Jornal Estado de Minas

Esquizofrenia

Pacientes sofrem também com a incompreensão



Às 11h de 25 de maio, uma quarta-feira, Genivaldo dos Santos, 38 anos, trafegava, de motocicleta, no km 180 da BR-101, em Umbaúba, em Sergipe. No bolso, carregava uma cartela de comprimidos, parte do tratamento para uma doença com a qual fora diagnosticado aos 18. Abordado com truculência por três policiais rodoviários federais porque não usava capacete, o homem ficou nervoso e questionou a operação.




 
Segundo o sobrinho, que testemunhou a cena, mesmo informados que Genivaldo tinha esquizofrenia, os agentes bateram nele e o encerraram no camburão da viatura, não sem antes jogarem spray tóxico no compartimento. Quase seis horas depois, o laudo do Instituto Médico Legal (IML) apontou a causa do óbito. Assim como centenas de milhares de doentes mentais que padeceram no regime nazista alemão, exterminados em câmaras de gás, ele morrreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória.
 
A violência contra pacientes psiquiátricos, incluindo os com esquizofrenia, é documentada há milênios. Até muito recentemente, eles foram isolados, tratados como párias, julgados, condenados e executados maciçamente tanto em atos genocidas, como o já bem conhecido extermínio em instalações nazistas, quanto em episódios como o que matou Genivaldo.
 
Diversos estudos constataram que, comparado à população em geral, pacientes com distúrbios mentais sofrem mais violência física e psicológica. Um deles, realizado com dados de sete países europeus, mostrou que pessoas com sintomas psicóticos relatam um alto índice de vitimização física: até 37,8% sofreram algum ataque do tipo no ano anterior à pesquisa. Não à toa, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas com esquizofrenia vivem até 25 anos menos do que as que não têm o distúrbio. Os fatores que contribuem para a mortalidade precoce incluem negligência com cuidados médicos e suicídio.




 
Violência 
dentro de casa 
 
Outro artigo, divulgado na Revista de Epidemiologia e Saúde Pública, uma publicação francesa, constatou que 82,1% das mulheres e 86,1% dos homens com diagnóstico psiquiátrico foram vitimizados ao longo da vida. No Brasil, um estudo de revisão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com dados nacionais encontrou percentuais de violência contra 57% das mulheres e 58% dos homens. Os principais algozes, mostrou a pesquisa, foram os próprios parceiros, mas também houve relatos de agressões dentro de instituições de saúde, por outros internos e por funcionários. “Os lugares de ocorrência foram predominantemente o ambiente doméstico para mulheres e as ruas para homens”, diz o trabalho, publicado na Revista de Psiquiatria Clínica.
 
“Há um estigma que associa muito o paciente de esquizofrenia à violência. Porém, eles são muito mais vítimas do que algozes”, afirma o psiquiatra Leonardo Palmeira, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor, entre outros, do livro “Entendendo a esquizofrenia: como a família pode ajudar no tratamento”. Embora os pacientes possam cometer atos violentos, estudos epidemiológicos constataram que isso é mais comum em um pequeno subgrupo que tem histórico de violência familiar e de abuso de substâncias.
 
Além disso, especialistas associam o estereótipo ao fato de notícias sobre crimes cometidos por pacientes mentais receberem mais destaque do que os perpetrados por pessoas sem diagnóstico. Filmes e seriados também contribuem para isso. Um artigo publicado na revista Psychiatric Services mostrou que, em 41 filmes estudados, a maioria dos personagens com esquizofrenia cometia atos violentos contra eles mesmos ou outras pessoas, e quase um terço deles era caracterizado como homicidas em potencial.




 
“O setor de entretenimento é frequentemente citado como um dos contribuintes para a formação e o reforço de desinformação e atitudes negativas sobre a doença mental”, relata a autora, Patricia R. Owen, pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade de St. Mary, nos Estados Unidos. “Os filmes populares são considerados influências especialmente poderosas na formação de atitudes sobre a doença mental”, destaca.
 
Outro equívoco sobre a esquizofrenia, segundo o psiquiatra Leonardo Palmeira, refere-se ao tratamento. Embora os medicamentos sejam importantes para lidar com os chamados sintomas positivos — alucinações, delírios, confusão no pensamento e movimentos descoordenados —, eles são apenas parte de uma abordagem que, de acordo com o pesquisador da UFRJ, precisa ser multifatorial.
 
“Milhões de pessoas em todo o mundo vivem com esquizofrenia, mas muitas não recebem o tratamento e apoio de que precisam”, destaca Gordon Lavigne, CEO da organização internacional Schizophrenia & Psychosis Action Alliance. “Essa lacuna é causada pelas complexidades da própria condição, mas também pelo estigma social, limitações do sistema de saúde, discriminação e baixo reembolso do tratamento”, concorda. “A esquizofrenia é uma doença cerebral tratável que merece a mesma urgência e atenção que qualquer outra doença crônica baseada em órgãos”, acredita. 




