Jornal Estado de Minas

SAÚDE E MEIO AMBIENTE

Agrotóxicos: empresas são acusadas de intoxicar comunidades em Pompéu

Cidade de Pompéu tem sido alvo de pulverização aérea e terrestre de defensivos agrícolas (foto: Divulgação)
Olhar para o céu de Pompéu, na Região Central de Minas Gerais, tem sido sinônimo de preocupação para os moradores dos assentamentos Queima Fogo e Chácara Chorios e para a comunidade quilombola Saco Barreiro. As comunidades denunciam que a pulverização aérea e terrestre de defensivos agrícolas tem adoecido moradores.




O Grupo Alterosa atua na Fazenda Rio Velho, em Pompéu, com a produção de carvão vegetal e eucalipto bem próximo de um assentamento da reforma agrária. Também no município, a Agropéu S/A, empresa sucroalcooleira, tem um canavial que faz divisa com a comunidade quilombola Saco Barreiro. Ambas têm sido alvo de preocupação de moradores e especialistas.

Queima Fogo e Chácara Chorios


Moradores dos assentamentos Queima Fogo e Chácara Chorios contam que, em 23 de junho, sem serem avisados previamente, um avião da empresa Florestas Ipiranga - do Grupo Alterosa - foi usado para aspergir agrotóxico na plantação de eucalipto da Fazenda Rio Velho.

Devido à proximidade com as comunidades, a ação deixou algumas pessoas com sintomas de intoxicção, segundo um um morador que não quis se identificar. “Tosse, falta de ar, sentimento de queimadura na garganta até o estômago, vômito, esses foram os principais sintomas que tivemos”, conta.





O pedido de anonimato se justifica. Desde que tomou a frente do assunto em busca de justiça, a líder comunitária Tatiane Menezes de Oliveira perdeu a paz. Foi ameaçada e teve a casa alvejada durante a madrugada, 10 dias após a pulverização.

As comunidades denunciaram casos de intoxicação ao Fórum Mineiro de Combate aos Agrotóxicos, ao Ministério Público do Trabalho (MPT) e ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

De imediato, a procuradora do trabalho, Adriana Augusta de Moura Souza, emitiu uma determinação de caráter de urgência à Prefeitura de Pompéu para que o município tomasse as providências quanto à saúde dos moradores, fizesse a identificação do produto utilizado pela empresa, além de contatar o Grupo Alterosa responsável pela plantação de eucalipto. A procuradora aguarda, ainda, o contato da administração municipal.

O MPMG acatou a denúncia e informou, por meio da assessoria, que “está apurando os fatos por meio do Inquérito Civil, instaurado em 5 de julho de 2022, no qual se colheu declarações de vítimas, acostou-se fotografias, requisitaram-se perícias e também se determinou a instauração de inquérito policial para apurar disparos de arma de fogo que foram realizados na ocasião dos fatos”. O processo se encontra com o promotor de justiça Guilherme Hack.





Tatiane Oliveira reitera a importância de não deixar o momento passar. “Anualmente acontece essa pulverização sem aviso prévio. Sofremos com nossa saúde e de nossos familiares, além dos animais e o meio ambiente. Vamos continuar assim até quando?”
Plantação de eucalipto recebeu agrotóxico por avião da empresa Florestas Ipiranga (foto: Divulgação)

Comunidade quilombola Saco Barreiro


Também na zona rural de Pompéu, ilhados no meio da monocultura do canavial, a comunidade quilombola Saco Barreiro sofre com dificuldade de acesso ao seu território, superexploração do trabalho nas fazendas, ameaças por parte dos fazendeiros e prejuízos na saúde por conta da aplicação de agrotóxicos e maturadores nas plantações.

A constatação está inserida no Mapa de Conflitos, resultado de uma pesquisa elaborada pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, que relata que a violência em relação à terra é um dos principais problemas no estado.

