Uma BH em busca de ampliar horizontes, fortalecer a cena urbana, valorizar seu potencial. Um passo decisivo nesse sentido já pode ser observado a cada domingo, quando a Rua Sapucaí, no Bairro Floresta, de onde se avista grande parte da Região Centro-Sul, fica fechada ao trânsito de veículos. Ponto charmoso de bares, restaurantes e lazer da capital, a via pública ganhou espaço suficiente para diversão das famílias, caminhadas, papo com os amigos... E virou também ponto de partida para um projeto bem maior.
Iniciativa da Prefeitura de Belo Horizonte, o fechamento da Sapucaí, território de prédios históricos, integra o pacote de intervenções Centro de Todo Mundo, que pretende, além de deixar a região mais bonita, arborizada e acessível, melhorar opções de mobilidade, lazer, cultura, desenvolvimento e segurança. “BH já perdeu muito, não pode continuar desse jeito. Há muitas urgências”, acredita o morador Edison Faria, de 78 anos, contador, que garante conhecer cada palmo da capital e sugere outras ações, a exemplo da requalificação do entorno da rodoviária.
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Paisagem obstruída na Afonso Pena
O contador Edison Faria, de 78 anos, se orgulha de conhecer o Centro de Belo Horizonte como a palma da mão. Tanto que, na maior intimidade, indica prédios ícones da região, muitos nos quais trabalhou ao longo das últimas seis décadas. “Ali está o Acaiaca; do outro lado da Avenida Afonso Pena, tem um prédio bem antigo, e aqui temos o Sulacap (Edifício Novo Sul América). Neste, infelizmente, não trabalhei, pois, na época, a empresa achou o preço das salas muito alto”, diz o morador do Bairro Fernão Dias, na Região Nordeste de BH.
Na tarde de quinta-feira, na Avenida Afonso Pena, enquanto esperava o transporte na frente do Sulacap para voltar para casa, Edison se mostrava satisfeito com o anúncio da prefeitura de que, entre outras intervenções no Centro, pretende demolir um acréscimo feito no imóvel na década de 1970 – na verdade, um “puxadinho” execrado pelos arquitetos e considerado um corpo estranho, que nasceu à revelia das autoridades.
“A cidade tem muitas urgências, entre elas a necessidade de requalificação do entorno da rodoviária (veja quadro com sugestões), hoje uma área bem confusa. Já acabaram com construções importantes em BH, perdemos muitas referências. Nesse projeto de agora, trata-se de uma obra bem-vinda, pois recupera o patrimônio original”, diz o contador. Há 21 anos, reportagem do Estado de Minas chamava a atenção para a perda de identidade do Centro de BH, destacando o anexo comercial do Sulacap, considerado um dos “horrores” da região.
No corredor formado pelas duas torres do Sulacap, e sob o acréscimo onde funcionou um curso pré-vestibular, há fotos antigas do edifício. No registro em preto e branco de meados do século passado, vê-se perfeitamente a integração do prédio de 1946 – em estilo art déco, projetado pelo arquiteto Roberto Capello – com o Viaduto Santa Tereza. “Comecei a trabalhar no Centro em 1963. Essas imagens ficam na memória”, afirma o contador Edison que, pela simpatia e conhecimento, poderia unir a contabilidade à contação de histórias.
O prefeito Fuad Noman (PSD) está firme no propósito de executar a intervenção no Edifício Sulacap. Segundo já disse em reunião, a proposta significa “a concretização de um velho sonho de muitos belo-horizontinos”. O decreto de desapropriação para posterior demolição foi publicado na última sexta-feira (10/03), no Diário Oficial do Município (DOM), destacando que o projeto “destina-se à valorização do patrimônio histórico e cultural e restituição da Praça da Independência, com restauro dos jardins, na Avenida Afonso Pena entre as ruas da Bahia e dos Tamoios”. Prazos para a obra serão definidos após a conclusão do processo de desapropriação.
“Spoiler”
Então, um pouco da história, conforme os documentos da PBH, e um spoiler do que moradores e visitantes ainda poderão ver. Construído no lugar do antigo prédio dos Correios, o Edifício Sulacap reunia duas torres distribuídas simetricamente em relação ao terreno, mantendo entre si uma praça para permitir o fluxo de pedestres entre o Viaduto Santa Tereza – por meio de uma escadaria – e Avenida Afonso Pena.
Essa área não edificada, situada no plano da avenida, projetava-se no horizonte por meio de um vão livre que permitia o perfeito enquadramento da Avenida Assis Chateaubriand, situada aos fundos, em plano inferior. Mas a construção do anexo comercial – o tal “puxadinho” – desfigurou completamente o projeto original. Além de ocupar o que antes era um espaço público, obstruiu a visada que se tinha a partir da Avenida Afonso Pena.
Aviso prévio
Segundo Sérgio Gontijo, diretor da Administradora Metrópole, responsável por alugar três das cinco lojas do anexo do Edifício Sulacap, a PBH sinalizou com o interesse de intervir no local desde o início deste ano: “Recebemos a notificação da prefeitura e o decreto oficializou a desapropriação. Agora, vamos trabalhar para viabilizar isso de uma forma tranquila”.
