Após três meses de investigações, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) indiciou ontem quatro representantes da empresa mineira Tecno Clean Industrial pela morte de 14 cães no estado. Os animais foram intoxicados por petiscos contaminados com monoetilenoglicol, substância química imprópria para o consumo animal e humano, que, de acordo com as apurações, foi fornecida com rótulo adulterado pela empresa ao fabricante Bassar Pet Food, como se fosse propilenoglicol, um aditivo com função umectante tradicionalmente usado na indústria de alimentos. Aliviados, os tutores dos animais que foram vítima de contaminação encaram a notícia como um passo para que seja feita justiça e aguardam os próximos desdobramentos. Alguns já estão movendo processos individuais na Justiça, mas um grupo de 105 pessoas pretende requerer uma ação coletiva. Em todo o país, segundo a polícia mineira, há relatos de cerca de 50 mortes e mais de 100 hospitalizações de cães relacionadas aos petiscos.
A Polícia Civil concluiu que a Tecno Clean, empresa com sede em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, praticou crime hediondo de falsificação contra a saúde pública, com dolo, conforme o artigo 273 do Código Penal, que prevê pena de 10 a 15 anos de reclusão. Segundo as apurações, a indústria comprava monoetilenoglicol e propilenoglicol da empresa A&D Química, de Arujá, São Paulo. Uma identificação incorreta de rótulos gerou o envio do monoetilenoglicol para a produtora de petiscos.
Em entrevista coletiva,a delegada Danúbia Soares, responsável pelo inquérito, explicou que a Tecno Clean trocou os rótulos dos produtos adquiridos antes da revenda à Bassar. Segundo ela, barris de monoetilenoglicol e propilenoglicol foram acondicionados lado a lado na empresa, “tendo a Tecno Clean assumido o risco de produzir o resultado morte por contaminação dos cães, que ocorreu no território nacional”.
Ainda segundo a delegada, em celular apreendido durante as investigações há conversas entre funcionários da A&D e da Tecno Clean que “revela que era sabido que a revenda do monoetilenoglicol não é permitida para empresas de ramo alimentício, apenas para empresas do ramo industrial”. A restrição é explicitada pelo funcionário da empresa paulista durante a conversa.
O CRIME E A PUNIÇÃO Os quatro funcionários da Tecno Clean foram indiciados por falsificação prevista no artigo 273 do Código Penal. Segundo o advogado criminalista Matheus Falivene, esse artigo pune quem “fabrica, vende, expõe à venda, importa, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo substância alimentícia ou o produto falsificado, corrompido ou adulterado”. É um crime considerado grave, que pode levar os indiciados a penas de 10 a 15 anos de prisão se forem condenados pela Justiça.
Porém, segundo o criminalista, há uma discussão sobre essa punição, já que a pena mínima é alta e os processos podem ser demorados em função de contestações, que podem fazer com que o processo se arraste. “Houve uma alteração na definição desse crime em 1998, por causa de pílulas anticoncepcionais falsas. Essa é uma das penas mínimas mais altas do Código Penal. A pena mínima por tráfico, por exemplo, é muito mais baixa, de cinco anos. Alguns juízes acabam usando essa, por a considerarem mais adequada”, explica.
AÇÕES INDIVIDUAIS Embora, se instaurado, um processo criminal implique longo caminho, os tutores dos animais se sentem aliviados pelo indiciamento e estão esperançosos que a Justiça seja feita por seus cães. O inquérito ainda deverá ser analisado pelo Ministério Público, que decide se denuncia os indiciados à Justiça, cabendo a esta acatar ou não a eventual denúncia. Segundo o coletivo Petiscos Intoxicados, composto por 105 tutores, entretanto, já há mais de 22 ações individuais contra a empresa responsável pela fabricação dos petistcos, a Bassar Pet Food.
Entre os pets que morreram após consumir petiscos contaminados está Malu, uma shih-tzu de 6 anos. Ela ficou internada por cerca de duas semanas e morreu em 6 de setembro, após duas transfusões de sangue e hemodiálise. Segundo a tutora, a analista financeira Amanda Carmo, saber que a investigação foi concluída já é uma vitória. “Não vai trazer a Mallu de volta, mas a sensação de justiça me deixa aliviada. Que isso não aconteça com outros cães.” Para ela, a perda foi muito sofrida. “Agora, a gente, infelizmente, se acostuma com a dor, mas o sofrimento continua.”
A paulista Ana Clara Pires Sodré também afirmou estar esperançosa. Ela perdeu duas cadelas em setembro e só soube da intoxicação após a morte delas. Embora esteja aliviada pela conclusão do inquérito, ela acredita que os vendedores do produto deveriam ser responsabilizados de alguma forma.
Muito chateada, a carioca Jéssica da Silva Almeida Palla perdeu sua cadela de 5 anos poucos dias antes do casamento, em que planejava a entrada de Aloha com as alianças. Desde julho, os petiscos viraram rotina na alimentação, porém, no fim de agosto, a cadela começou a passar mal e nenhum atendimento veterinário ajudou. “Ao saber que essas pessoas podem ser condenadas, fiquei um pouco satisfeita, pois ainda não pude viver meu luto em paz”, afirma.
CÓDIGO DO CONSUMIDOR Fora da esfera criminal, o Código de Defesa do Consumidor dá abertura para que os tutores busquem alguma compensação pelo adoecimento e morte de cães que consumiram os petiscos contaminados.
Segundo o especialista Brunno Giancoli, o código pode ser estendido aos pets por meio dos artigos 8º e 12º. “Esses artigos falam sobre a violação do dever de segurança. Quando um produto sofre queda de segurança, a responsabilidade é do fabricante. Os donos desses animais poderão ingressar com uma ação contra a empresa, pleiteando todos indenização por todos os gastos com veterinários, medicações e outros”, explica. Além disso, é possível abrir uma ação por danos morais decorrentes da relação afetiva do tutor com o animal.
Outras sanções podem ser impostas de forma administrativa, por meio de órgãos reguladores. “Existem múltiplas sanções administrativas, desde uma simples advertência até o fechamento do estabelecimento. Essas são as penalidades mais graves e há uma ordem que deve ser observada pela administração pública, conforme a gravidade.” Eventual interdição caberia ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que não se manifestou ontem sobre o caso.