O pé de manacá, a pitangueira e o florido jasmim-manga, entre outras plantas do jardim bem cuidado, são testemunhas da história de uma das residências centenárias de Belo Horizonte. Centenária, por sinal, é a palavra exata, pois o imóvel no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul, completa 100 anos em 2023, e, tanto pelo “aniversário” quanto pela conservação, arquitetura e beleza interior, foi escolhido para abrir a série especial "Centenárias", do Estado de Minas, sobre construções seculares – algumas da década de 1920, outras de um pouco antes – que ajudam a contar a trajetória da capital.
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Projetado pelo arquiteto italiano Octaviano Lapertosa (1889-1944), um dos fundadores da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA/UFMG), o imóvel pintado de cinza claro, pertencente a uma família belo-horizontina e tombado pelo município, faz “menção às conformações plásticas próprias do estilo eclético tardio de influências diversas”, conforme descrito no livro “Casa Nobre – Significado dos modos de morar nas primeiras décadas de Belo Horizonte”.
O obra, organizada por Celina Borges Lemos, professora titular da EA/UFMG, e Karla Bilharinho Guerra, socióloga com doutorado em arquitetura e urbanismo, vai ganhar continuidade neste ano com o modernismo. Sobre a moradia da Avenida Getulio Vargas, o estudo das especialistas informa ainda que a composição das fachadas “apresenta traços austeros, com destaque aos guarda-corpos trabalhados em madeira, além das expressivas mãos-francesas que sustentam o beiral do telhado”.
Farol da nossa história
Guiada pelas informações técnicas e pelo zelo de Beatriz Maranhão, a equipe do EM começa a exploração dessa peça da história pela parte invisível, o que é bem compreensível para se entender melhor esse universo histórico e cultural. E vale a experiência de quem sabe onde pisa: “Casa antiga traz sempre uma novidade, demanda prevenção e manutenção o tempo todo. Precisamos ficar vigilantes, pois, ao menor vestígio de umidade ou cupins, devemos entrar em ação”, avisa a belo-horizontina conhecedora de cada palmo da casa, que, no fim do século passado, foi endereço de eventos e noites de bingo.Em um canto, perto da porta de entrada, Beatriz destampa um pedaço de madeira do piso de peroba-rosa e mostra no fundo a terra escura. “Tivemos que fazer isso para monitorar, pois apareceram bolhas na parede, indicando umidade. A casa foi erguida diretamente sobre o terreno natural”, explica.
Questões técnicas à parte, ver, inesperadamente, a terra marrom escura dos primórdios de BH aguça a curiosidade, surpreende e faz brotar uma ligeira emoção. Faz lembrar um farol sobre uma espécie de portal subterrâneo, iluminando outra época.
O próximo passo é dado na escada de jacarandá: são 19 degraus conduzindo ao pavimento superior da edificação, originalmente com 158 metros quadrados, acrescida devido às necessidades dos antigos moradores. Ao fim da subida, no lado direito, entra-se em uma varanda de onde se avista a capela e parte do Colégio Sagrado Coração de Jesus (na Rua Professor Moraes, fundado em 1911) e a silhueta dos prédios modernos.
Naquele terraço, momentaneamente ensolarado neste período chuvoso, Beatriz aponta um detalhe singular da construção: as mãos-francesas originais, peças de madeira que sustentam o beiral do telhado.
Pioneiros
Quanto mais se caminha pela casa, mais se tem vontade de saber. E muitas respostas estão no livro “Casa Nobre”: no andar superior, há quatro quartos, “e, de acordo com o projeto, os dois maiores, situados na parte frontal da edificação, contam com 15 metros quadrados cada um”.Os demais apresentam dimensões inferiores e estão dispostos atrás do vestíbulo responsável pelo acesso à área íntima. “A área social compreende uma sala de jantar, onde é estabelecido o acesso principal, e uma sala de estar, ambas localizadas no andar térreo”, prossegue o estudo.
Muitas vezes, Beatriz se pegou imaginando como viveria a família pioneira, especialmente ao contemplar detalhes do interior da residência, como uma abertura em arco entre dois quartos. Outras características originais a conduzem do presente ao passado, ainda mais quando vê os ladrilhos hidráulicos, as varandas frontal e lateral e o gradil da frente, além do forro e do piso de peroba-rosa, madeira atualmente em extinção.
Nos fundos, há uma construção menor, específica para serviços, e, ao lado, um caramanchão também de 1923, para convivência familiar. O paisagismo joga mais luz e cores sobre a história do imóvel centenário. “No jardim, mantemos as plantas originais, como a pitangueira, a iúca, o manacá e o jasmim-manga”, orgulha-se Beatriz.
Testemunha de uma época
“É um milagre, uma honra para Belo Horizonte, ter, hoje, uma casa como essa, pois pertence a uma geração de imóveis demolidos entre as décadas de 1920 e 1940. Trata-se de um documento de uma época, da qual muitas desapareceram”, explica a professora Celina Borges Lemos, titular da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, sobre a construção localizada na Avenida Getúlio Vargas, 851, no Bairro Funcionários.
Segundo Celina Borges, ocorreu uma renovação do setor construtivo de BH nos anos 1920, deixando prejudicada, com efeito, as antigas edificações. Houve, nesse contexto, a chegada do concreto armado anunciando o modernismo, a versatilidade nas edificações, com mais andares e telhados diferenciados, entre outros aspectos.
O momento coincidiu ainda com a fixação, na capital mineira, de engenheiros arquitetos de outros estados, como do Rio de Janeiro, e do exterior, estabelecendo um diálogo entre esses profissionais e os clientes para a concepção das moradias.
Nos projetos em voga, os imóveis começam a ter piscinas, áreas de lazer, salas de estar e valorização de áreas que as tornavam mais “hospitaleiras” e de convívio. “Muitas dessas casas, se não foram demolidas, passaram a abrigar instituições públicas, incluindo escolas, museus e até mesmo o Palácio da Liberdade, onde moraram os governadores (na época, chamados de presidentes) de Minas”, observa a professora.
Visita do rei da Bélgica
Em 1920, quando o rei da Bélgica, Alberto I, acompanhado da rainha Elisabeth, visitava oficialmente Belo Horizonte, deu-se a remodelação e embelezamento artístico de espaços públicos, com destaque para as praças da Liberdade e Rui Barbosa (da Estação), ambas na Região Centro-Sul.
Entre as novidades, havia o mobiliário art nouveau, com detalhes metálicos sinuosos e desenhos artísticos, assim como as fontes luminosas. “Aquele momento pode ser marcado pelo surgimento dos primeiros clubes, estabelecimentos de comércio de luxo e os sempre lembrados palácios do cinema”, conta a professora, em um passeio pela construção da identidade de Belo Horizonte.