Quem assistiu ao filme “A garota dinamarquesa”, produção de 2015 baseada em fatos reais, acompanhou a trajetória de Einar Wegener, um homem casado que, ao ser retratado em uma pintura pela esposa, Gerda, passa por um conturbado processo de transformação até se tornar uma mulher, com o nome de Lili Elbe. O cenário era a Copenhague de 1926, mas a cirurgia ocorreu em Berlim, Alemanha. O caso é considerado um dos primeiros, no mundo, de “mudança de sexo”.
Neste ano de 2022, o termo “mudança de sexo” se mostra totalmente ultrapassado, assim como os procedimentos cirúrgicos aos quais Einar Wegener, magistralmente interpretado no cinema pelo ator Eddie Redmayne, se submeteu. Atualmente, o termo aceito é cirurgia de redesignação sexual – intervenção pela qual as características sexuais/genitais de nascença de uma pessoa são mudadas para aquelas socialmente associadas ao gênero em que ela se reconhece. Assim, é parte ou não da transição física de transexuais e transgêneros.
No entanto, do outro lado do Oceano Atlântico, a milhares de quilômetros de Berlim e Copenhague, e com nove anos de antecedência, a população de Belo Horizonte já se referia às “mudança de sexo” cirúrgica, ao se referir, erroneamente, à história da jovem Emília Soares (1898-1951), apelidada Miloca, de 19 anos, diagnosticada com hipospádia (malformação genital que acomete pessoas do sexo masculino). Após uma cirurgia a cargo do médico David Corrêa Rabello (1885-1939), Emília se tornou David Soares. Depois disso, tornou-se funcionário público e se casou com antiga colega da Escola Normal. Vale destacar que o mineiro doutor Rabello fez seu curso de especialização em cirurgia em hospitais de Berlim, Alemanha, e também na França, entre 1912 e 1914.
Na França, mais exatamente nos hospitais Jardin-du-Roin e Dieu, em Paris, houve um avanço nas cirurgias, com desenvolvimento de técnicas para correção da hipospádia, conforme ressalta o médico Renato Rocha Lage, regente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital da Baleia, em Belo Horizonte. “Veio trazer um novo futuro para os pacientes”, afirma (leia abaixo).
Nesta última reportagem da série “Vidas em transição – De Emília a David”, o Estado de Minas mostra outros casos ocorridos mundo afora, guardadas, logicamente, as devidas proporções de tempo, espaço, avanços científicos e situações. A exemplo do que ocorreu na Alemanha nazista, época em que a intolerância cravou suas garras para tentar apagar documentos e a vida de um ser humano da história. Nesse caso, era mesmo uma história de “mudança de sexo”.
“Diferente dos outros”
O alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico e sexólogo, fundou o Comitê Cientifico-Humanitário e era considerado pioneiro na defesa dos direitos dos homossexuais, grupo de pessoas hoje definido pela sigla LGBTQIAP+. Com o diretor de cinema Richard Oswald, Hirschfeld escreveu o roteiro e realizou o filme “Diferente dos outros”, que estreou em Berlim em 1919 e é considerado a primeira obra sobre homossexualidade da história do cinema.Não na ficção, mas na realidade, duas vidas se encontraram no Instituto de Pesquisa Sexual de Berlim, onde um grupo de cientistas estudava pessoas trans. No local, trabalhava, em serviços gerais, Dora Richter, apelidada Dörchen. Nascida em 1891, ela se chamava na verdade Richard, embora nunca tenha se sentido um homem, havendo relatos de que, aos 6 anos, tentara arrancar o pênis.
Após conhecer o alemão Magnus Hirschfeld, Dora foi convidada a fazer parte de uma pesquisa – e, em 1922, foi submetida a uma orquiectomia (cirurgia de retirada dos testículos). Sempre sob os cuidados dos cientistas, Dora teve o pênis removido em uma penectomia realizada por Ludwig Levy-Lenz, médico do instituto. Meses mais tarde, recebeu uma vagina artificial, intervenção dessa vez a cargo do cirurgião professor Erwing Gohrbandt, de Berlim.
Durante os estudos no instituto, outras pessoas passaram pelos mesmos processos de Dora, como ocorreu com Lili Elbe. No entanto, Dörchen foi, de fato, reconhecida como a primeira pessoa a ser submetida a cirurgia de transição de gênero na história. O destino de Dora permanece uma incógnita. Alguns acham que ela tenha se tornado vítima de estudantes nazistas que atacaram o instituto, em 1933. Na época, autoridades queimaram documentos, inclusive os registros que falavam sobre a mulher trans.
Seja na Alemanha nazista, seja na conservadora Belo Horizonte de 1917, quando Emília se tornou David, o fato é que em qualquer situação ou tempo ainda há grande desrespeito pelas pessoas “diferentes”, quando o mais importante é que todos tenham “direito a viver da maneira mais prazerosa, saudável e confortável como acham que devem”, conforme defende o escritor, pesquisador e professor Luiz Morando, autor do trabalho “Miloca que virou David – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939)”.
