Há cinco décadas, nascia o Conjunto Habitacional Campo Alegre, e, com ele, um sentimento experimentado por pelo menos 556 famílias. Tipicamente chuvoso, dezembro é um mês das águas “desde sempre”, para os moradores do pequeno bairro na Região Norte de Belo Horizonte, que agora têm mais um motivo para se orgulhar das origens: o Campo Alegre ganhou um livro de memórias. Escrito pelo poeta e artista nato Ricardo Aleixo, a obra faz parte da coleção ‘BH. A cidade de cada um’, que preza pela escrita de recordações pessoais e escolhas afetivas de fontes que sejam indispensáveis na contação das histórias.
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BH tem outro oásis do tamanho do Parque Municipal; saiba onde ficaJacques Cousteau: o parque de BH em que o verde engoliu a sujeiraBH terá sábado nublado com possibilidade de pancadas de chuva isoladasEm entrevista ao Estado de Minas, Aleixo começa mais uma sessão de lembranças enquanto caminha pelo bairro. “Foi coincidência lançar o livro em dezembro, perto do aniversário de mudança. Não era uma deliberação. A questão é que eu atrasei para entregar o texto, precisei me mudar para o Rio (de Janeiro) durante quatro meses, para conseguir escrever. O Campo Alegre não me permite uma rotina de escrita, porque é um lugar em que saio na rua e encontro vizinhos que trazem mais memórias”, diz.
Os primeiros rascunhos da história começaram em 2009, mas foi em 2016 que a escrita tomou força. “Durante o golpe que depôs a presidente Dilma é que eu entendi a importância de tratar a história do bairro politicamente”, disse, referindo-se ao impeachment da petista aprovado pelo Congresso Nacional. O local não surgiu por acaso. Política habitacional do período da ditadura militar no Brasil, a construção dos conjuntos se pautava na ideia de casinhas coladas umas nas outras, com ruas estreitas e intenção de abrigar pessoas pobres e miseráveis de Minas Gerais.
Como conta nas páginas do livro, o Campo Alegre foi o segundo conjunto habitacional construído no país, com a promessa de exportação do conceito para o Cone Sul, região do triângulo geográfico formado por Chile, Argentina, Uruguai e o Sul do Brasil. “Isso já é a definição de que estávamos entregues à própria sorte. ‘Aqui tá bom para essa gente que não tinha nada’. Passa a ser um exercício de cidadania, pois a população começou a se juntar com objetivo de tornar esse lugar minimamente habitável.”
Sem água, luz e esgoto direito, os moradores do Campo Alegre começaram as mobilizações para melhorar o local. A mãe de Ricardo, dona Íris, foi uma importante líder na comunidade.
“Se não tem calçamento, ela ia para a porta da prefeitura. A escola funciona precariamente? Vamos para a porta do jornal e reivindicar”, lembra o autor.
“A ideia era dar algo para o povo e lançar numa situação minimamente melhor do que antes. Não apontava para o futuro, mas garantia a adesão das pessoas aos projetos totalitários, dando entendimento de que ter algo é melhor que não ter nada”. Para escrever essa história, Ricardo reconhece que não teria sido possível tornar-se um estudioso se os pais não tivessem adquirido a casa no bairro e, com isso, parar de pagar aluguel, investindo o dinheiro na sua educação e de sua irmã, Fatima.
Estruturalmente falando, o bairro permanece igual. Da escola estadual, passando pela academia, até a igreja, todos os elementos sobreviveram, conta Ricardo. A única mudança foi numa região conhecida por Chácara, onde o mato se transformou no bairro vizinho, o Vila Clóris. Além disso, antes sem nome, as ruas do Campo Alegre eram divididas pelo alfabeto e alguns números. Somente em 1981 o então prefeito de Belo Horizonte, Maurício de Freitas Teixeira, atribuiu nomes aos 42 endereços.
Essência permanece ao lono dos anos
Para Ricardo, a essência do bairro não só é a mesma, mas foi construída pelos próprios moradores. “Penso que nós inventamos a essência, isso não nos foi dado como algo natural. Gosto de repetir essa cifra, ‘556 famílias, entre pobres e miseráveis de Minas Gerais inteira, entregues à própria sorte’. O que vamos fazer? Nos juntar. Isso é estudado, por exemplo, pelo geógrafo Milton Santos, quando ele fala que a escassez material é o motor da vida do pobre. Se eu não tenho e você não tem, vamos para o movimento. Esse movimento cria solidariedade. Se um consegue alimentar os filhos e o outro toma conta das crianças para que este vá trabalhar, ao retornar, ele compartilha o que ganhou. Esta é a história do Campo Alegre e de muitos lugares pobres do mundo inteiro. No final das contas, o bairro se tornou bom a despeito de todas as expectativas. Não foi feito para ser bom, são ruas estreitas e casas coladas. Mas foi exatamente isso que gerou um conhecimento mútuo e vontade de crescer juntos”, define.
A cada quarteirão percorrido com a reportagem, uma pessoa parava Ricardo e o cumprimentava. “Que saudades” e “soube do seu livro do bairro”, dizem. No meio do caminho, parada para mais uma foto. O lugar preferido? “Aqui”, responde Ricardo apontando para o bar ao lado direito da rua. “Além do excelente atendimento, ainda tem cerveja boa”, brinca.
De repente, Deni, garçom e amigo de Ricardo, sai dos fundos do bar com um grande sorriso. “Eu nem acredito que estou te vendo aqui. É muita saudade, só de chegar perto de você, já estou feliz”, diz Maicon, o Deni. “Tem pelo menos 30 anos que eu conheço o Ricardo. Aqui ele sempre come torresmo com limão e a pinguinha do bar. Senta ali no fundo, quietinho, ninguém incomoda”, lembra.
A cena reitera as memórias do escritor. A “essência” estabelecida pelos moradores é o elo da história, que não diz respeito só à criação de um espaço geográfico, mas da ascensão de debates historicamente silenciados, como a luta do movimento negro. A maioria dos primeiros moradores eram, além de pobres, pessoas pretas, que entre outras questões sofridas, também enfrentavam o racismo. Manter a união no bairro foi um ato político.
“Na minha adolescência não falávamos ‘moro no Campo Alegre’. Dizíamos que era no Planalto, porque todos tinham vergonha, era um lugar muito feio. Hoje não. Sempre aparece alguém dizendo que mora aqui. O Campo Alegre recuado, lá do passado, não existe mais. Quando meu trabalho passou a ter reconhecimento fora de Minas, entendi que eu não gostava de BH porque é um local que valoriza CEPs e sobrenomes. Minha estratégia é mostrar que os bairros da periferia não devem nada aos da zona sul em termos de criatividade. Fazer um livro como o “Campo Alegre” é político. Não precisa comparar o bairro com as regiões mais ricas, nós temos tudo aqui”, finaliza o poeta Ricardo Aleixo.
Serviço
.“Campo Alegre”, de Ricardo Aleixo, será lançado neste sábado (10/12), na livraria Outlet do Livro
.Horário: das 11h às 14h
.Endereço: Rua Paraíba, 1.419