A pesquisa conclui ainda que "esse processo origina-se pela demanda de territórios quilombolas por diferentes vias, como a especulação imobiliária, a instalação de fazendas, empresas, barragens, mineração ou outro empreendimento com lógicas territoriais conflitantes". Esse contexto tem provocado a migração, a expulsão, a queda de produção e a redução da autoestima das comunidades, segundo os pesquisadores.





Início da comunidade tradicional

Como o próprio nome indica, Barreiro remete a uma das atividades tradicionais do quilombo, o uso da argila branca para a construção de casas, fornalhas e demais utensílios. A argila é extraída da beira do Córrego Pari, um curso d’agua que passa na área que hoje não ultrapassa os 7 hectares.

A área em que o quilombo se formou teria sido um retiro de dona Joaquina de Pompéu, grande proprietária de terras e de escravos da região entre o final do século 18 e o início do século 20.

Segundo o Mapa de Conflitos, um dos moradores do quilombo, Wilton Almeida, o seu bisavô teria sido escravo de dona Joaquina e trabalhava ordenhando vacas e fazendo roças. Após a morte de dona Joaquina, um dos herdeiros cedeu as terras que já estavam ocupadas pelas famílias escravizadas, porém devido à dinâmica social da época essa doação não tem documentação.

Início dos conflitos


Segundo o Mapa de Conflitos, na medida em que o tempo passava e muitos quilombolas mais velhos iam falecendo, passou a ser comum os fazendeiros da região expulsarem os filhos dos quilombolas, muitas vezes utilizando armas.





Os pesquisadores destacam que isso ocorreu mais intensamente durante o período da ditadura militar e, depois, com a chegada da agroindústria na região, a partir da instalação da Agropéu S/A, em 1981, durante a segunda fase do Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Hoje, a empresa possui 20 mil hectares de canaviais e representa o maior problema para o quilombo.

Um morador que também preferiu não se identificar afirma que, mesmo hoje, alguns quilombolas ainda trabalham nas fazendas de gado, saem de casa muito cedo, trabalham mais de 12 horas por dia, ganham pouco e não têm direito a alimentação durante o serviço.

Outro problema enfrentado, segundo ele, é a pulverização de agrotóxicos nos canaviais, que tem contaminado a população. “Uma nova espécie de violência”, afirma. A relação conflituosa entre fazendeiros, indústria e quilombolas gerou alguns processos na justiça, mas nenhuma solução sobre o direito à terra foi concluída.




Trabalhadores pulverizam plantação próximo à Comunidade Quilombola (foto: Reprodução)

Chuva de veneno


Das 37 famílias cadastradas no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 17 que ainda resistem no Saco Barreiro veem a sabedoria dos quintais sumir das panelas. Segundo o morador, a distância do canavial até a porta das casas é de cinco metros e o dia em que a Agropéu faz a pulverização, o chão das casas dos quilombolas chega a ficar branco.

“A chuva de veneno, matou mais de 80 galinhas aqui da comunidade, o leite da vaca não pode ser bebido. Os pés de pequi viraram cana-de-açúcar da empresa, crescemos comendo pequi, guardo na memória lembranças da minha mãe cozinhar o pequi no meio do arroz. Hoje, os pequizeiros que sobraram estão apenas na reserva ambiental que fica dentro do que restou do território”, afirma mais um morador que não quis se identificar.

Outro problema relatado pelo quilombola é a contaminação da água do Córrego Pari, que afeta atividades tradicionais. Ele conta que os moradores andam cerca de 22 quilômetros por dia em busca de água potável.





“As águas estão contaminadas, estão com mau-cheiro, queríamos que fosse feita uma análise da nossa água e também da população, acredito que estamos sendo envenenados diariamente.”

O morador alega que os médicos da Prefeitura de Pompéu não dão um laudo que prove que estão sendo envenenados, mas, segundo ele, "as pessoas vivem passando mal".

“São casos de epilepsia, convulsões, alergias, irritação e inchaço nos olhos, dores no peito, problemas respiratórios. Um dia uma moradora chegou a desmaiar.”