Da segregação à compreensão
Houve um tempo em que pessoas diagnosticadas com hipospádia ou pseudo-hermafroditism ficavam escondidas dentro de casa, longe dos olhares dos vizinhos, distantes das famílias, enfim, apartadas da sociedade. “No século 18, por exemplo, era um tabu”, diz o cirurgião plástico Renato Rocha Lage, regente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital da Baleia, em Belo Horizonte.
No século 19, nos hospitais Jardin-du-Roin e Dieu (referência das época, com treinamentos e cursos desde o século anterior), em Paris, tiveram êxito pesquisas de médicos franceses no campo da cirurgia plástica para corrigir a malformação. “Nos séculos 18 e 19, a França era referência cultural e médica no mundo”, lembra o cirurgião. “Mas os grandes avanços só ocorreram mesmo na década de 1950, nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a preocupação de se fazer a correção antes que os meninos entrassem na puberdade”, explica o médico.
“Trata-se de uma anomalia congênita que existe desde que o mundo é mundo. E é muito frequente, com um índice bem alto de registros na mesma proporção das subnotificações: em cada 350 meninos que nascem, um é diagnosticado com hipospádia”, diz Renato Lage, que defendeu tese de doutorado nessa área da medicina e trabalha em pesquisas com pediatras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Caso raro
hipospádia (malformação genital que acomete pessoas do sexo masculino) tem graus variados – dos graves aos mais raros. O caso específico de Emília Soares, que, após a cirurgia feita pelo médico David Rabello, em 1917, tornou-se David Soares, é considerado um caso incomum de anomalia congênita, pois era “provavelmente um caso de hipospádia perineal e genitália ambígua, forma que é mais rara”.“Nas formas mais severas de hipospádia, a genitália (pênis e bolsa escrotal) se apresenta ambígua, levando a erro de diagnóstico do sexo do indivíduo, que, no caso, é masculino”, acrescenta o médico Renato Lage.
Para uma época de poucos recursos tecnológicos, como era o Brasil de 1917, Renato Lage destaca o pioneirismo do doutor David Rabello: “Ele foi o primeiro cirurgião plástico de Minas Gerais”. Passados 105 anos, cirurgias do tipo são feitas atualmente logo após o nascimento dos bebês do sexo masculino, e jamais após a pré-puberdade. “O indivíduo poderá ter uma vida plena, com relações sexuais eficazes, sem prejuízo para geração de filhos e o prazer a dois”, explica o cirurgião.
Bullying
Renato Lage diz que a correção da deformidade peniana permite que a criança urine em pé, e melhora o aspecto da genitália. Isso evita comparações desastrosas e bullying, que pode causar sérios danos emocionais e psicológicos à criança. “Dessa forma, a idade para correção, que muitas vezes necessita de várias etapas, deve terminar até a pré-escola ou primeira infância (6 a 7 anos) ou antes.”Uma forma de garantir que a história de Emília, que se tornou David após viver como mulher até os 19 anos na BH do início do século 20, seja tratada como merece: um caso digno de registro para a medicina, merecedor de reprovação pelo preconceito com que muitas vezes foi tratado e um alerta sobre o direito de cada um viver plenamente e ser aceito da maneira com a qual melhor se identifica.
Vidas em transição
Dia a dia
1) Na primeira reportagem da série “Vidas em transição”, o EM detalhou como, na BH conservadora de 1917, o médico David Rabello faz uma cirurgia pioneira de desambiguação de sexo, pela qual um rapaz que fora criado como mulher até os 19 anos se tornou David Soares, com alteração de destino e do nome na carteira de identidade.
2) O pioneirismo do doutor Rabello no caso que ficou erroneamente conhecido como de “mudança de sexo” provocou grande repercussão até as décadas seguintes, mostrou a segunda reportagem da série, como lembra a belo-horizontina Maria Amélia Amaral Teixeira de Salles, hoje com 91 anos.
3) Mais de 20 cirurgias de desambiguação de sexo semelhantes foram registradas em BH até a década de 1930, no Hospital São Vicente de Paulo, hoje Hospital das Clínicas, revelou o EM no terceiro dia de reportagens.
4) “Vidas em transição” mostrou, na quarta publicação, que o mundo em ebulição durante a Primeira Grande Guerra marcava também a BH que acompanhava pela imprensa os casos de mudança de gênero – muitas vezes tratados em tom de deboche.
5) A intervenção que levou à redefinição de gênero foi um choque para os costumes de uma Belo Horizonte inaugurada havia apenas 20 anos e com amplos problemas de infraestrutura urbana, revelou a série em seu quinto dia de publicação.
6) Na sexta reportagem de “Vidas em transição”, fotos de época ajudam a revelar um pouco da rotina e dos perfis dos dois principais personagens dessa história: Emília, que em foto com as colegas da escola normal exibe vestido de gola alta, para disfarçar o pomo de adão, e o cirurgião David Rabello, retratado em uma imagem em que opera a si mesmo diante de colegas.