Aprovado em 2020, o marco legal do saneamento básico e as privatizações do setor voltaram a ser discutidas sob o governo Lula, colocando em evidência as iniciativas neste campo ao longo da história do país.
Com base nas informações e análises de oito especialistas — alguns da academia, outros da iniciativa privada —, a Folha conta o caso de Belo Horizonte, uma cidade planejada, acabou desprezando a área de água e esgotos.
Belo Horizonte é um caso de desatenção histórica em relação ao abastecimento de água e, principalmente, à coleta e ao tratamento de esgoto. Sendo uma cidade planejada, as deficiências nessas áreas certamente poderiam ter sido evitadas.
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Em fevereiro de 1894, começaram as obras, sob o comando da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC). Entre os envolvidos na execução do projeto, chamou a atenção a opinião dissonante de Saturnino de Brito, que mais tarde se consagraria como o patrono da engenharia sanitária brasileira.
"Saturnino discordava da opção pelo traçado de linhas retas, que ignorava os leitos dos rios. Para ele, a cidade deveria ser concebida justamente a partir dos seus rios", lembra Denise Tedeschi, autora do livro "Águas Urbanas - As Formas de Apropriação das Águas nas Minas".
Prevaleceu, contudo, a concepção de Aarão Reis, chefe do CCNC, para quem as ruas deveriam se sobrepor aos cursos d'água da região, como o ribeirão Arrudas e seus afluentes. Esse ponto de vista implicaria retificação de leitos num primeiro momento e, ao longo das décadas seguintes, a canalização dos rios.
As enchentes que se tornaram parte do cotidiano da capital mineira demonstram que Brito tinha razão.
Havia ainda outros entraves nessa fase de construção. Algumas tubulações destinadas ao escoamento do esgoto vinham da Inglaterra e demoravam até três meses para chegar a Belo Horizonte. Como a meta era erguer a capital em quatro anos, os mineiros assistiram a uma corrida contra o tempo, que teve, entre outras consequências, a suspensão de obras em andamento.
Fornecimento de água era prioridade
Correria e improviso cobraram seu preço. Quando inaugurada, em 1897, a cidade não tinha grandes galerias de esgoto, apenas encanamentos menores, de custo mais baixo, segundo Tedeschi.
Nesse período inicial, Belo Horizonte priorizou o fornecimento de água ao tratamento de esgoto, como, aliás, tem sido comum nas decisões no Brasil ao longo da história.
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São dois os pontos principais que explicam esse caminho, dizem especialistas. Além de o custo do abastecimento ser, em geral, mais baixo, as pessoas se sentem mais lesadas quando falta água ou quando ela chega à casa com qualidade ruim.
"Quando não há água, a família se sente prejudicada. Sem coleta e tratamento de esgoto, o prejuízo é da coletividade, não é da natureza individual", comenta o engenheiro civil Jerson Kelman, doutor em hidrologia e recursos hídricos.
No entanto, mesmo o abastecimento de água ficou aquém das expectativas dos moradores da nova capital mineira nesses primeiros anos. Apenas as áreas onde viviam altos funcionários públicos, como os desembargadores, tinham água encanada.
Deu-se, então, o que Tedeschi chama de "segregação hídrica". O novo sistema de águas não chegava, por exemplo, aos bairros onde viviam os pedreiros que tinham construído Belo Horizonte, ainda dependentes dos chafarizes.
Os rios que ainda não tinham sido canalizados viraram lixo urbano, conta a historiadora, criando uma "situação terrível para uma capital que se prometia salubre". O descaso de políticos e engenheiros com o saneamento resultou em um fardo para Belo Horizonte ao longo do século 20 e ainda nestes anos mais recentes.