Jornal Estado de Minas

FRUTO DE OURO

Pequi: por que a árvore que servia para carvão virou xodó de fazendeiros



Japonvar e Lontra - Desde o  início de dezembro, a vida melhorou em diversos pequenos municípios do Norte de Minas graças à chegada da colheita do pequi, que garante alimento no prato e dinheiro do bolso para milhares de famílias de comunidades historicamente castigadas pela seca. A safra do fruto símbolo do cerrado termina este mês, mas a renda sagrada que brota na frutificação da planta nativa deve circular por mais tempo, e ainda com mais força em 2023 do que em anos anteriores – resultado de uma nova cultura em torno da espécie, que envolve financiamento, tecnologia e conscientização para impulsionar uma produção até aqui basicamente provida pela natureza.





Nos últimos anos, a cadeia produtiva do pequi expandiu de tal forma que o fruto, até então, conhecido como “ouro do cerrado” por seu valor nutricional, agora também é visto como precioso por seu rendimento financeiro, que faz circular mais dinheiro tanto no campo quanto na área urbana de cidades produtoras.
Embora, historicamente, associado à cultura extrativista, o pequi já é comercializado como qualquer outro produto da agricultura tradicional. Se antes fazendeiros derrubavam pequizeiros para fazer carvão ou formar pastagens, hoje, produtores preservam a árvore para ter renda com a venda do fruto. E já existem agricultores que estão plantando pequi, fomentando também a produção e a venda de mudas da espécie. Junto de pesquisadores e técnicos, eles também travam uma luta contra a broca do pequi, praga que vem dizimando espécimes cerrado afora.

TEMPERO A MAIS

A mudança de cultura e a multiplicação da renda do pequizeiro se devem à mudança no aproveitamento do fruto no mercado consumidor. A matéria-prima teve valor agregado por inovações tecnológicas que viabilizaram seu beneficiamento e a venda da polpa congelada.





Foi o primeiro passo para que surgissem vários derivados que vão de farinha, óleo e até cerveja de pequi. Assim, o comércio movimentado pela cadeia produtiva do fruto se mantém o ano inteiro. Outras iniciativas também incrementam o consumo do produto, como a inclusão de frutos do cerrado na merenda escolar, medida adotada no mês passado no Distrito Federal.



 
Na safra que chega ao fim neste mês, além do crescimento do beneficiamento foi verificado o avanço da comercialização do fruto “in natura”, com a saída de centenas de caminhões carregados de Japonvar e de outros pequenos municípios norte-mineiros para Belo Horizonte e outras regiões de Minas. As cargas também são transportadas em direção aos estados de Goiás, Bahia e Mato Grosso.
 
 
Wanderson Mendes trabalha na cata do pequi: garantia de renda (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.a press)
 
 
OUTRO OLHAR PARA A PLANTA

O novo status do fruto do cerrado, de aroma e sabor inconfundíveis, mudou o olhar dos produtores rurais sobre o pequizeiro. Que o diga o fazendeiro e coronel reformado da Polícia Militar Mário Veríssimo Pinto Souza. Na Fazenda Sambaíba, de 106,48 hectares, no município de Japonvar, no Norte de Minas, existem pelos seus cálculos cerca de 2 mil pés da árvore. Um pequizal que ele quer aumentar ainda mais.




 
Para isso, Veríssimo plantou 100 mudas em uma área da propriedade que estava devastada e foi recuperada. “Estou fazendo um convênio com a natureza”, disse o produtor em vídeo, ao plantar as mudas, em dezembro de 2021. Boa parte delas não sobreviveram, mas ele anuncia que vai continuar o “repovoamento” e que pretende chegar a 500 pequizeiros plantados.
 
Para o produtor, mesmo que a grande geração de emprego e o ganho financeiro do fruto símbolo do cerrado se concentrem na época de safra, o pequizeiro já pode ser considerado uma fonte de renda do agronegócio. Ele lembra ainda que a árvore não pode ser cortada, por ser protegida por lei, o que ajuda a população mais humilde, auxiliando no sustento de pequenos agricultores. E revela que outros produtores da região também aderiram ao plantio da espécie nativa.
 
