Com o fechamento de unidades pediátricas na rede particular, encontrar vagas em UTIs e emergências para bebês e crianças em Belo Horizonte se tornou uma missão cada vez mais difícil para as mães e pais de pequenos pacientes. No dia 20, o Hospital São Lucas (HSL), na Região Centro-Sul, anunciou o encerramento do atendimento pediátrico, o que significa a perda de 34 leitos pediátricos na capital e de 2,5 mil atendimentos por mês. O cenário sobrecarrega ainda mais o sistema público de BH, que já enfrenta problemas para compor os quadros de pediatria nos centros de saúde e Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs).
A instituição, administrada pelo Grupo Santa Casa, atende, em média, 80 crianças por dia no pronto-atendimento e realiza cerca de 500 cirurgias ao ano. O HSL informou que a pediatria ainda funcionará por 90 dias a contar da data data do anúncio da interrupção do serviço, ou seja, até meados de outubro, e, depois, fechará as portas. Mas a preocupação quanto aos impactos do encerramento de suas atividades se instalou de imediato entre entidades médicas e profissionais da área.
Membro da Sociedade Mineira de Pediatria (SMP) e diretor de mobilização do Sindicato dos Médicos do Estado de Minas Gerais (Sinmed-MG), Cristiano Túlio Maciel Albuquerque afirma que o fechamento da unidade causará forte impacto. “A proposta era de fechamento imediato. Os médicos recorreram às entidades de classe e alertamos para os riscos assistenciais da decisão. Por isso, a Santa Casa ampliou esse atendimento por 90 dias”, contou.
Para ele, não haverá impacto assistencial imediato, mas os convênios precisarão se preparar para o próximo ano. “Eles precisam analisar os números de pacientes que foram atendidos no HSL e se preparar para o próximo período sazonal (especialmente outono e inverno, quando os quadros respiratórios são mais comuns), pois será impossível enfrentá-lo sem um aumento do número de plantonistas e leitos nos vários convênios que o São Lucas atende”, alertou. De acordo com ele, o hospital faz uma média de 2.500 atendimentos mensais.
O impacto imediato, segundo Albuquerque, será na qualidade do atendimento em algumas especialidades. Ele cita os pacientes da oncologia infantil, que vão perder a equipe que os acompanha no tratamento, por exemplo. “Tem crianças com plano de tratamento de um ano que vão precisar mudar de local e as famílias nem sabem para onde vão ainda.” O fechamento vai sobrecarregar também os locais do SUS que já estão congestionados, analisa o pediatra.
QUESTÃO ECONÔMICA “O caso do São Lucas é uma continuidade da crise financeira da pediatria. Ela é uma especialidade de baixa complexidade, não gera procedimentos, exames, funciona com baixa tecnologia. É basicamente o conhecimento do profissional e cuidados simples de enfermagem.”
O médico afirma que a especialidade não é valorizada do ponto de vista econômico e que os hospitais pediátricos precisam ser subsidiados. “É preciso que haja uma revisão da tabela e os hospitais precisam entender que pediatria não é para dar lucro. Ela não pode é dar prejuízo. Em Belo Horizonte, nos últimos 20 anos, foram mais de dez serviços de pediatria fechados nos hospitais.” A tendência, segundo ele, é que as grandes redes de convênios abram hospitais próprios, já que são obrigados por lei a fornecer o atendimento pediátrico. “Isso é ruim porque limita a opção dos pais.”
SEM RUMO As crianças e os pais penam devido à falta de assistência infantil. Especialmente nos fins de semana, eles sofrem com peregrinações entre hospitais e, muitas vezes, enfrentam horas de espera até, finalmente, serem recebidos pelos médicos. “É um caos. Só consulto pelo particular e, mesmo assim, não tem pediatra para atender as crianças. Tenho que ir de hospital em hospital até conseguir atendimento”, afirma Cláudia Regina Ribeiro, de 56 anos.
No dia 21, ela foi pela primeira vez ao Hospital São Lucas com os netos, Erick Miguel, de 8, e Maria Clara, de 5, depois que o mais velho começou a reclamar de dor na garganta. “Já fiquei horas com ele na fila de hospital, quando era mais novo, e só conseguimos atendimento porque ele começou a convulsionar”, relembra. Como o neto é autista, ela diz que Miguel sofre ainda mais para conseguir atendimento médico, mesmo que, segundo a lei, pessoas com autismo tenham direito à fila de prioridades. “Com a pandemia, a situação ficou ainda mais caótica”, complementa Cláudia.
O profissional de TI Wackson Abel Soares Silva, de 36, não conhece outro hospital, além do São Lucas, que aceite o plano de saúde do filho Emanuel, de 3, e diz estar perdido sem saber onde poderá levá-lo depois que a unidade fechar definitivamente. “Quando eu estava vindo para cá fiquei até um pouco desesperado. Minha esposa comentou que o São Lucas fechou a pediatria. Eu nem sabia para onde ir”, conta. “Tenho que olhar no plano aonde vou levá-lo depois, porque sempre o trouxe aqui. Já demorei para receber atendimento, mas nunca aconteceu de não ser atendido”, afirma.
