(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas NUTRIÇÃO

Com a palavra, quem enfrenta a fome: "Ou comprava gás ou arroz e feijão"

Pesquisa indica que a insegurança alimentar em diferentes níveis afeta mais da metade da população mineira. Exército de famintos beira 2 milhões de pessoas


15/09/2022 04:00 - atualizado 15/09/2022 08:50

Mais da metade dos mineiros convivem com algum nível de insegurança alimentar, enquanto 8,2% deles, quase 2 milhões de pessoas, enfrentam sua forma mais grave: a fome. É o que apontam dados do 2º Vigisan – Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, coletados entre novembro de 2021 e abril deste ano.O levantamento, encomendado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) divulgou ontem a realidade dos estados em relação às dificuldades de nutrição (veja gráfico).

 

Na pesquisa, o déficit de alimentação é classificado em dois outros níveis, além do grave. A insegurança alimentar moderada se refere à restrição de acesso aos alimentos em qualidade e quantidade suficientes, e atinge 16% da população mineira, segundo o estudo, pouco acima da média nacional. A forma considerada leve afeta famílias que enfrentam instabilidade no acesso à nutrição e se preocupam com a falta dela em futuro próximo, condição que o trabalho associa a 28,3% dos moradores do estado, praticamente o mesmo índice do país. Somadas, as três classificações chegam a 52,5% da população de Minas Gerais.

 

A preocupação com o que colocar na mesa é bem conhecida pela autônoma Vanessa Cristina Oliveira da Silva, de 40 anos, que mora com o marido e dois filhos no Bairro Granja de Freitas, na Região Leste de Belo Horizonte, e afirmou conviver com o problema desde o início da pandemia. “Até então, eu que estava sustentando a casa. Sou pensionista, faço bico na padaria. Mas a situação apertou demais, e eu estava vivendo de doações. Está tudo muito caro. Já fiquei 15 dias sem gás. Ou comprava o gás ou o arroz com feijão.”

 

Belo Horizonte - MG. Vanessa Cristina Oliveira da Silva, de 40 anos, moradora do Bairro Granja de Freitas
"Está tudo muito caro. Já fiquei 15 dias sem gás. Ou comprava o gás ou o arroz com feijão", Vanessa Cristina Oliveira da Silva, que vive no Bairro Granja de Freitas com o marido e dois filhos (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

 

Uma líder comunitária do Granja de Freitas, que preferiu não se identificar, relacionou a insegurança alimentar na comunidade a outros problemas sociais, como desemprego, evasão escolar e criminalidade. Desde o início da pandemia, ela faz um trabalho de combate à fome entre os moradores. “Atendemos de 100 a 200 famílias, mas no pós-pandemia as doações caíram a nível zero. Estão passando muita dificuldade”, disse ela.

 

“A taxa de desemprego é muito alta, as pessoas procuram emprego e não acham, ou acham pedindo ensino médio completo”, relata. Ela cita o exemplo de mãe solo com mais de 40 anos, que tem dificuldade de voltar para a escola. “Ela não consegue estudar e nem emprego. Os filhos crescem vendo a mãe passando dificuldade. O risco de esses jovens entrarem na criminalidade é muito alto, por isso é importante ter projetos e investimento nas comunidades”, alerta.


SUMIÇO DE DOAÇÕES Evailton Pereira, que vive em situação de rua com a companheira no entorno do complexo de viadutos da Lagoinha, acesso à Região Central de Belo Horizonte, conta que as únicas refeições que faz atualmente são provenientes de doações feitas por projetos sociais. Mas admite que elas não são diárias. Quando a solidariedade falha, o casal passa fome. “Agora, a situação piorou ainda mais do que antes da pandemia”, constata.

 

Belo Horizonte - MG. Evailton Pereira, que vivem debaixo do Complexo de Viadutos da Lagoinha
Evailton Pereira, que vive com a companheira no Complexo da Lagoinha, em BH, mostra latas vazias: solidariedade diminui e a necessidade aumenta (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Ronaldo Lima, que vive nos arredores da Praça da Estação, no Centro de BH, afirmou que só as marmitas que recebe diariamente e o apoio do Restaurante Popular, que vende alimentos a preços baixos, evitam que passe fome. Mas também constata que o número de voluntários diminuiu após as restrições mais severas da crise sanitária. “Antes, chegava a ter até desperdício”, afirma.

 

Professor vê causas econômicas e sociais

Para o professor titular de sociologia Jorge Alexandre Neves, da Universidade Federal de Minas Gerais, alguns fatores explicam a escalada do fantasma da fome no Brasil. “O primeiro é a inflação dos alimentos, extremamente alta para a população. O segundo é a forte precarização do mercado de trabalho: temos de um lado o crescimento elevado e acelerado do mercado informal e do outro a precarização do mercado formal, a partir das sucessivas reformas trabalhistas que temos tido no Brasil”, avalia.

 

Outros motivos, na visão do especialista, são o desmonte de políticas sociais, a desestruturação dos estoques reguladores de alimentos e a estagnação dos aumentos reais do salário mínimo, que é referência para todo o mercado de trabalho e pode elevar a estrutura salarial do setor formal, com influência sobre os ganhos dos informais. “São fatores que explicam muito bem o problema no qual chegamos, esse trauma do aumento da fome e da insegurança alimentar de forma ampla no Brasil.”

 

O professor frisa que as regiões mais afetadas pelo problema em Minas Gerais são as mais pobres. “Vales do Jequitinhonha, do Mucuri, do Rio Doce e o Norte são as principais regiões que sofrem com isso. Onde há mais pobreza, há mais fome”.

 

Falta de alimentos chega até o campo

O engenheiro-agrônomo Rodrigo Pires Vieira, agente da Cáritas Brasileira/Regional Minas Gerais, constata que a insegurança alimentar não atinge os lares apenas diretamente na nutrição, mas também em outros aspectos. “Toda essa carestia dos alimentos e da gasolina dificulta o acesso das pessoas à alimentação. Na Cáritas, a gente nem trabalhava mais a questão da cesta básica, mas tivemos que retomar isso. Estamos vendo uma consequência de aumento na mortalidade infantil, no grau de desnutrição, no aumento da violência com pequenos roubos. São consequências de falta de políticas de alimentação”, acredita o representante da entidade, que congrega organizações humanitárias da Igreja Católica.

 

“A fome chegou até a roça, situação também causada por questões climáticas. No Jequitinhonha e Norte de Minas, chove na hora errada, às vezes com muitas chuvas, com situação de calamidade pública nessas regiões mais pobres, levando moradores a perderem suas plantações”, afirma. “Antes, tínhamos política de construção de cisternas, que levava água de qualidade às famílias do semiárido mineiro. Agora, essa política foi trocada pelo caminhão-pipa, com água de pouca qualidade, famílias tendo que andar até cinco quilômetros para pegar água, o que aumenta a desnutrição”, afirma.

 

POLÍTICAS Questionado sobre os números relativos à nutrição em Minas, o governo estadual informou que executa projetos de apoio imediato aos municípios e investe em ações para assegurar a efetividade das políticas públicas voltadas para a segurança alimentar. Entre elas, cita o apoio aos bancos de alimentos municipais e ações de assistência social permanentes e excepcionais, como as adotadas durante a pandemia e situações de emergência e calamidade, a exemplo das provocadas pelas enchentes da última estação chuvosa. 


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)