Jornal Estado de Minas

VIDAS EM TRANSIÇÃO

Fotos revelam mais sobre o enredo que fez Emília virar David na BH de 1917



Se uma imagem vale mais do que mil palavras, o que dizer, então, de dois retratos em preto e branco, com o tom característico do tempo, que, um século depois, ajudam a iluminar personagens da marcante história da primeira cirurgia de desambiguação de sexo de Belo Horizonte? Um registro de 1915 imortaliza passeio de um grupo de 15 jovens na área então conhecida como Caixa-d'água (atual Parque Amilcar Vianna Martins), no Bairro Cruzeiro, na Região Centro-Sul da capital. No outro, também da segunda década do século passado, um médico, rodeado da equipe, opera corajosamente a si mesmo.



As duas fotografias de grande impacto visual trazem o foco para a vida do médico David Corrêa Rabello (1885-1939) e da então jovem estudante Emília Soares, da Escola Normal, apelidada Miloca. Ele, mineiro de Diamantina, formado em medicina no Rio de Janeiro (RJ), com especialização em cirurgia em hospitais europeus. Ela, jovem de 19 anos, que, após passar pelo bisturi de Rabello, em cirurgia pioneira em Minas, torna-se David Soares, com mudança na carteira de identidade, nova definição de gênero e outros rumos na vida.

Nesta sexta matéria da série “Vidas em transição – De Emília a David”, o Estado de Minas mostra os bastidores da fotografia do passeio no parque da turma de Miloca, guardada por uma família de BH, que se torna um símbolo das reportagens. “Minha avó está na foto, é a sétima da fila, que tem Emília na frente (à direita). Estavam fazendo um piquenique, lazer que era muito comum na época”, conta a chef e historiadora Juliana de Souza Duarte, que mantém o retrato com muito carinho, inclusive na moldura antiga.

Nascida em 1895 em Sabará, Nísia Felicíssimo de Souza chegou criança a BH, com a família que morava em Ouro Preto, antiga capital de Minas, devido à transferência do pai, funcionário público. “Minha avó viveu 105 anos e foi amiga de Miloca. Sabia da história da cirurgia e de algumas particularidades. Uma delas é que, após a operação, 'a' colega cortou as tranças”, detalha Juliana.




 
(foto: ARQUIVO ACERVO DE JULIANA DE SOUZA DUARTE)
 
Perto dos 18 anos, conta ela, com base nos relatos da avó, Emília começou a usar roupa com gola alta, “pois o gogó (pomo de Adão) ficava aparecendo muito, e era uma forma de escondê-lo”. Esse é um detalhe que chama a atenção na foto do piquenique, no qual Emília se destaca pela altura na “escadinha” formada pelo grupo de meninas da Escola Normal.

IMPRESSÕES Nísia Felicíssimo de Souza deixou registradas suas impressões sobre os tempos de juventude, na cidade que era “uma poeira danada”, conforme reproduz a neta Juliana. “Sou feliz de ter convivido com ela, tinha um humor muito fino”, recorda-se. O depoimento foi colhido pelo Núcleo de História Oral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Acervo de Entrevistas, em 1989.

Assim disse dona Nísia sobre Emília, de quem foi colega no último ano do curso normal: “Tinha amizade com ela, e não sabia que ela era homem. Que coisa esquisita! Uma vez, falamos sobre menstruação, ela estava na roda e falou: ‘Eu que não tenho isso’, e foi saindo. Aí, a gente tinha de desconfiar, pois ela estava com 18 anos. As moças todas já tinham ficado moças, e ela, não”.



Vale destacar que, conforme o relato do doutor Rabello em sua tese sobre o caso, o pai de Emília a levou a seu consultório, em setembro de 1917, exatamente pelo fato de até então a jovem não ter menstruado.

CERCA DE ARAME Com seu jeito bem mineiro de falar, dona Nísia contou que sua família e a de Emília eram vizinhas em casas da Rua Paraíba, no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul de BH. “(Éramos) vizinhas de cerca de arame farpado. A gente pedia as coisas emprestadas. Passava pela cerca... Não ia lá fora na rua, não”.

