Em um estado marcado pelo relevo montanhoso, nada mais natural que a capital planejada que chega aos 125 anos tenha sido batizada com inspiração na geografia. O nome imortalizou o contorno de sua serra mais ilustre, a do Curral. Mas o que quase ninguém sabe é que a região mais alta de Belo Horizonte não fica nesse maciço, mas em outro, que esconde segredos de uma parte da cidade desconhecida da maioria de seus habitantes, onde não apenas as formações rochosas, mas estruturas abandonadas, a vegetação, a fauna e até o clima contrastam com a urbanização e o ritmo frenético da terceira maior capital do Sudeste. Para revelar essas curiosidades, a equipe do Estado de Minas subiu à Serra do Cachimbo e mostra, como parte das comemorações pelo aniversário da cidade, um pouco desse lado oculto.
A região é a que mais chove em Belo Horizonte, ficando muitas vezes encoberta pela nebulosidade. Talvez por isso, pouca gente note a escura formação montanhosa de maior elevação da capital mineira. Por ser fina e contínua, ficou conhecida como Serra do Cachimbo. Montanhas que se alternam por quilômetros, com variações de altitude acima dos 1.300, 1.400 metros, culminando em 1.432m, dentro do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça. Para se ter uma ideia dessa importância, na porção Leste da mesma cadeia, onde está a Serra do Curral, o Pico Belo Horizonte ganhou a fama de ser o ponto mais alto da cidade. O título valeu ao lugar presença até na bandeira municipal, mas sua altitude é de 1.390m.
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As primeiras estruturas a serem avistadas no roteiro são as antenas que permitem a comunicação do IEF-MG, do metrô de BH, da Polícia Rodoviária Federal, de companhias telefônicas e de empresas de comunicação. Essa área é completamente cercada e o acesso, regulado por seguranças. A trilha segue ao largo, por entre ruínas de casas e construções pertencentes a mineradoras que abandonaram a área. Nesse ponto, já se caminha a 1.300 metros de altitude.
A trilha avança morro acima, com trechos de difícil visualização, seja pelo mato alto ou pela falta de vegetação e abundância de terreno pedregoso e duro da escura canga de minério de ferro. O instinto atrai o caminhante para se deslocar rente à cerca das antenas. Há passagens longas e estreitas que podem tirar o fôlego mesmo de quem sofre medo moderado de altura, algumas subindo por pedras e com não mais de meio metro de largura, perfilando um abismo de cerca de 100 metros de altura.
Com a chuva comum em dezembro, esse se torna um trajeto ainda mais perigoso, pois as nuvens carregadas lambem a serra e encobrem a visão em vários trechos. Nesse momento, com a dificuldade de divisar o caminho adiante, resta olhar para baixo para se certificar de que haja chão para se pisar. A umidade deixa solo e pedras molhados e escorregadios, empurrada pelo vento que se choca contra o paredão e empurra nuvens geladas por sobre a trilha. Junto vem um frio capaz de arrepiar a pele ao atravessar mesmo agasalhos reforçados.
Névoa
Vencido o trecho crítico, as trilhas se abrem em estradas e espaços operacionais deixados por mineradoras que operavam por ali. Em meio à névoa densa, aparecem velhas torres de alta-tensão, com cabos partidos dependurados e calhas de alvenaria, algumas assoreadas pela ação da chuva, outras, agora, canteiros de mato e até de pés de goiabas brancas, ainda imaturas neste mês de dezembro.
Ao longe, uma estrutura de concreto lembra uma casa ou escritório, mas chama a atenção por ficar debruçada à beira do abismo, voltada para o Barreiro. Chegando mais perto, percebe-se dois grandes vãos paralelos, como janelas voltadas para o vazio do despenhadeiro.
Essa estrutura intriga muita gente que sobe o Anel Rodoviário no sentido Rio de Janeiro, altura do Bairro Pilar. Era um antigo projeto de transporte de minério por meio de teleférico. Consistia em caçambas presas a duas linhas paralelas de cabos. O minério descia por uma “janela”, enquanto as caçambas vazias chegavam pela outra. Atualmente, esse transporte é feito mais de 100 metros abaixo, por galerias subterrâneas que ligam a Mina da Mutuca ao Barreiro, cortando as entranhas da Serra do Cachimbo.