Além do “convênio com a natureza”, Mário Veríssimo trabalha em parceria com os moradores que catam e vendem os frutos que caem dos pés de pequi da Fazenda Sambaíba. Um desses parceiros é Wanderson Mendes de Jesus, de 33 anos. “Se não fosse o pequi, a gente não teria renda nenhuma”, diz ele.




 
Wanderson conta que a atividade como catador de pequi durante a safra, de dezembro a fevereiro, garante dinheiro para a comprar algum bem de valor e fazer reserva para os demais meses do ano, quando leva a vida como lavrador, remunerado por dia trabalhado em fazendas da região. “Nem sempre a gente encontra serviço”, lamenta.
 
Gustavo Ferreira segue os passos do pai no comércio do fruto em casca (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.a press)
 
Em Montes Claros, José Reinaldo Noronha diz que safra é o momento de lucrar (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.a press)
 
Uma espécie que sustenta gerações
 
A partir de dezembro, a vida muda no pequeno município de Japonvar. Fruto de mais dinheiro circulando e do aumento de vendas no comércio local, incrementado pela chegada da safra do pequi, que envolve pessoas de todas as idades – de “mamando a caducando”, como se diz no linguajar do sertão. Segundo estudo da Empresa de Extensão Rural e Assistência Técnica de Minas Gerais (Emater-MG), 63% da população local, de 8,3 mil habitantes, cata o fruto no mato ou o revende durante a safra. Um negócio que passa de geração para geração no lugar.
 
O comerciante Joaquim Antunes, de 63 anos, se orgulha de ter sido uma das primeiras pessoas da região a “exportar” o pequi produzido em Japonvar e municípios vizinhos para outras regiões de Minas e outros estados. “Comecei a vender pequi aos 16 anos”, afirma ele, que se tornou um dos maiores comerciantes do produto de Minas Gerais – sua estimativa é atingir a venda de 140 mil caixas do fruto símbolo do cerrado na safra 2022/2023.




 
Além do produto in natura, a empresa de Joaquim decidiu investir em tecnologia para aumentar as vendas e elevar o faturamento. Na safra deste ano, empacotou 25 mil quilos de pequi para congelamento – condição que permite a conservação e comércio do fruto nos demais meses do ano.

Hoje, Joaquim conta com a ajuda do filho, Gustavo Mendes Ferreira, de 27, que aos poucos vai assumindo lugar no comando do negócio da família, que compra o fruto de catadores da região e o envia, ainda em casca, transportado em caminhões e carretas, aos centros consumidores – além de Minas, Bahia, Goiás e Mato Grosso.
 
Gustavo afirma ter orgulho de seguir os passos do pai no comércio de pequi em Japonvar, onde a cada safra a empresa da sua família, direta e indiretamente, gera emprego e renda para mais de 200 pessoas, entre catadores, carregadores, motoristas e vendedores. “Aqui, na época da safra, o pessoal compra moto, lote e reforma a casa com dinheiro do pequi”, diz o jovem comerciante. “Muita gente compra a mobília nova para a casa e feira para outros meses do ano”, completa o pai.





Para Gustavo, no futuro “o pequi será um produto de luxo”, devido ao aumento do consumo e redução da oferta, por causa da mortandade de árvores da espécie, provocada pela broca do pequizeiro. “Antigamente, como a roçada dos pastos era feita com foice, o pessoal preservava os novos pés de pequi. Hoje, as ‘mangas’ (pastos) são limpas com roçadeiras, que cortam tudo que encontram pela frente”, observa.

BENEFICIAMENTO

Outro empresário do ramo em Japonvar é Fernando Lima. Além de vender o produto in natura, ele conta com uma pequena agroindústria que faz o beneficiamento, comercializando o produto  congelado, a polpa e o óleo. A unidade gera 40 empregos diretos e indiretos.

“O consumo cresceu muito nos últimos anos. Antes, o pequi era considerado comida de pobre. Hoje, tem mais valor e é vendido nos grandes centros como qualquer outro produto da agricultura”, afirma Lima, que também aposta na maior valorização do fruto nos próximos anos, diante do aumento do consumo.




