. E aí veio a resposta: “O senhor pode falar em inglês, francês, latim, em qualquer língua, pois ele vai entender e responder”.
O certo mesmo é que dom Silvério encantou Pio IX e os cardeais, sendo convidado a fazer uma homilia durante a missa. “Ele impressionou a todos com a melhor marca que o Brasil tem como símbolo de luta do povo: a coragem e a fé”.
Religioso exalta reedição de livro como resgate histórico
O projeto de reedição da obra-prima de dom Silvério nasceu em 2016, quando monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues, da Cúria de Mariana, apresentou, durante evento organizado pelo curso de teologia do Seminário São José, em Mariana, a causa de beatificação do Venerável dom Antônio Ferreira Viçoso. O desejo de contribuir para dom Viçoso se tornar mais conhecido e venerado fez brotar a ideia de reeditar a biografia escrita pelo afilhado. Assim, sob coordenação do padre José Carlos, “um grupo de seminaristas, muitos deles atualmente presbíteros e diáconos, se dispôs a abraçar o trabalho”. Em pouco tempo, foi redigido o projeto.
“É difícil descrever a riqueza e o valor da obra publicada em 1920. Dom Silvério nos oferece a oportunidade de conhecer, com detalhes e extremo rigor científico, a edificante vida de dom Viçoso. Trata-se de uma viagem não somente pelo que seu padrinho realizou, mas também uma jornada ao seu mundo interior, ao seu itinerário vocacional e de santificação, no serviço a Deus em meio a imensos desafios”, afirma o padre.
A primeira parte da obra segue as fases da vida de dom Viçoso (familiares, o contexto de nascimento, infância, surgimento da vocação, ingresso no seminário), enquanto a segunda mostra o trabalho executado – a situação em que encontrou a diocese, sem bispo havia nove anos, e os serviços prestados. “Por morar no então Colégio do Caraça, dom Viçoso conhecia como poucos a diocese, que englobava quase todo o território mineiro.”
'OBRA-PRIMA'
Além de proporcionar aprofundado conhecimento sobre a vida de dom Viçoso, o livro de autoria de dom Silvério “é reconhecidamente uma obra-prima da literatura brasileira”, defende o padre, lembrando que, com esse trabalho, dom Silvério conquistou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. “Foi o primeiro eclesiástico a conseguir esse feito, sem esquecer que dom Silvério era negro, e que, certamente, enfrentou dificuldades. O livro tem valor histórico. Por meio da leitura, conhecemos pormenores da história de Minas, do Brasil, da Igreja no país, e, especialmente, da Diocese de Mariana.”
Trajetória de dedicação e defesa dos excluídos
O Vaticano já reconheceu as virtudes heroicas de dom Viçoso, chamado Venerável, e para ele se tornar beato é necessário o reconhecimento de um milagre. Para ser canonizado, outro milagre deverá ser relatado à Comissão para a Causa dos Santos da Santa Sé.
Minas Gerais tem quatro beatos na Igreja Católica, último passo antes da canonização. São eles Padre Eustáquio, Nhá Chica, Padre Victor e Isabel Cristina Mrad Campos, a única que ainda não teve a cerimônia de beatificação.
A história de dom Viçoso começa em Portugal, onde nasceu em Peniche, em 13 de maio de 1787. Chegou ao Brasil com 32 anos, foi eleito sétimo bispo de Mariana após quase nove anos de sede vacante. “Ele se empenhou heroicamente pelo bem da Igreja, mostrou grande interesse pelo Seminário de Mariana e o entregou à direção dos padres lazaristas. Trouxe da França as irmãs vicentinas que, em Mariana, assumiram o Colégio Providência, primeiro educandário feminino de Minas. Sempre defendeu os escravizados, pobres e oprimidos”, relata padre José Carlos.
Dom Viçoso morreu em 7 de julho de 1875 e está sepultado na cripta da Catedral da Sé, em Mariana. Ao longo do tempo, recebeu muitas homenagens, incluindo o nome da cidade de Viçosa, na Zona da Mata mineira.