 
 
 
Projeto 
terapêutico 
 
Para Palmeira, o erro começa na abordagem. O psiquiatra lembra que a maioria dos pacientes se assusta com o diagnóstico e, como os sintomas positivos parecem reais, pode se negar a receber tratamento. Em vez de apenas prescrever os remédios, o médico ressalta a necessidade de questionar as pessoas com esquizofrenia sobre como a vida delas tem sido afetada pelos sintomas negativos — a vontade de se isolar, o desânimo para fazer qualquer coisa, a perda de interesse por coisas que antes eram prazerosas. “Muitas vezes, o paciente deixa de estudar, de trabalhar, por causa da esquizofrenia. É nisso que o médico deve focar e apresentar um projeto terapêutico do qual a medicação é só uma parte”, diz.
 
Terapia familiar, treinamento vocacional, reabilitação cognitiva e participação em atividades artísticas comunitárias são algumas das estratégias que ajudam o paciente a recuperar a funcionalidade. “É perfeitamente possível uma recuperação sem recaídas, e muitos podem até não precisar mais de remédios”, afirma Palmeira. Para isso, porém, a sociedade precisa se envolver. “A incompreensão em relação aos sintomas faz muitas pessoas criticarem o paciente e, quando ele se retrai, aumentam os riscos de crises, medicamentos e hospitalizações”, diz.
 
A partir da década de 1970, o Brasil começou a discutir uma nova abordagem terapêutica, que já vinha sendo adotada, 20 anos antes, nos Estados Unidos e na Europa. Em 2001, a reforma psiquiátrica foi sancionada no país, com a substituição dos manicômios e hospícios pelos centros de atenção psicossocial (CAPs). Segundo o Ministério da Saúde, hoje existem mais de 2,6 mil espalhados pelo país. O número, porém, é considerado insuficiente: somente com diagnóstico de esquizofrenia, a estimativa epidemiológica é de entre um e sete casos por 10 mil habitantes.




 
O sucateamento da área da saúde mental, que sofreu cortes de programas nos últimos seis anos, é uma preocupação de especialistas. “Os tratamentos, que já eram limitados, sofreram um retrocesso enorme desde 2016, com sucateamento dos serviços comunitários”, lamenta Leonardo Palmeira. 
 
 
 
Depoimento 
 
"Não sou um diagnóstico"
 
“Aos 30 anos, tive o primeiro surto. Comecei com muita mania de perseguição. Eu via as pessoas e achava que estavam falando de mim. Para fugir delas, larguei o emprego de operador de som, saí da minha cidade (Timóteo, MG) e comecei a viajar. Sete meses depois, tive outro surto. Achava que as pessoas queriam me matar. Fui embora para Belo Horizonte e cheguei a tomar veneno de rato. Eu não tinha diagnóstico e achava que essas vozes eram de ordem espiritual. Eu tinha um complexo messiânico, achava que tinha de ser sacrificado, sentia uma culpa exagerada, porque, na esquizofrenia, tudo é exagerado. Desde os 17 anos, eu morava sozinho. Minha mãe também tinha esquizofrenia, mas ela negava.
 
Em BH, passei a morar na rua. Tive a sorte de encontrar uma boa pessoa que me ajudou a ter tratamento e auxílio-doença. Mas as consultas sempre foram muito rápidas, os médicos não me ouviam e, em cinco minutos, preenchiam uma receita. Tive muito efeito colateral, andava sem parar, como se a perna tivesse vontade própria, a musculatura não relaxava. Depois eu soube que esse efeito pode ser diminuído com o uso de outro medicamento, mas, morando nas ruas, eu nem imaginava isso.




 
Eu também sentia muito sono e lentidão, não conseguia trabalhar. Até que fui atendido por um bom psiquiatra em um hospital. Melhorei os sintomas e comecei a pesquisar na internet, fiz um curso de computação em 2012 e, então, passei a me informar melhor e ver que não estava sozinho, que não era só comigo. Isso foi fundamental no meu tratamento. Ter a consciência do problema pode não resolver, mas ajuda muito. De vez em quando, ainda ouço vozes, mas eu consigo raciocinar e perceber que não são reais. Por exemplo, pensei que uma pessoa que estava a 30m estava rindo de mim. Mas, então, vi que isso era impossível, porque eram sussurros, e ela estava distante.
 
Não somos culpados, mas a sociedade sempre joga a culpa na gente por tudo. Além de sofrer com o transtorno, temos de lidar com o preconceito. Você tem de ser perfeito. As pessoas falam que quem tem esquizofrenia é violento, eu tinha até medo de me tornar violento por causa disso e ficava pensando: 'mas eu nunca nem bati em ninguém!' Mas, me conhecendo melhor, hoje, sei que não sou um rótulo, não sou um diagnóstico.” 
 

Júlio César, 53 anos. O entrevistado pediu para não ter o sobrenome publicado