Jornal Estado de Minas

CENTENÁRIAS

Esta casa ajuda a construir a memória de BH: saiba por que, e onde ela fica

O pé de manacá, a pitangueira e o florido jasmim-manga, entre outras plantas do jardim bem cuidado, são testemunhas da história de uma das residências centenárias de Belo Horizonte. Centenária, por sinal, é a palavra exata, pois o imóvel no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul, completa 100 anos em 2023, e, tanto pelo “aniversário” quanto pela conservação, arquitetura e beleza interior, foi escolhido para abrir a série especial "Centenárias", do Estado de Minas, sobre construções seculares – algumas da década de 1920, outras de um pouco antes – que ajudam a contar a trajetória da capital.





 

“Estar aqui é como mergulhar, diariamente, na história de nossa cidade, que completou 125 anos em 12 de dezembro”, constata a engenheira civil Beatriz Maranhão, locatária, desde 2005, da casa localizada no número 851 da Avenida Getúlio Vargas, na qual promoveu cuidadosa restauração para instalar escritório e loja de produtos de design de móveis de alto padrão.

Logo na entrada, a porta pintada de branco e com grade de ferro artisticamente trabalhada para proteger os vidros convida a conhecer o espaço, que não só preserva a memória de BH como abriga lições sobre sistema construtivo, estilo arquitetônico e uso ao longo do tempo.

 

Projetado pelo arquiteto italiano Octaviano Lapertosa (1889-1944), um dos fundadores da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA/UFMG), o imóvel pintado de cinza claro, pertencente a uma família belo-horizontina e tombado pelo município, faz “menção às conformações plásticas próprias do estilo eclético tardio de influências diversas”, conforme descrito no livro “Casa Nobre – Significado dos modos de morar nas primeiras décadas de Belo Horizonte”.





 

O obra, organizada por Celina Borges Lemos, professora titular da EA/UFMG, e Karla Bilharinho Guerra, socióloga com doutorado em arquitetura e urbanismo, vai ganhar continuidade neste ano com o modernismo. Sobre a moradia da Avenida Getulio Vargas, o estudo das especialistas informa ainda que a composição das fachadas “apresenta traços austeros, com destaque aos guarda-corpos trabalhados em madeira, além das expressivas mãos-francesas que sustentam o beiral do telhado”.

 

Farol da nossa história

Guiada pelas informações técnicas e pelo zelo de Beatriz Maranhão, a equipe do EM começa a exploração dessa peça da história pela parte invisível, o que é bem compreensível para se entender melhor esse universo histórico e cultural. E vale a experiência de quem sabe onde pisa: “Casa antiga traz sempre uma novidade, demanda prevenção e manutenção o tempo todo. Precisamos ficar vigilantes, pois, ao menor vestígio de umidade ou cupins, devemos entrar em ação”, avisa a belo-horizontina conhecedora de cada palmo da casa, que, no fim do século passado, foi endereço de eventos e noites de bingo.

Em um canto, perto da porta de entrada, Beatriz destampa um pedaço de madeira do piso de peroba-rosa e mostra no fundo a terra escura. “Tivemos que fazer isso para monitorar, pois apareceram bolhas na parede, indicando umidade. A casa foi erguida diretamente sobre o terreno natural”, explica.



Questões técnicas à parte, ver, inesperadamente, a terra marrom escura dos primórdios de BH aguça a curiosidade, surpreende e faz brotar uma ligeira emoção. Faz lembrar um farol sobre uma espécie de portal subterrâneo, iluminando outra época.

 

Mãos-francesas: suporte em madeira para os beirais do telhado (foto: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)

O próximo passo é dado na escada de jacarandá: são 19 degraus conduzindo ao pavimento superior da edificação, originalmente com 158 metros quadrados, acrescida devido às necessidades dos antigos moradores. Ao fim da subida, no lado direito, entra-se em uma varanda de onde se avista a capela e parte do Colégio Sagrado Coração de Jesus (na Rua Professor Moraes, fundado em 1911) e a silhueta dos prédios modernos.


