Famílias isoladas, em um contexto de vulnerabilidade social, falta de acesso à educação, insegurança alimentar, pressão psicológica e tendência ao aumento da violência. Pesquisa sobre o impacto da pandemia entre núcleos familiares de comunidades de Belo Horizonte mostrou que o distanciamento social cobrou um duro preço em comunidades que sofreram também com pouca visibilidade durante os períodos mais restritivos da crise sanitária.
O levantamento foi feito com moradores das comunidades Vila Maria, na Região Nordeste, Taquaril, na Leste, e Fazendinha, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, entre julho e outubro de 2021. Foram 307 estudos sociais de famílias e oito núcleos familiares entrevistados, entre o público atendido pelo Projeto Providência.
Idealizadora da pesquisa, a professora da PUC Minas Fernanda Flaviana de Souza Martins afirma que o objetivo foi dar voz e visibilidade para as comunidades. Segundo ela, a insegurança alimentar representou um desafio para todos os entrevistados. “A questão da fome bateu forte nas famílias, desencadeando vários fatores como ansiedade, depressão e dificuldade de acesso à educação. Onde não se tem o que comer, não é possível ter tecnologia, nem acesso a educação. As crianças não tinham escola, onde faziam as refeições, e não tinham os projetos sociais.”
Para a professora, a pesquisa mostra a urgência de se pensar no público mais vulnerável. “Há necessidade de políticas de segurança alimentar efetivas. Muitas vezes a família não tinha condições de buscar o alimento. Às vezes até tinha o alimento, mas não tinha como fazer, porque não tinha gás.”
EVASÃO
O estudo mostrou que a educação das crianças nessas comunidades foi ainda mais prejudicada do que no restante da cidade. “Houve evasão escolar decorrente do contexto de pandemia. A maioria não tinha acesso a computador, nem celular. Quando tinha, era em horários fora da aula. Tinha que dividir um celular com a família toda.”
“Além da fome e da vulnerabilidade, as crianças tiveram violado o direito de se desenvolver em plenitude. Ficaram vulneráveis também ao tráfico. Há relatos de muitas famílias de que o tráfico estava presente nesse contexto de pandemia.”
Segundo a professora, a maioria das famílias é formada por mulheres negras, mães solo e com três a quatro filhos. “Elas contam do seu desespero, falam da tristeza de não ter o alimento, que é uma necessidade básica. Dizem se sentir presas, sem conseguir se mover. Educar os filhos sozinhas foi um desafio muito grande para todas elas.”
A pesquisadora conta que o choro foi marcante em praticamente todas as entrevistas, e que as próprias chefes de família estavam negligenciadas. “Elas também precisavam ser olhadas e cuidadas. Fiquei muito emocionada. Só quem é mãe sabe o que é ter uma família com fome e não ter o que fazer, para onde correr. Elas se apegaram ao que elas tinham, aos filhos, amor, esperança.”
ANSIEDADE E MEDO DE FALTAR O QUE COMER
A auxiliar de serviços gerais Eliana Silva, de 40 anos, sabe bem o desafio que foi esse período. Mãe de dois filhos, de 13 e 10 anos, ela está desempregada há quase três anos. “A gente vai vendo as contas chegarem e nada de dinheiro. Se não fizer uns bicos, umas faxinas... É difícil”, desabafa.
O marido, Pedro Ferreira dos Reis, de 68, faz bicos para completar o salário mínimo que vem da aposentadoria. “Hoje as coisas estão muito caras, um litro de leite custa quase R$ 10. Temos que pagar água, luz e economizar para comprar um gás.” O casal recebe cesta básica do projeto social, mas mesmo assim enfrenta a insegurança alimentar. “Se não fosse o projeto, a situação estaria mais difícil. Vamos vivendo cada dia, correndo atrás”, diz Eliana.
Ela conta que durante o período mais rigoroso do isolamento foi difícil manter as crianças em casa. “Pessoas próximas perderam a vida por causa da COVID-19 e eu dizia para eles que a gente não podia se arriscar. Graças a Deus, ninguém aqui em casa pegou. Nossas vacinas estão em dia e as das crianças, também.”
Mas a educação não saiu ilesa. Segundo Eliana, o filho mais novo tem dificuldade de ler e escrever, apesar de estar na quarta série. “Eles recebiam apostilas, mas não é a mesma coisa que em uma sala de aula, com um professor para tirar dúvidas. A pandemia atrasou muito o ensino, agora eles estão tendo reforço na escola.”
O sofrimento também trouxe problemas para a saúde mental da dona de casa. “Comecei a ficar ansiosa, sem saber como lidar com a situação. Procurei o posto de saúde em busca de ajuda, para enfrentar o problema sem me deixar abalar. É muita coisa junta, tem os meninos, as coisas começam a faltar dentro de casa...” Eliana passou a tomar remédios para controlar a ansiedade e para dormir.
“Você se sente impotente. Essa pandemia teve um impacto muito negativo e acho que vai demorar a melhorar, porque não é só a COVID. Os nossos governantes, por exemplo, enquanto a gente recebe um salário mínimo, eles ganham muito, têm vários auxílios.” Ela diz que se sente desamparada pelo poder público. “Eles não olham para a comunidade. Infelizmente, a maioria só pensa no bolso deles.”
Violência agravada durante o isolamento
A professora Fernanda Flaviana de Souza Martins destaca que a violência foi outro desafio para as famílias das comunidades estudadas em sua pesquisa. “Mulheres e crianças ficaram ainda mais vulneráveis na pandemia. Além da violência física e sexual, vem acompanhada a violência psicológica, que muitas vezes, traz imobilidade. As consequências da pandemia nas vilas e favelas foi muito maior. Muitas mulheres relataram que pensaram em tirar a própria vida.”
A pesquisa mostrou que dados do Juizado da Infância e Juventude, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Projeto Polos de Belo Horizonte revelam o crescimento de mais de 30% dos casos de violência contra a criança e o adolescente na pandemia.
Denúncias relativas a esse público atingiram o maior patamar desde 2013, em relação direta com a pandemia. Neste ano, o Disque 100 registrou mais de 95 mil denúncias e em 67% dos casos elas se referiam a violência doméstica contra crianças e adolescentes.
Minas está entre os estados que mais utilizaram o Disque 100 para relatar esse tipo de violação. Com 12.040 denúncias, ficou atrás de São Paulo, com 23.870, e acima do Rio de Janeiro, com 11.470. Esses estados concentram metade das situações denunciadas do país.
Grande parte dessas situações tem como vítimas crianças de 5 a 9 anos, e o principal agressor é o pai ou a mãe (59% dos casos), seguido por padrasto ou madrasta (6%), avô ou avó (3%), e tio (3%).