A manicure Ana Cláudia Camilo Maia, de 24 anos, também passa pelo mesmo problema. “Vai ser ruim, porque já estou acostumada aqui. Não tenho ideia de onde vou levar ele se não for aqui”, disse. Apesar da demora no atendimento, ela elogia o trabalho dos médicos na unidade. “Na hora que chega aqui demora um pouco, mas depois é tranquilo. Eu gosto do atendimento. É muito bom”, comenta.
MAIS PRESSÃO Na avaliação do diretor de defesa profissional da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Fábio Guerra, o fechamento de unidades pediátricas é preocupante e trará grandes prejuízos aos pacientes. “Temos visto uma prática contínua de redução de serviços de pediatria. Isso diminui a possibilidade de suporte à população e sobrecarrega aqueles que se mantêm no atendimento. Quando unidades fecham, com certeza você sobrecarrega outras. Não entendo que seja por falta de profissionais. Isso passa por questões administrativas”, afirma.
A entidade nega que exista um déficit de pediatras no país e desinteresse dos profissionais pela área. “Não é que os médicos não queiram ser pediatras, mas, sim, que as instituições só querem contratar quando o quadro já é emergencial, em situações precárias. Temos um contingente bastante interessante de profissionais. Hoje, somos mais de 44 mil pediatras no Brasil, o que daria uma distribuição suficiente de assistência”, avalia.
PLANEJAMENTO O representante da SMP e do Sinmed-MG , Cristiano Albuquerque, concorda. Para ele, não há falta de profissionais e sim de estrutura e política de planejamento para enfrentar a sazonalidade. “As equipes de pediatria são suficientes em um período de oito meses do ano. Do meio do outono e durante todo o inverno ocorre um aumento de demanda muito grande, de até 200%. Notamos uma dificuldade de planejamento dos grandes hospitais de montar uma estrutura reversível, que vemos em outros países. É o que o sindicato propõe. Na época da sazonalidade, abrir atendimento como fast track, utilizando sistemas de triagem, com equipes que possam implementar protocolos. Permitir que os médicos possam trabalhar mais recebendo um adicional.”
Guerra também acredita que o problema é resultado a falta de planejamento e de condições adequadas de trabalho. “Precisamos de oportunidades mais adequadas, que passam pelo tipo de contratação, vínculo de trabalho e condições estruturais, que possam favorecer o estabelecimento e manutenção de uma equipe para assistência”, afirma. Segundo ele, as instituições deixam para contratar profissionais somente nos momentos de crise. “A gente vê ofertas de contratações precárias, que não interessam aos profissionais. Acontece que nem sempre é fácil fazer contratação nesse cenário”, comenta.
O diretor da SBP avalia, ainda, que a situação é a mesma na rede pública. “É uma reação em cadeia. Tentar resolver isso de forma imediata é mais difícil. Se você faz um planejamento prévio, se tem uma organização do serviço, fica mais fácil passar por essas crises. É necessário planejamento para contratação mais efetiva dos profissionais”, disse.
Sobrecarga em efeito cascata
Com o colapso batendo à porta de UPAs e centros de saúde da capital, o fechamento de unidades na rede particular acaba sobrecarregando ainda mais o atendimento nos equipamentos públicos. Desde junho, a Prefeitura de Belo Horizonte vem reforçando a assistência infantil aos fins de semana, mas a pressão persiste. Recentes notícias de pedidos de demissões de pediatras nas unidades de saúde e dificuldades para contratar novos médicos especialistas na área preocupam ainda mais os pais. Segundo o Sinmed-MG, profissionais aprovados em concurso estão reconsiderando se vão tomar posse do cargo devido às condições precárias de trabalho.
Representante da entidade, Cristiano Albuquerque diz que a rede pública estadual tem um déficit de 100 pediatras, enquanto na municipal o número sobe para 200. “O problema é que o estado não faz um investimento pesado. O médico não se sente estimulado, ele sabe que vai entrar em uma instituição sucateada, com uma infraestrutura ruim para cumprir uma falha da escala trabalhando com uma equipe mínima.”
Ele afirma que o sindicato junto com a SMP apresentou para os secretários estadual e municipal de saúde um conjunto de ações para melhorar as escalas: realização de concurso público, com a chamada de um número maior de vagas por vez, maior flexibilidade nas cargas horárias, melhorias nos planos de carreira, das condições de trabalho, além da criação de um adicional de sazonalidade.
Hoje, as unidades de saúde da capital contam com 287 pediatras para atender 152 centros de saúde e nove UPAs. A Secretaria Municipal de Saúde de BH(SMS) já confirmou anteriormente que as escalas de pediatria estão desfalcadas por falta de profissionais.
Por meio de nota, a SMS diz que estuda alternativas para minimizar os possíveis impactos na rede SUS-BH e trabalha incessantemente para garantir a plena assistência da população. A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informa que, como uma medida para garantir o atendimento da população, o município concedeu um aumento no valor dos plantões extras de 35% em todas as unidades da rede SUS da cidade. O banco de currículos para contratação imediata de médicos segue ativo. Os interessados devem acessar o portal da prefeitura para realização do cadastro.