'Moradores sem paz'


Para o presidente da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais, Jesus Rosário Araújo, quase todo o território da comunidade está sendo usado pela Agropéu na produção de cana-de-açúcar e o que sobrou não chega a 1% do território tradicional herdado pelo descendente de Dona Joaquina.





Rosário Araújo afirma que a empresa sucroalcooleira tem utilizado estratégias para desmobilizar os moradores quanto à luta pela terra e contra a emissão de agrotóxicos.

“A empresa cerca as lideranças de forma com que elas façam parte do jogo. Toda vez que uma liderança se destaca na comunidade, a Agropéu oferece emprego e outros benefícios a ela. A empresa também faz lançamento de agrotóxico na lavoura, o que impede a soberania alimentar da comunidade. Outra estratégia é o uso de maquinário por 24 horas para tirar a paz dos moradores.”

Demarcação de terra pode ser solução


O presidente da Federação das Comunidades Quilombolas conta que a entidade não tem poder que executar políticas públicas e, assim, atua na formação das lideranças sobre o entendimento dos direitos. Um deles é o processo de regularização fundiária do território da comunidade quilombola, aberto em 2009, mas que, segundo ele, está a passos de formiga.

Segundo o Incra, o processo de regularização fundiária do território da comunidade quilombola de Saco Barreiro está na fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).





O RTID é composto de seis peças: relatório antropológico; levantamento fundiário; planta e memorial descritivo do perímetro da área reivindicada; cadastramento das famílias quilombolas; levantamento de sobreposições; parecer conclusivo da área técnica e jurídica sobre a proposta de área.

No caso da comunidade quilombola de Saco Barreiro, está em elaboração o relatório antropológico, primeira peça do RTID.

Rosário Araújo acredita que se o Incra estivesse atuando com maior celeridade, os territórios quilombolas já tinham o seu problema resolvido e, mesmo com a entrada do Ministério Público Federal (MPF) no acompanhamento do processo de regularização fundiária, em 2010, o Incra não saiu da primeira peça.

“Comprovando que o território da comunidade Saco Barreiro é maior do que eles vivem hoje, os fazendeiros e a empresa deverão devolver o que é da comunidade por tradição”, diz o líder.





Audiência Pública


A situação da intoxicação por produtos agroquímicos na comunidade quilombola Saco Barreiro foi assunto de uma audiência pública em Brasília, realizada pela Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em maio de 2022, que teve como relator o deputado federal padre João.

Na audiência, a coordenadora-adjunta do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Ana Paula Carvalho, alertou que uma pulverização em uma lavoura pode atingir até 32 quilômetros de distância. Segundo ela, a legislação federal para pulverização aérea não está sendo obedecida e a fiscalização na pulverização terrestre é insuficiente.

“O agrotóxico no Brasil é um problema em escalada, a água que chega à cidade está contaminada, o leite materno já tem resíduos de agrotóxico, é um problema de saúde pública muito pouco debatido.”





Presente na audiência, o assessor ambiental da Agropéu, Jadir Oliveira, disse que todos os produtos utilizados no canavial são aprovados por agências competentes e aplicados por profissionais habilitados. Ele também destacou que a empresa autorizou a perfuração de um poço artesiano nas terras da empresa e a construção de uma cortina arbórea, uma barreira de isolamento entre a plantação de cana-de-açúcar e a comunidade.

Também presente na audiência, o quilombola, Wilton Almeida, não acredita que a técnica vai reduzir os impactos ambientais da atividade industrial se a pulverização aérea e terrestre dos agrotóxicos não for fiscalizada.

O que diz a Secretaria Municipal de Saúde

 
Em resposta à reportagem, a Secretaria de Saúde de Pompéu informou que "não recebeu nenhum registro de sintomas relacionado ao fato. A informação dessa contaminação não chegou para setores do município". 





