A cidade é um livro aberto, com as várias linhas do tempo nas ruas, novidades a cada esquina, espaço de convivência nas praças. Pena que, muitas vezes, alguém arranca, rasga ou risca uma “página” dessa obra, deixando a paisagem urbana mais pobre à sombra do descaso. Quer exemplos? As estátuas de escritores mineiros, instaladas em lugares públicos de Belo Horizonte, sofrem com a mão pesada do vandalismo, em total desrespeito à cultura. Não escaparam da agressão Henriqueta Lisboa (1901-1985), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Murilo Rubião (1916-1991).
Indignados com a situação da estátua da poeta, tradutora e ensaísta Henriqueta Lisboa, integrantes da Academia Mineira de Letras (AML) e da Rua da Literatura (livrarias da Rua Fernandes Tourinho) fazem um ato hoje (10/9) para lavar, perfumar e colocar flores no monumento, localizado diante do prédio onde ela morou até a morte, na Rua Pernambuco, na Savassi, na Região Centro-Sul de BH. Poesias da primeira mulher a ocupar uma cadeira na AML serão lidas.
Quem passa pelo local não deixa de se impressionar com as marcas do ataque. Em junho, a peça criada pelo escultor Leo Santana foi pichada e teve arrancados os braços que seguravam um livro. Não bastasse a amputação cultural, os olhos foram pintados de vermelho, rabiscado um bigode e desenhado um órgão sexual masculino no queixo. “É preciso preservar, jamais destruir o patrimônio público. A cultura mostra a evolução de um povo, então considero isso um desrespeito”, disse o administrador aposentado Carlos Alberto Costa Fonseca, que, ao passar pela rua, sempre se indigna.
A manifestação de hoje contará com a presença de familiares de Henriqueta Lisboa, além de admiradores, que vão chamar a atenção para a importância da escritora e a necessidade, por parte da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), de restaurar a estátua e reforçar a segurança no local.
Atos de vandalismos são absurdos, diz o presidente da AML, Rogério Tavares, que estará no local. “As cidades são um conjunto de memórias e afeto. Precisamos cultuar essa cultura e, de forma especial, as pessoas que fizeram tão bem à cidade. Henriqueta Lisboa cantou BH em prosa e verso. Seu legado é inestimável e merece todo apreço e estima”, disse Tavares, que pede restauro para a peça e reforço na segurança para protegê-la.
FRATURAS EXPOSTAS
Na manhã de quinta-feira, a equipe do Estado de Minas percorreu vários pontos de BH, nos quais há estátuas de mineiros de renome nacional. Outro exemplo lamentável, além de Henriqueta Lisboa, está na Praça do Encontro, na esquina das ruas Goiás e Bahia, no Centro. A poucos metros da sede da PBH, a estátua em tamanho natural de Carlos Drummond de Andrade está sem a mão direita e com parte dos óculos quebrada. Ao lado, está o médico e escritor Pedro Nava, também em tamanho natural, felizmente sem fraturas expostas.
Residente em Sabará, na Região Metropolitana de BH, a professora Maria Lucilene Aguilar se surpreendeu, e disse que, somente com educação, será possível mudar a situação. “As crianças e os jovens precisam ficar menos tempo no celular e mais ocupados com a cultura. Mais de olho nos livros, do que na tela (do smartphone). O caminho para a preservação passa pelo amor ao patrimônio”, afirmou. Lembrando que destruir um bem público é como “arrancar a página de um livro”, Bianca Alves dos Santos, de 22 anos, acrescentou que os moradores e a história da cidade saem perdendo com a destruição.
CADÊ RUBIÃO?
Bem na frente da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, na Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul, moradores e visitantes podem ver a reunião de um grupo muito especial de escritores. São eles Fernando Sabino (1923-2004), Hélio Pelegrino (1924-1988), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Otto Lara Resende (1922-1992).
Mas a curiosidade se aguça quando se vê, perto dali, apenas a placa com o nome de Murilo Rubião, autor de obras como “O pirotécnico Zacarias”. E vem a pergunta: “Cadê ele?”.
