"Amarraram-me como se fosse um cabrito e me bateram como se eu fosse um rato"
Jorge Defensor, em relato ao juiz 9ª Vara Criminal de BH
Dois de setembro de 1977. Em pleno regime militar, os mineiros são surpreendidos por uma reportagem publicada na página da editoria de Polícia do Estado de Minas sobre crime cometido em uma delegacia da Cidade Industrial, Região Oeste de Belo Horizonte. A vítima, um operário. Jorge Defensor Vieira havia sido torturado. Como consequência, sofreu três fraturas na coluna, ficou paralítico e teve a saúde, a família e a reputação destroçadas. Era a primeira de uma série de matérias que ganharia destaque nacional, revelaria os porões da tortura na Polícia Civil mineira e valeria à equipe de jornalistas responsável por ela o reconhecimento do Prêmio Esso – o Oscar do jornalismo brasileiro na época.
Essa história de um preso desconhecido espancado em uma cadeia de periferia que mobilizaria a cúpula do estado e abalaria a Polícia Civil começou bem antes, quando os repórteres Tito Guimarães e Alberto Sena receberam uma denúncia da comunidade do Vale do Jatobá, mais precisamente da igreja do bairro. Uma fonte informava sobre o espancamento de um trabalhador, que teria sido preso sem ter cometido crime algum. A brutalidade das “autoridades” o teria deixado paralítico.
O caso Jorge Defensor, como ficou conhecida a série de matérias que nascia desse relato, levou a equipe do EM inicialmente ao Hospital São Francisco, no Bairro Concórdia, na Região Nordeste de BH, onde o trabalhador estava internado. Os repórteres passaram vários dias tentando entrar na unidade para ouvi-lo, mas eram sempre barrados por ordem policial. Diziam médicos e atendentes: “Ninguém pode entrar!”.
A frase, repetida por vezes, ainda ecoa na mente de Alberto Sena. Ela servia para estender outra cortina sobre o caso, que vinha de fontes oficiosas por trás de outro disfarce. “Chegou até nós, por meio de policiais, que um preso teria tentado fugir da cadeia na delegacia da Cidade Industrial. Que teria caído e fraturado a coluna, sendo internado no São Francisco”, relembra Tito Guimarães.
O PADRE
A entrada no hospital e o início da mobilização que daria a Defensor voz para revelar os abusos de que foi vítima só foi possível graças a um artifício que contou com a ajuda de um padre da Igreja de São Dimas, no Vale do Jatobá. No dia em que houve a primeira oportunidade de acesso ao operário, estavam lá Tito e o repórter fotográfico Sidney Lopes.
“Quem nos passou a informação sobre a tortura foi a igreja, por meio de um jornalista, Tilden Santiago, e o do hoje político Nilmário Miranda. Então, resolvemos levar o padre até o hospital. Ele foi entrando, e nós, atrás. Ninguém barrou o religioso. Nem um policial que fazia a guarda interveio ou tentou impedir”, relembra o repórter Tito. “O Sidney fez as fotos, com uma câmera pequena, portátil, que levava escondida sob o blusão. E eu e o padre conversamos com Defensor. Não usei gravador, papel e caneta, para não despertar a atenção do policial. Guardei tudo na cabeça. Depois de ouvir a história, saímos”, completa.
No dia seguinte, o resultado da entrevista feita de forma velada estampava a página policial do Estado de Minas. Revolta e indignação entre integrantes da Polícia Civil. Não pela tortura, mas pela denúncia. Um dos delegados mais importantes da corporação na época, Prata Neto, então superintendente da Metropol, grupo especializado em repressão ao crime, declarava: “Acertamos 99% do que fazemos e pagamos por causa de 1% de um suposto erro”.
O GOVERNADOR
A repercussão não era sem motivo. A reportagem mexia com a cúpula do estado. Alertado por seu assessor de imprensa, Mauro Santayana, o então governador, Aureliano Chaves, que estava em viagem pelo Sul de Minas, resolveu, no retorno, ir direto ao hospital. Queria ouvir, da boca de Defensor, seu relato.