Os valores de indenização ainda não foram negociados, mas a conversa está próxima. “Como é uma desapropriação, não há como resistir. Agora temos que trabalhar em cima das ofertas da prefeitura e isso deve acontecer dentro de pouco tempo”, prevê o executivo.
Protestos
A iniciativa da Prefeitura de Belo Horizonte para recuperar o projeto original do Edifício Sulacap encontra boa receptividade no Instituto dos Arquitetos do Brasil seção Minas Gerais (IAB-MG), entidade que se mostra disposta a colaborar nessa e outras intervenções na capital, afirma a diretora de Cidades, Ana Maria Schmidt.
Experiente em projetos e planos urbanos, um deles participando como coordenadora, a arquiteta e urbanista explica que, na época da construção do anexo no Sulacap, houve protestos, mas a obra prosseguiu. “A intervenção causou indignação, pois configurava descaracterização do cerne de um projeto que ‘conversava’ com a cidade, gerando espaços de convívio e mirante.”
Experiente em projetos e planos urbanos, um deles participando como coordenadora, a arquiteta e urbanista explica que, na época da construção do anexo no Sulacap, houve protestos, mas a obra prosseguiu. “A intervenção causou indignação, pois configurava descaracterização do cerne de um projeto que ‘conversava’ com a cidade, gerando espaços de convívio e mirante.”
Cidadão precisa ter prioridade
Em qualquer tempo, a requalificação, organização e aproveitamento dos espaços urbanos devem contemplar, em primeiro lugar, a população, ressalta Ana Schmidt do IAB-MG. “A vida vem sempre em primeiro lugar. Assim, não adianta fazer intervenções se não houver gente para morar, circular, ir ao comércio, desfrutar do lazer, enfim, gerar demandas e proporcionar vida e alma na cidade, respeitando o Centro Histórico. Ações para melhorar a região central devem ter sempre esse objetivo”, destaca.
Segundo a PBH, o programa Centro de Todo Mundo, dentro dessa perspectiva, prevê aumento das oportunidades de moradia, trabalho e lazer na Região Central. Na avaliação de Ana Schmidt, as propostas podem atrair pessoas com faixas de renda diferenciadas, mas, antes de tudo, torna-se necessário não ignorar a população em situação de rua, que saiu de suas moradias por vários motivos e pode ser vista em todos os cantos da cidade, ou cair no risco da “gentrificação”.
Transformação social muito comum em grandes cidades do mundo, a gentrificação consiste em apropriação de áreas populares pela população de classe média-alta, resultando na expulsão dos antigos moradores e elevação dos aluguéis. “Temos muitos imóveis ociosos, desde escritórios a residências, fruto ainda da saída de moradores e principalmente de muitas atividades que, a partir da década de 1970, migraram para outras áreas – como ocorreu ao longo do tempo também com as do governo do estado e bancos, que se reestruturam com menos funcionários”, constata Ana Schmidt.
Ela avalia que muitos imóveis públicos e hotéis que fecharam as portas podem ser transformados em moradias. O momento, portanto, mostra-se oportuno para a mudança. “Com gente morando, com o comércio funcionando, serviços, vida cultural e boemia, há até mais segurança para moradores e visitantes do Centro.”
Novos projetos
Na Avenida Afonso Pena, diante do Parque Municipal, também alvo de intervenções da PBH, a diretora de Cidades do IAB-MG volta no tempo para destacar o projeto BH Centro, alvo de um concurso nacional, em 1989, para uma série de obras de restauração.
As intervenções iam da recuperação das calçadas de pedras portuguesas, remanescentes da época da construção de BH (inaugurada em 12/12/ 1897) a projetos viários, elaborados em 1990 e 1991, passando pela despoluição de edifícios históricos, exposição de fachadas de várias épocas e foco na programação visual, sinalização informativa para moradores e visitantes, inventário da arborização, paisagismo, recuperação da Praça Sete e intervenções nas avenidas Amazonas e no Parque Municipal.
Felizmente, complementa, a administração seguinte deu continuidade ao projeto, com o restauro do Viaduto Santa Tereza, “uma escultura poética na paisagem”, da Praça Raul Soares e da Praça da Estação, palco de grandes manifestações, e muitas outras.
“Ganhamos o concurso. Coordenei uma equipe de 10 arquitetos e profissionais de engenharia, sociologia, design e de arte, que a cidade requer. Era um grupo multidisciplinar. Mas algumas propostas foram realizadas, outras, não”, conta Ana Schmidt, certa de que BH ainda precisa de muitas intervenções essenciais ao seu bom funcionamento.
A curto prazo, a arquiteta acredita ser preciso repensar o entorno da rodoviária, considerando a readequação ao uso como terminal urbano e espaços multiusos. “Em vésperas de feriados, o local fica intransitável, com desconforto e perda de tempo para motoristas e viajantes. Devemos pensar, sempre, no conforto das pessoas, pois ali tem conexão com o metrô. É para fluir, e não para criar gargalos”, destaca.
Outro via essencial, a Avenida Afonso Pena, demanda um tratamento diferenciado, avalia a especialista. “A longo prazo, as autoridades devem elaborar projetos para desafogar o trânsito, deixar mais espaço para as pessoas caminharem, os ciclistas. Gradativamente, os ônibus devem ser retirados, mas com critério.”