O que dizem o Grupo Alterosa e a Agropéu



Por meio de nota, o Grupo Alterosa, responsável pela empresa Florestas Ipiranga, esclareceu à reportagem do Estado de Minas "que a Florestas Ipiranga S/A não efetivou qualquer pulverização aérea de defensivos na área de floresta de eucalipto situada nas proximidades do assentamento Queima Fogo no período entre 20 e 25 de junho de 2022, datas que nos foram solicitadas em ofício".

Informa ainda que "o procedimento de pulverização aérea com uso de defensivos, quando necessário, é realizado por empresa terceirizada devidamente credenciada junto à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e ao Ministério da Agricultura (Mapa), com utilização de aeronave e piloto habilitados para aviação agrícola, bem como premissas climáticas seguras".

Importante ainda destacar, diz o grupo na nota, que "o empreendimento adota práticas extremamente responsáveis para a utilização de defensivos químicos. Possui plano de manejo integrado de pragas e conta com uma robusta equipe de campo que monitora todas as áreas, tabulando informações. A decisão de pulverização com uso de algum defensivo químico somente acontece após exaurimento de outras técnicas, discussão e deliberação de equipe qualificada".





O texto segue, afirmando, que "ao longo de mais de 60 anos de história, o Grupo Alterosa sempre primou pelo respeito à lei, cuidado com as populações dos municípios nos quais atua e empenho na promoção do desenvolvimento sustentável. Quaisquer denúncias ou reclamações recebidas pelo Grupo Alterosa são rigorosamente analisadas, com a adoção das cautelas e providências cabíveis. Além disso, o Grupo Alterosa está sempre à disposição das autoridades para prestar os esclarecimentos necessários, com vistas à apuração da verdade", conclui a nota.


A Agropéu também enviou nota, em resposta ao Estado de Minas. Confira na íntegra:

"A Agropéu possui como um de seus valores a sustentabilidade em suas diversas facetas, como a preservação ambiental e a valorização da relação com as instituições sociais e com a população do seu entorno. 

A Agropéu desenvolve diversos projetos para o fortalecimento das instituições sociais e das comunidades, da cultura local e regional, a preservação ambiental, o desenvolvimento econômico e a empregabilidade no município de Pompéu, inclusive com ações dirigidas ao apoio à própria Comunidade Saco Barreiro. A Agropéu é a empresa com maior geração de empregos no município de Pompéu, a qual corresponde pela manutenção direta de mais de mil empregos.





Por outro lado, a Agropéu repudia qualquer ato atentatório à qualidade de vida, ao meio ambiente e à cultura de toda e qualquer população. A Agropéu adota rígidas regras de governança corporativa, de ‘Compliance’ e as boas práticas no desenvolvimento de sua atividade econômica e não pratica e não aquiesce com nenhuma ação que possa por qualquer meio prejudicar a qualidade de vida ou a saúde dos moradores da Comunidade Saco Barreiro ou de qualquer pessoa."

O que diz a legislação brasileira

A pulverização aérea de agrotóxicos é permitida no Brasil pelo Decreto-Lei nº 917, de 7 de outubro de 1969 (BRASIL, 1969), que dispõe sobre o emprego da aviação agrícola no país, e pelo Decreto nº 86.765, de 22 de dezembro de 1981 (BRASIL, 1981), que regulamenta o anterior

As regras vigentes do Ministério da Agricultura para pulverização aérea de agrotóxico e fertilizante dizem que não é permitida a aplicação aérea de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de:

  • quinhentos metros de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população;

  • duzentos e cinquenta metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais;

No caso da aplicação aérea de fertilizantes e sementes, em áreas situadas à distância inferior a:

  • quinhentos metros de moradias, o aplicador fica obrigado a comunicar previamente aos moradores da área;

  • as aeronaves agrícolas, que contenham produtos químicos, ficam proibidas de sobrevoar as áreas povoadas, moradias e os agrupamentos humanos, ressalvados os casos de controle de vetores, observadas as normas legais pertinentes;

  • no local da operação aeroagrícola será mantido, de forma legível, o endereço e os números de telefones de hospitais e centros de informações toxicológicas.