Com a coluna fraturada, o operário decidiu não se calar. Contou que tinha sido preso injustamente, acusado do furto de um rádio a pilha e de um par de sapatos. Além da contusão que lhe roubara os movimentos, sofria ainda as consequências de uma laceração na bexiga e sentia muita dor na altura da cintura.
Na conversa com o governador, Defensor revelou os nomes dos torturadores: João Bosco, Jurandir, Fiel e Adelmo. Contou que os policiais exigiram que ele assinasse um documento, mesmo sabendo que era analfabeto. O operário se negou. Seria uma confissão.
A BARBÁRIE
O que mais chocou Aureliano Chaves foi o relato de detalhes das torturas. Defensor contou ter sido colocado no famigerado pau-de-arara (técnica de tortura em que o preso é pendurado em uma barra estendida entre dois cavaletes ou suportes, com as mãos amarradas junto com os pés). A barbárie que se seguiu incluiu choques elétricos, mangueira d'água enfiada no nariz para induzir a sensação de afogamento e a introdução de um cabo de vassoura no ânus do prisioneiro.
Como consequência da sessão de tortura, Defensor chegou ao hospital urinando e evacuando sangue, segundo um dos médicos. Uma perícia chegou a ser feita por legistas do Instituto Médico-Legal (IML), a pedido da própria polícia, ou seja, potencialmente com resultado influenciado pelos torturadores.
Indignado com a violência, Aureliano Chaves determinou rigor nas apurações. E solicitou ao Ministério Público a indicação de um procurador para acompanhar o caso. Alberto Pontes foi designado e logo no primeiro dia de investigações, declarou, convicto: “Defensor não tem ficha criminal”.
Informou ainda que a prisão ocorreu em 29 de abril de 1977 e que, desde então, o operário vinha sofrendo torturas. A internação ocorreu em 6 de maio, ou seja, menos de duas semanas depois da detenção. Mas somente em setembro os repórteres do EM conseguiram falar com ele. O tempo de internação dá um indício do nível da brutalidade a que o trabalhador fora submetido.
Mas a Polícia Civil não parecia disposta a reconhecer a barbaridade cometida contra um preso sob a tutela do Estado e responsabilidade da corporação. Tão logo o procurador fez a primeira declaração, o delegado Prata Neto voltou a se pronunciar e reafirmou: “Defensor caiu do telhado ao tentar fugir da cadeia”.
O caso foi considerado gravíssimo e a Assembleia Legislativa de Minas Gerais instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para acompanhá-lo. O então deputado Nilton Lira, ao abrir os trabalhos da CPI, sentenciou: “A tortura virou lugar-comum”.
Um agente dos EUA e a versão não oficial
Corria à boca pequena, na época, que o ocorrido com Jorge Defensor estaria diretamente ligado à chegada a Belo Horizonte de um agente do governo dos Estados Unidos, que seria encarregado de ensinar métodos de tortura a policiais mineiros que atuavam nos porões da repressão a quem desafiava o regime militar, ou seja, aqueles considerados subversivos. O agente norte-americano se chamava Dan Mitrioni.
Segundo essa versão, para esse treinamento seria preciso haver cobaias, presos que seriam usados como alvo no ensino de “técnicas” de tortura. Para isso, se recorria a detentos com pouca ou nenhuma visibilidade, que ocupavam prisões periféricas, acusados de pequenos roubos, já que presos políticos, de camadas sociais mais altas, poderiam chamar a atenção. De acordo com essa corrente, foi assim que Jorge Defensor terminou paralítico e teve sua trajetória de operário definitivamente interrompida.
Entre os delegados acusados, um, Miguel Bechara, apontado como principal responsável pela tortura, foi transferido de Belo Horizonte para o Norte de Minas. Dan Mitrioni permaneceu por meses em BH, percorrendo delegacias, supostamente com seus “ensinamentos”. Mas nunca foram confirmadas suspeitas sobre atuação dele ou que tenha participado da violência contra Defensor.