 
A “domesticação” do pequizeiro 
 
O pequi gera renda no campo, mas ainda não se pode considerar o fruto um produto agrícola tradicional, com plantio, manejo e adubação, como já ocorreu com outras espécies nativas do Brasil, como o açaí, a seringueira e o cacau. Mas há estudos que visam à “domesticação” do pequizeiro. A afirmação é da bióloga e pesquisadora Sarah Alves de Melo Teixeira, assessora executiva do Núcleo do Pequi e Outros Frutos do Cerrado, que reúne associações e cooperativas de agroextrativistas de diversos municípios do Norte de Minas.
 
“As pesquisas de domesticação do pequizeiro têm aproximadamente 30 anos, mas é uma espécie bastante sensível e muitas mudas acabam morrendo quando transplantadas em campo”, afirma Sarah. Segundo ela, os principais estudos são feitos por pesquisador do câmpus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Montes Claros, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Cerrados e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Goiás (Emater-GO).
 
Sarah Melo lembra que, no ano passado, a Embrapa Cerrados e a Emater-GO disponibilizaram mudas de variedades de pequizeiro para plantio. “Mas só saberemos da viabilidade comercial depois de seis anos, quando essas variedades plantadas começarem a frutificar”, pontua.




 
“Mesmo sendo uma espécie ainda ligada ao extrativismo, podemos afirmar que o pequi é um importante alimento, com grande potencial econômico e nutricional, cujas estatísticas de produção vêm crescendo a cada ano. Não porque estão fazendo plantio comercial da espécie, mas por causa da organização de cadeia produtiva, que a cada safra vem ficando mais organizada em Minas Gerais. Mas muito ainda precisa ser feito para retirar essa espécie da invisibilidade produtiva”, comenta a assessora executiva do Núcleo do Pequi.
 
Ela salienta que grande parte da organização da cadeia produtiva está relacionada a políticas públicas de proteção e de valorização do pequi existentes em Minas Gerais. Iniciativas que têm estimulado agricultores familiares a se organizarem para aumentar o volume de produção e garantir as boas práticas de fabricação dos derivados do fruto.
 
A bióloga e pesquisadora ressalta que tem crescido a cada ano o número de produtores rurais interessados em plantio do pequi. “Isso é muito positivo, principalmente se seu manejo ocorrer em formato agroflorestal ou em mecanismos agrocerratenses (relativo ao povo do cerrado).” Por outro lado, alerta: “O que não é interessante é pensar em monocultura de pequizeiro, já que a espécie pode sofrer perda de diversidade e ser atacada por diversas pragas, o que pode trazer prejuízos pro agricultor”. 





“PARA MIM, PEQUI É COMO UMA PEPITA”

O pequi também gera renda para moradores de outros municípios mineiros, como Lontra, de 9,8 mil habitantes, a 12 quilômetros de Japonvar. “Para mim, o pequi é como uma pepita de ouro. É dele que tiro o sustento da minha casa”, declara a agricultora Maria Valdete da Silva Nize, de 64, líder comunitária da comunidade de Vila União. Ela beneficia o fruto e produz polpa, castanha e óleo, além da conserva. Os derivados são vendidos durante todo o ano.
 
Maria Valdete conta que, para manter e ampliar a atividade, recorre ao programa de crédito Crediamigo, do Banco do Nordeste. Recebeu o último financiamento, no valor de R$ 3 mil, em outubro passado. “Tem grande importância, porque ajuda a gerar emprego e renda. Com os produtos que fazemos com o pequi, a gente multiplica o dinheiro”, assegura.

O “milagre” da multiplicação da renda com a safra do fruto símbolo do cerrado se repete em Montes Claros, cidade-polo do Norte de Minas. “Trabalho com a venda de frutas o ano inteiro, mas é quando chega a safra do pequi que a gente ganha dinheiro mesmo. A lucratividade é muito boa”, assegura José Reinaldo Noronha, feirante no Mercado Municipal de Montes Claros. Reinaldo recorre ao mesmo programa de crédito do BNB, tendo feito o último empréstimo, no valor de R$ 8 mil, há cinco meses.