Naquele terraço, momentaneamente ensolarado neste período chuvoso, Beatriz aponta um detalhe singular da construção: as mãos-francesas originais, peças de madeira que sustentam o beiral do telhado.

Pioneiros

Quanto mais se caminha pela casa, mais se tem vontade de saber. E muitas respostas estão no livro “Casa Nobre”: no andar superior, há quatro quartos, “e, de acordo com o projeto, os dois maiores, situados na parte frontal da edificação, contam com 15 metros quadrados cada um”.



Os demais apresentam dimensões inferiores e estão dispostos atrás do vestíbulo responsável pelo acesso à área íntima. “A área social compreende uma sala de jantar, onde é estabelecido o acesso principal, e uma sala de estar, ambas localizadas no andar térreo”, prossegue o estudo.

Escada em jacarandá, com 19 degraus, ligando os dois pavimentos (foto: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)

Muitas vezes, Beatriz se pegou imaginando como viveria a família pioneira, especialmente ao contemplar detalhes do interior da residência, como uma abertura em arco entre dois quartos. Outras características originais a conduzem do presente ao passado, ainda mais quando vê os ladrilhos hidráulicos, as varandas frontal e lateral e o gradil da frente, além do forro e do piso de peroba-rosa, madeira atualmente em extinção.

A engenheira civil Beatriz Maranhão, locatária, desde 2005, da casa localizada no número 851 da Avenida Getúlio Vargas (foto: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)

Nos fundos, há uma construção menor, específica para serviços, e, ao lado, um caramanchão também de 1923, para convivência familiar. O paisagismo joga mais luz e cores sobre a história do imóvel centenário. “No jardim, mantemos as plantas originais, como a pitangueira, a iúca, o manacá e o jasmim-manga”, orgulha-se Beatriz.

Testemunha de uma época

 

“É um milagre, uma honra para Belo Horizonte, ter, hoje, uma casa como essa, pois pertence a uma geração de imóveis demolidos entre as décadas de 1920 e 1940. Trata-se de um documento de uma época, da qual muitas desapareceram”, explica a professora Celina Borges Lemos, titular da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, sobre a construção localizada na Avenida Getúlio Vargas, 851, no Bairro Funcionários.





Ladrilhos hidráulicos originais, presentes na entrada e nas varandas (foto: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)

Segundo Celina Borges, ocorreu uma renovação do setor construtivo de BH nos anos 1920, deixando prejudicada, com efeito, as antigas edificações. Houve, nesse contexto, a chegada do concreto armado anunciando o modernismo, a versatilidade nas edificações, com mais andares e telhados diferenciados, entre outros aspectos.

O momento coincidiu ainda com a fixação, na capital mineira, de engenheiros arquitetos de outros estados, como do Rio de Janeiro, e do exterior, estabelecendo um diálogo entre esses profissionais e os clientes para a concepção das moradias.

 

Nos projetos em voga, os imóveis começam a ter piscinas, áreas de lazer, salas de estar e valorização de áreas que as tornavam mais “hospitaleiras” e de convívio. “Muitas dessas casas, se não foram demolidas, passaram a abrigar instituições públicas, incluindo escolas, museus e até mesmo o Palácio da Liberdade, onde moraram os governadores (na época, chamados de presidentes) de Minas”, observa a professora.





 

Visita do rei da Bélgica 

Em 1920, quando o rei da Bélgica, Alberto I, acompanhado da rainha Elisabeth, visitava oficialmente Belo Horizonte, deu-se a remodelação e embelezamento artístico de espaços públicos, com destaque para as praças da Liberdade e Rui Barbosa (da Estação), ambas na Região Centro-Sul.

Entre as novidades, havia o mobiliário art nouveau, com detalhes metálicos sinuosos e desenhos artísticos, assim como as fontes luminosas. “Aquele momento pode ser marcado pelo surgimento dos primeiros clubes, estabelecimentos de comércio de luxo e os sempre lembrados palácios do cinema”, conta a professora, em um passeio pela construção da identidade de Belo Horizonte.