Dona Dinalda Maria Machado Henriques tinha 42 anos e uma rotina de dona de casa, em 2011, quando começou a sentir os dentes bambearem. Logo depois veio uma infecção na raiz dos dentes. E por fim, alguns começaram a cair. A preocupação aumentou quando apareceu uma íngua no pescoço. Foi o estopim para buscar um médico.
Dinalda foi diagnosticada com Linfoma não Hodgkin de grandes células B, uma espécie de leucemia, um câncer mais raro. Na época, morava em Ipatinga, no Vale do Aço, e mudou para Juiz de Fora, que dispunha de mais recursos hospitalares.
“Trabalhava em casa, tive que abandonar tudo para poder cuidar e seguir com o tratamento. Consegui 'encostar' no INSS, na época”, recorda Dinalda.
A dona de casa se recuperou do câncer em 2012. No entanto, dois anos depois, a doença voltou. Em 2017, precisou fazer um transplante de medula, procedimento que voltou a fazer em 2020.
A partir daquele ano, o cenário já era totalmente diferente. Dinalda tinha dificuldade de encontrar médicos, marcar exames e conseguir remédios para tratar do câncer.
“Muita dificuldade com médico, com exames. Quando eu fui fazer a primeira , consegui o tratamento original, que é o coquetel direcionado a linfomas. Em 2020, não consegui mais. Consegui outra quimioterapia . Tive que ficar internada”, relatou a dona de casa.
Dinalda relata que, a partir de 2020, o câncer se espalhou para o intestino. Com muitas dores, passou dias nas Unidades de Pronto Atendimento para conseguir atendimento. “Demorava, não tinha vaga para fazer exames e médicos. Na época de internar, você precisa passar pelas UPAs. Precisei ficar quatro dias sentada para esperar a vaga sair. Às vezes nem remédio para dor tinha. Demorou seis meses para ser atendida”, relatou.
E quando conversava com os médicos e enfermeiros sobre a demora, a resposta era sempre a mesma. “O governo não dá condições para comprar os remédios, essa era a justificativa que os funcionários davam”, relembrou Dinalda.
Sem conseguir os remédios pelo SUS, o filho de Dinalda, Lucas Gabriel, precisou arcar com os custos. Jornalista, o rapaz gastou cerca de R$ 20 mil durante três meses apenas com remédios. “Peguei dinheiro emprestado para custear e paguei parcelado a maioria dos medicamentos”, relatou.
Mesmo com as dificuldades, Dinalda conseguiu fazer o tratamento. No entanto, as sequelas ficaram. Hoje, aos 53 anos, ela tem dificuldades de audição e de movimentação dos membros superiores.
Cortes
Para irrigar o Orçamento Secreto, o governo Jair Bolsonaro (PL) cortou verbas de diversos ministérios. Pelo menos é isso que mostra o projeto de orçamento encaminhado para o Congresso Nacional.
Entre os diversos cortes, um que chama atenção é o relacionado ao câncer. Para o ano que vem, estão programados R$ 97 milhões para “Rede de Atenção à Pessoa com Doenças Crônicas - Oncologia”. O valor é 45% menor que o aplicado em 2022, que foi de R$ 175 milhões.
A tesourada atinge o repasse de dinheiro do Ministério da Saúde para os governos estaduais, prefeituras e entidades sem fins lucrativos para implementar, aparelhar e expandir os serviços de saúde hospitalares e ambulatoriais.
Em Juiz de Fora, uma das referências na área de cirurgia oncológica era o Hospital Universitário. No entanto, em 2022, deixou de realizar o procedimento. Segundo o HU, o Hospital não conseguiu o credenciamento junto à Secretaria Estadual de Saúde. Além disso, a instituição não recebia do Ministério da Saúde os valores da tabela de serviços de oncologia.
“Sem o credenciamento e o recebimento pelo Ministério da Saúde dos valores da tabela de serviços de oncologia, a continuidade das cirurgias oncológicas pode comprometer a sustentabilidade da instituição, ameaçando, inclusive, outros serviços essenciais prestados à população de Juiz de Fora e região”, afirmou em nota o HU.
Mesmo antes de acabar com o serviço, o número de cirurgias oncológicas no HU estava em queda. Em 2016, foram 453 procedimentos. Em 2018 foram 624, o maior para a série histórica divulgada pela assessoria da instituição. Em 2021 foram 287 cirurgias, o menor número registrado. Em 2022, até a decisão de suspender o serviço, tinham sido realizados 219 procedimentos.
“Os pacientes atendidos no HU-UFJF foram encaminhados para continuidade do tratamento nos centros credenciados”, informou o órgão.
Cortes preocupam
Para Lourival Oliveira, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), os cortes anunciados pelo governo federal preocupam justamente por atingir uma área importante. Em 2020, último ano com dados disponíveis, morreram de câncer 225.839 brasileiros, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA).
“A gente tem uma pressão e uma demanda acumulada enorme. O que você teria para os programas de saúde não era ter cortes, e sim ampliação. A gente sabe o que significa quem depende desse tratamento. Você precisa ter toda a atividade preventiva para tentar detectar com antecedência o câncer. Tendo detectado, tem que ter o acompanhamento o quanto antes. As pessoas com problemas precisam ter acesso aos tratamentos. Quanto mais tempo demora, a situação só piora”, lamentou o professor.
Para Lourival, quem quer que seja o presidente em 2023, precisará encontrar soluções orçamentárias para a área. “Qualquer governo que assumir o ano que vem terá que reverter isso, com uma dificuldade muito grande, pois o impacto que você tem é reduzir a quantidade e a qualidade do atendimento. Isso para uma população que vem de uma pandemia, que precisa do SUS para combater sequelas e outros problemas”, destacou.
E para quem sofre na pele os problemas do câncer sabe que é uma doença que não dá para esperar. “ São muito preocupantes, porque muitos podem piorar por falta de medicamentos. O câncer não espera”, finalizou Dinalda.
O Ministério da Saúde foi procurado para responder sobre os cortes orçamentários no programa “Rede de Atenção à Pessoa com Doenças Crônicas - Oncologia”, mas até o fechamento desta reportagem não se manifestou.