Visita aos domínios das aves de rapina
As construções que se seguem no início da trilha da Serra do Cachimbo dão lugar a passagens estreitas cercadas de mato alto e molhado, que encharcam as calças, botas e roupas de quem se aventura montanha acima. Desse ponto em diante, as cumeeiras da serra vão se revezando em subidas e descidas em um limiar entre 1.300 e 1.400 metros. O vento segue empurrando as nuvens que voam rasantes nas encostas e lambem a trilha que passa pelo topo. Muito ao longe, permitem enxergar os telhados dos galpões gigantes do Barreiro, no lado de Belo Horizonte, e identificar com dificuldade o Viaduto da Mutuca e a rodovia BR-040/BR-356, no lado novalimense.
Em um dos trechos de maior desnível, de 62 metros, com elevação de 1.340 metros de um cume para 1.406 metros, se chega a um dos marcos mais antigos da Serra do Cachimbo. Trata-se de um cruzeiro de madeira, feitos de dormentes de ferrovia, com pedestal e banco para orações. No assento, há várias inscrições, algumas de 2002, outras mais antigas, de 1970. “O cruzeiro está fora do parque e é muito antigo. Há informações de que foi erguido na década de 1960, quando o terreno pertencia à mineradora britânica Saint John d'El Rey Mining Company, que operou no Brasil, em Minas Gerais, (entre os séculos 19 e 20) e esteve na região até por volta da década de 1930, antes das atuais mineradoras, como MBR e Vale”, conta o gerente do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, Henri Collet.
Adiante, já depois de um portão, no espaço administrado pela Copasa e pelo parque, se encontra o terreno mais elevado em Belo Horizonte na Serra do Cachimbo, com 1.432 metros de altitude. Naquele alto, também se encontram as flores mais altas da formação de campos rupestres, com pequenas pétalas amarelas e vermelhas. No solo, muitos insetos, como centopeias e formigas, e até restos de outros animais, como uma carcaça seca de cobra, provavelmente abandonada por uma ave de rapina, um dos predadores que mais aproveitam daquela altura da serra.
“Os pontos mais altos da Serra do Cachimbo apresentam uma beleza cênica ímpar pelas formações e a flora. Altura que é aproveitada por gaviões e aves de rapina, porque para voar precisam de muito vento. Esses animais estão sempre procurando onde há vento para se sustentar no ar, e essa altitude propicia o planar, que é uma forma de voo com menos gasto de energia. As cobras são presas, mas essas aves também se alimentam de outros animais pequenos e de outros pássaros”, afirma Collet.
Segundo o gerente do parque, o espaço é monitorado 24 horas por dia por meio de câmeras. Uma delas se destina a avaliar as condições da área e outra, térmica, ao menor sinal de focos de calor dispara um alarme para chamar a atenção de brigadistas e bombeiros. “Com isso, o último foco, que veio de fora da unidade, ocorreu há cinco anos. O que nós pedimos sempre aos visitantes é que tragam seus alimentos e bebidas, mas também sacolas de lixo. O parque é um espaço que acolhe a todos, mas é preciso ter consciência e levar o lixo de volta. Temos cada vez mais trilhas para ciclistas, para pessoas a pé e nossos mirantes são muito queridos, pois são uma forma de lazer para habitantes de Belo Horizonte e da região”, afirma Henri Collet, em relação às áreas mais acessíveis da unidade de conservação.
Quanto à Serra do Cachimbo, mais restrita pelos riscos e vulnerabilidades que apresenta, segue sendo uma reserva que abriga aspectos da memória da ocupação humana e exploração econômica de BH, além de pontos vitais para a cidade – seja do ponto de vista do clima, da disponibilidade hídrica, da biodiversidade e até das comunicações – embora distante dos olhos da maioria dos belo-horizontinos.