A resposta vem da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult): “A estátua do escritor Murilo Rubião sofreu um ato de vandalismo, foi recolhida e está guardada, atualmente, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais. A confecção da obra de arte foi viabilizada pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, e a instalação no gramado da biblioteca foi autorizada pelo governo de Minas, por meio do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).
E mais: “A estátua segue trâmites de doação da família de Murilo Rubião para a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo. No momento, os direitos patrimoniais da obra estão com André Rubião, proponente do projeto de lei que viabilizou a instalação em 2017”.
Na correria em direção ao trabalho, o EM ouviu a opinião de algumas pessoas que passavam. “É um verdadeiro absurdo”, disse um jovem de Caratinga, enquanto uma mulher ressaltou que se trata de “desprezo pela capital”. Um homem de terno resumiu: “Falta de educação... aquela que vem do berço, e do que se aprende na escola”.
RESTAURAÇÃO
Na tarde de ontem, a PBH divulgou nota informando sobre o restauro das esculturas dos escritores mineiros. “Com prazo estimado de 120 dias, a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e da Fundação Municipal de Cultura, anuncia a restauração das estátuas públicas que homenageiam os grandes representantes da literatura mineira Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, Henriqueta Lisboa e Roberto Drummond. As esculturas foram confeccionadas em bronze e em tamanho real pelo artista Leo Santana, que acompanhará todo o processo de restauração.”
Segundo a secretária municipal de Cultura, Eliane Parreiras, os trâmites internos para que seja feita a recuperação das esculturas já estão em andamento. “Realizamos um grande empenho para que pudéssemos definir prazo e a total recuperação das esculturas. Avançamos internamente nos procedimentos burocráticos e definimos que todas as despesas serão pagas por meio de medida compensatória do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Essa decisão vai garantir a completa e merecida restauração das obras, que reúnem parte da memória da nossa cultura literária.”
A nota oficial traz ainda uma declaração da presidente da Fundação Municipal de Cultura, Luciana Féres: “A depredação das obras nos causou muita tristeza, mas agora estamos otimistas com a proposta da completa recuperação desse acervo tão importante. As esculturas são obras de arte que estão expostas no espaço público, que é coletivo, e esse patrimônio cultural deve ser cuidado por todos. Esses elementos constituem a nossa memória e identidade, nosso patrimônio cultural que estava em deterioração e, agora, devolveremos à sociedade essa justa homenagem aos escritores que marcaram a história de nossa cidade”.
Após o fim das restaurações, adiantou Luciana Féres, será realizada uma campanha educativa sobre a importância dos monumentos e a responsabilidade de cada cidadão com os bens culturais.
Personagens de BH
Conheça as estátuas de escritores nas ruas e praças de BH, feitas pelo escultor Leo Santana
» Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava – Ficam na Praça do Encontro, na Rua Goiás com Rua da Bahia, no Centro. Esculturas em bronze, de 2003, tamanho natural. Serviço: solda da mão direita e fundição e solda dos óculos de Carlos Drummond de Andrade; remoção da oxidação desgastada e nova pátina nas duas esculturas.
» Henriqueta Lisboa – Na Rua Pernambuco, Região da Savassi. Homenagem à poeta, tradutora e ensaísta natural de Lambari, no Sul de Minas. Escultura em bronze, tamanho natural, de 2006. Serviço: restauração da escultura com modelagem das duas mãos e do livro, fundição, solda, revitalização, remoção da oxidação desgastada e nova pátina.
» Roberto Drummond – Na Praça da Savassi, está a homenagem ao escritor e jornalista. Escultura em bronze, tamanho natural, de 2003. Serviço: restauração da escultura, incluindo revitalização, remoção da oxidação desgastada e nova pátina.
» Encontro Marcado – Na Praça da Liberdade, está a homenagem aos mineiros Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino. Esculturas em bronze, tamanho natural, de 2005.
» Murilo Rubião – A peça ficava tradicionalmente na Praça da Liberdade, mas no local está apenas uma placa. Escultura em bronze, tamanho natural, de 2010. A estátua, guardada na Biblioteca Pública Estadual, pertence à família do escritor e, no momento, está em processo de doação para a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult).