Jornal Estado de Minas

BAIRRO SANTO ANTÔNIO

Casas recuperadas da Rua Congonhas ainda estão desocupadas

 

 O conjunto de casas coloridas e ajardinadas da Rua Congonhas, na esquina com as ruas Leopoldina e Santo Antônio do Monte, preservam um pedacinho da Belo Horizonte antiga, já quase toda ocupada por prédios modernos, no tradicional Bairro Santo Antônio. Depois de anos de abandono e obras, as casas voltaram a ter fachada e cores da época de sua construção, cujos registros mais antigos são de 1924. A restauração foi entregue em janeiro deste ano, porém o futuro dos imóveis ainda é incerto e até hoje não foram ocupados.





 

O leitor mais jovem provavelmente não conhece nenhuma de suas histórias, mas quem tem mais de 40 anos talvez se lembre da icônica casa na esquina da Rua Leopoldina com a Congonhas, que serviu de moradia ao escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) e também marcou a alta boemia da cidade nas décadas de 70 a 90. “Essas casas fazem parte da memória afetiva do bairro. O Santo Antônio foi formado por pessoas que vieram do interior e o trouxeram para suas casas. Então, aquela coisa do paninho de crochê, do biscoitinho, eram pessoas modestas e, aos poucos, vêm perdendo essa identidade”, conta a professora emérita da UFMG Eliane Marta Santos Teixeira Lopes, que publicou, em 2015, um livro sobre o Bairro Santo Antônio.

 

A construção de um prédio no terreno vizinho ao conjunto arquitetônico de 13 casas, em 2015, alarmou a vizinhança e defensores do patrimônio cultural. Na época, a movimentação de máquinas no canteiro de obras, com frente para as ruas Congonhas, Leopoldina e Santo Antônio do Monte, acendeu o alerta para uma possível destruição do patrimônio, em estilo eclético tardio de influência neocolonial. Em 2011, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (CDPCM) aprovou a construção do empreendimento no terreno de 28,9 mil metros quadrados, o qual contemplava a restauração dos imóveis tombados. Das 13 casas, sete são particulares e seis são de propriedade do condomínio que construiu o prédio de 27 andares no local. Na época, a construtora responsável disse que o projeto foi aprovado apenas como uso residencial. 

 

(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

 

O Estado de Minas procurou a síndica do condomínio para saber o que será feito no conjunto histórico, mas não teve retorno. Hoje, as casas ainda contam com segurança 24 horas. Enquanto não há uma definição oficial do que será feito das residências, moradores confabulam pelas ruas do bairro sobre o que vai funcionar ali. “É um ponto de interrogação. Acho que deveria ser biblioteca, espaço de lazer, algo que valorize a cultura da região”, comenta a aposentada Sueli Senna, de 60 anos. “Diz que vai funcionar um restaurante agora. Mas ainda é um mistério”, considera a pedagoga Patrícia Lara, de 62.





 

Vizinho ilustre

 

Em meados de 1929, o autor de “Grande Sertão: Veredas” morou no número 415, na esquina da Rua Leopoldina com a Congonhas, quando se casou com sua primeira esposa, Lygia Cabral Penna. Uma cópia da certidão de casamento, descoberta em 2015, aponta a residência como endereço do casal. O documento, autenticado por Vicente de Paulo Silveira, oficial do registro civil da 1ª Zona de BH, está guardado na Superintendência de Museus e Artes Visuais, órgão ligado à Secretaria de Estado de Cultura. Além do registro, Vilma Guimarães Rosa, filha de Guimarães, já confirmou em entrevista que morou na casa com os pais.

 

Décadas depois, a construção, que até poucos anos atrás era pintada de verde, abrigou o Bar do Lulu, fechado há duas décadas e parte famosa da vida noturna da capital. “Em 73, foi o auge do bar. Não cheguei a frequentar, mas sei que ali era onde acontecia tudo: música, amores, loucuras. Foi um dos primeiros bares belo-horizontinos a funcionar 24 horas. Era o último refúgio da madrugada”, conta Eliane. A casa, hoje na sua cor original – um tom de rosa claro –, foi palco até do cinema, usada como cenário para a produção do filme “O menino maluquinho”, de Helvécio Ratton.

 

De forma nostálgica, a servidora pública Tatiana Vitório de Alencar Arraes, de 43, que morou no bairro por mais de 20 anos, tem esperança de que a rua retome sua tradição boêmia. “A noite era bem agitada, porque tinha restaurantes e bares tradicionais de BH. Eu espero que volte a ser mais movimentado. É uma região muito boa, perto de tudo. Meus pais ainda moram no bairro e costumo vir bastante aqui. Seria interessante voltar a frequentar ”, anseia. Para ela, as casas não têm “cara” de construção residencial. “Ficou parecendo uma vila. Nem sei o que vai ser na verdade, mas não parece residencial. É tudo muito aberto”, disse.