A coincidência que deu voz ao torturado
Uma testemunha identificada pelos jornalistas do EM que seguiam a trilha do caso Jorge Defensor foi fundamental para revelar como se deu a prisão do operário. Paulo foi localizado e contou o que sabia. “Ele pediu que eu o ajudasse na venda de sua casa. Um dia, ele caminhava na beira da linha férrea, no Jatobá, depois de nos encontrarmos, e foi preso, acusado de ter furtado o rádio e os sapatos. Os objetos nunca foram encontrados, nem na casa do Defensor, nem com ele”, relatou.
O primeiro alerta da arbitrariedade contra Defensor foi feito por parentes, que ficaram muitos dias sem informações sobre ele. Uma amiga da família, segundo uma das reportagens, contou que tinha visto Defensor no Hospital São Francisco, onde fora visitar um conhecido. E relatou que ele parecia em uma situação muito ruim.
Perguntou a um enfermeiro o que tinha acontecido e recebeu como resposta que o paciente havia sido atropelado. Mas Defensor a reconhecera e a chamou. Contou o que havia acontecido, que tinha sido torturado. Ao tomar conhecimento, familiares do operário procuraram a Igreja de São Dimas para pedir ajuda.
A mobilização de parentes levou ao fio da meada que resultaria na prisão. Descobriram que Defensor era acusado também do furto de um fogão. Sua irmã, Maria Vieira Pereira, contou que o eletrodoméstico pertencia à família e que não havia furto algum. Defensor teria feito uma transação com um homem e teria trocado o equipamento de cozinha por um rádio e um par de sapatos. A história voltava ao seu início, aos objetos que serviram de argumento para a prisão.
À medida que a repercussão do caso aumentava, surgiram testemunhas forjadas pela polícia contra Defensor. A primeira contou que ele seria um criminoso e que tentara arrombar uma casa. Depois, foi acusado de um homicídio, jamais provado. Por último, do estupro de um menor de 16 anos.
A JUSTIÇA
Diante da repercussão do caso, que ganhou o noticiário nacional, o então juiz da 9ª Vara Criminal, João Batista da Costa e Silva, foi ao hospital ouvir Jorge Defensor. A vítima mais uma vez deu detalhes da violência e da humilhação: “Amarraram-me como se fosse um cabrito e me bateram como se eu fosse um rato”. O magistrado determinou que a Corregedoria de Polícia Civil investigasse a fundo a denúncia e os policiais acusados.
O promotor Alberto Pontes responsabilizou três delegados pelo episódio: Miguel Bechara, Antônio Lucena e José Ribeiro. Na acusação, as informações dos médicos de que Defensor tinha três fraturas na coluna vertebral, os nervos da perna esquerda estavam destruídos, a bexiga, estourada, o reto, dilacerado e que lesões se espalhavam pelo corpo. Para sobreviver, o operário havia ficado 45 dias no balão de oxigênio.
Naquela fase da investigação, o delegado Prata Neto decidiu fazer mais uma declaração constrangedora: “Deveriam tê-lo matado e jogado no mato, mas foram humanos”. Entre os acusados, outro delegado, Antônio Lucena, fez também uma declaração que tentava manchar a imagem do operário, como se isso justificasse a tortura: “Não é nenhum excelente pai de família, mas um bandido”.
Defensor morava em uma favela. Sua filha havia nascido e ele ainda não conhecia a menina. O procurador Alberto Pontes declarou que a prisão do homem não havia sido comunicadas à Justiça, conforme previa a lei.
O PRÊMIO ESSO
Tito Guimarães lembra que o Caso Jorge Defensor foi o primeiro da ditadura que veio à tona com ampla cobertura da imprensa. “Foi a partir da notícia publicada no Estado de Minas que os demais veículos voltaram as atenções para o caso.”
Foram cerca de oito meses de matérias, publicadas praticamente todos os dias nas edições do EM. Em 1978, a equipe formada pelos repórteres Tito Guimarães, Alberto Sena, Sidney Lopes, Geraldo Elísio e Francisco Stheling ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo pela cobertura.