O momento que dona Nísia chamou de “virada de Emília para homem” tem, como coadjuvante, uma “namorada” que Emília tinha na escola, e estava de viagem marcada, de trem, às 5h da madrugada. “Emília, então, disse ao pai que iria à estação acompanhar a moça, ao que o pai bateu o pé e avisou: 'Não, senhora, não vai, não'.” Mas, decidida, pulou o portão de ferro da casa, sem o pai perceber “pois estava dormindo”. No dia seguinte, à tarde, o guarda da rua bateu avisou ao pai sobre a saída da filha. “E foi então que ‘seu’ Nico Soares, o pai foi procurar o doutor David Rabello, que era muito famoso”, relata a ex-colega de escola.



Os detalhes seguintes apontam para o desfecho da história, que “Belo Horizonte inteirinho comentou”. No consultório, à espera, depois de “andar para lá e para cá”, o pai de Emília, o funcionário público Antônio Soares, viúvo havia dois anos, perguntou ao médico. “Então, doutor, e minha filha?”, ao que David Rabello respondeu: “Filha não, meu filho”. Esse relato de dona Nísia veio acompanhado de uma observação: “Foi o primeiro caso, no Brasil, que veio a público”. Depois, a ex-Emília, rebatizado David em homenagem ao cirurgião que lhe operou, casou-se com Rufina Fidalgo, com quem começou a namorar na escola. “Foi minha colega”, relatou a senhora.

O médico David Rabello e outra proeza que entrou para sua biografia: uma cirurgia feita em si mesmo, provavelmente de apêndice, diante de atenta plateia da área (foto: ACERVO DO CEMEMOR/FACULDADE DE MEDICINA/UFMG)


Um cirurgião que virou celebridade


O médico David Rabello já era, na BH dos idos de 1917, cirurgião renomado, cuja fama corria a cidade. Nos dias atuais, seria uma celebridade, com letra maiúscula. Entre suas proezas, está uma cirurgia que fez em si mesmo, além, claro, da mais famosa. Entre outros documentos, ela está registrada no livro de memórias “Beira-mar”, do também médico e escritor mineiro Pedro Nava (1903-1984), que escreveu sobre o colega: “Era homem célebre e conhecidíssimo no Brasil pela operação que fizera numa ‘moça’ normalista de Belo Horizonte, transformando-a num macho perfeito. Tratava-se dum caso de pênis incluso com hipospádia, e essa abertura dava a impressão de vagina defeituosa e tapada. Pois o nosso David desencastoou a caceta, fez-lhe plástica, mais a uretral e transformou em homem a ‘mulher’ que se deitara na sua mesa operatória.”

O acervo do Centro de Memória da Medicina (Cememor) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um espaço precioso para pesquisa e visitação, na Região Hospitalar de Belo Horizonte, guarda documentos, desenhos e fotografias sobre o caso que, na época, ficou conhecido na imprensa, equivocadamente, como uma assombrosa cirurgia de “mudança de sexo”.



Entre as fotos do Cememor, está uma em que o doutor Rabello faz uma cirurgia em si mesmo, diante de uma plateia atenta da área médica. Conforme a biografia do patrono da Cadeira 62 da Academia Mineira de Medicina, escrita por Christobaldo Motta de Almeida, há o seguinte relato sobre o médico que, após retornar da Europa, onde fez especialização em cirurgia na Alemanha e França, entre 1912 e 1914, abriu um consultório em Belo Horizonte e “bem-sucedido profissionalmente, de atitudes corajosas, operou a si próprio”.

Estudos recentes com base na fotografia indicam que a cirurgia, provavelmente, foi de apêndice. Como no registro há várias pessoas auxiliando, em hospital, e era década de 1910, ocorreu certamente na Santa Casa de Misericórdia, então o único da capital.
No Cememor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), está o trabalho de Rabello para concorrer ao cargo de professor substituto da então Faculdade de Medicina de Bello Horizonte, em 1918. Em um volume arquivado, estão duas teses que lhe deram o primeiro lugar no pleito: “Um caso de malformação genito-urinária tratado cirurgicamente” e “A intervenção cirúrgica na diphteria”.