 

(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
 

 

A reforma

 

Ao longo dos anos, o conjunto arquitetônico de 13 casas, tombadas pelo patrimônio em 2007, passou por várias etapas de ocupação. “As pessoas moravam ali. Era uma rua muito pacata, apesar da agitação noturna dos bares. Tudo misturado, comércio com moradia. Na época do Guimarães, acho que era só moradia, depois que foi alugar para fazer esses restaurantes”, conta Patrícia Lara. Moradora do bairro vizinho, o São Pedro, no limite com o Santo Antônio, ela costuma fazer compras na área. “Moro na região desde criança, há 60 anos. Inclusive, estou encantada com essas casas, me apaixonei. Tinha vontade de morar aqui”, disse. 

 

O projeto que serviu de base para as restaurações é de 1947 e foi feito pelo Escritório Brasil de Engenharia e Arquitetura. Em 2019, houve uma revisão geral do projeto de restauração das 13 edificações, com diretriz para recuperar os principais elementos estilísticos, como vãos de janelas e portas, elementos de composição, estruturas das paredes externas, coberturas e fachadas laterais e frontais. “Tem um corredor com uma pracinha, maravilhoso. Ali era tudo loja. Não era assim, era um corredor, mas tinha restaurante, loja de aviamento, conserto de roupa e agora que ficou assim”, conta Patrícia.

 

Quem passa pela Rua Congonhas hoje só tem elogios à restauração dos imóveis, mas muitos moradores ainda se queixam do prédio construído no terreno, e dizem que ele atrapalhou a vista. “Não gostei da construção desse arranha-céu aí. Acho que comprometeu a característica do bairro, que é um bairro residencial, casas. A especulação imobiliária tomou conta”, reclama a aposentada Sueli Senna. “O Santo Antônio hoje é outro. O bairro virou esse paliteiro, cheio de prédios. As pessoas querem, inclusive, que as construções da década de 70 fiquem como os de hoje em dia. Estou muito descrente com a reação das pessoas a essa urbanização desenfreada”, concorda Eliane.





 

Proteção da identidade 
da região e da cidade

 

Segundo o arquiteto e urbanista Flávio Carsalade, a preservação e recuperação dos bens são importantes para proteger a identidade cultural de determinada região. “Edifícios antigos não são necessariamente velhos, eles podem ser o ‘baú do tesouro’ para as novas gerações e isso depende do valor e cuidado atribuídos a eles”, destaca. A professora Eliane complementa e ainda reforça a importância disso para a construção da identidade da cidade. “As memórias individuais conseguem construir memórias coletivas. E sem memória coletiva uma cidade tende a não ter nenhuma identidade. Por isso essa preservação é tão importante”, afirma. 

 

Os primórdios do Bairro Santo Antônio, que hoje conhecemos como um dos bairros mais valorizados da cidade, eram rurais. A casa onde viveu Guimarães Rosa fica no perímetro de proteção do Conjunto Urbano Bairro Santo Antônio, que surgiu com a ocupação dos terrenos de duas fazendas contemporâneas ao Arraial do Curral Del Rey. A porção oeste do bairro, que chega à Avenida Prudente de Morais, corresponde à parte da antiga Fazenda do Leitão. Já a porção leste, onde ficam as casas tombadas, se origina da antiga Fazenda do Capão. Os anos de 1970 marcaram a ocupação das partes mais elevadas do bairro, dando início ao processo de verticalização e adensamento.

 
 

Curiosidades


  • Os registros mais antigos dos imóveis são de 1924 e 1925. O proprietário era João Trajano dos Santos.
  • O projeto que serviu de base para as restaurações é de 1947 e foi feito pelo Escritório Brasil de Engenharia e Arquitetura
  • Estilos artísticos remetem ao neocolonial simplificado, ao ecletismo e ao art déco
  • O conjunto serviu de cenário para o longa “O menino maluquinho” (1995). Foi moradia para o escritor Guimarães Rosa e abrigou tradicionais bares da boemia de BH
  • Em 2007, as casas foram tombadas pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (CDPCM)
  • Em 2011, o CDPCM aprovou a construção de um empreendimento da Canopus Desenvolvimento Imobiliário Ltda no miolo da quadra 13, quarteirão que abriga as casas, o qual contemplava a restauração dos imóveis tombados
  • Em 2019, houve uma revisão geral do projeto de restauração das 13 edificações