Quatro gerações de mulheres mantêm vivo um pedaço da história de Belo Horizonte, fortalecendo também as memórias familiares, e, quase com devoção, cuidando de um casarão do século 19 remanescente dos tempos de Curral del-Rei, arraial sobre o qual foi construída a capital. Localizado no Bairro Letícia, na Região de Venda Nova, o imóvel ilumina as lembranças de Gracina Pereira do Vale, de 88 anos, solteira, nascida e criada na edificação coberta pelas telhas que hoje carregam a cor do tempo, de piso atabuado típico de fazendas do interior mineiro e imerso numa atmosfera convidativa às boas conversas.
Aqui, vale uma explicação do historiador e professor universitário Bruno Viveiros Martins, também nascido e criado na região, sobre o porquê de Venda Nova ser anterior a BH. “Em 1787, os moradores do Arraial de Venda Nova, então ligado à Vila de Sabará, enviaram uma carta à rainha de Portugal, Dona Maria I (1734-1816), pedindo autorização para erguer uma capela dedicada a Santo Antônio. Dezesseis anos depois, foi doada, para edificação do templo, uma área (entre 30 e 40 alqueires) da fazenda de Antônio de Castro Porto.” Autor do livro “Venda Nova”, da coleção “BH – Cidade de cada um”, Bruno afirma que Venda Nova pertenceu a Sabará e Santa Luzia antes de ser, em 1948, anexada à capital.
“No auge da colonização, o então lugarejo desempenhou importante papel comercial, político e religioso. Além de fazendas de gado, a região abrigava empórios e vendas de comerciantes portugueses, vindo daí o nome pelo qual se tornou conhecida. A atual Rua Padre Pedro Pinto fazia parte dos Caminhos dos Currais do Rio São Francisco, uma rota de tropeiros.”
AMBIENTE ORIGINAL
As palavras do professor Bruno Viveiros ecoam na casa de linhas simples, preservadas como nos primórdios. Conservar esse patrimônio hoje é missão de Isabella, atual proprietária e que vive no imóvel com os três filhos (Miguel, de 8, Giovanna, de 5, e Matheus, de 3) e um irmão, Guilherme de Cássio Gomes. Há alguns anos, Gracina foi morar com a sobrinha Rita de Cássia e sua família na casa do outro lado da Rua Gentil Murce Ferreira.
As palavras do professor Bruno Viveiros ecoam na casa de linhas simples, preservadas como nos primórdios. Conservar esse patrimônio hoje é missão de Isabella, atual proprietária e que vive no imóvel com os três filhos (Miguel, de 8, Giovanna, de 5, e Matheus, de 3) e um irmão, Guilherme de Cássio Gomes. Há alguns anos, Gracina foi morar com a sobrinha Rita de Cássia e sua família na casa do outro lado da Rua Gentil Murce Ferreira.
“Viver aqui é uma maravilha, parece que entramos mesmo na história. Não modificamos nada do original, a não ser fazendo um reparo ou outro. Algumas tábuas do piso, por exemplo, precisaram ser trocadas, pois apodreceram e abriram caminho para ratos”, diz Isabella.
Acompanhando a equipe do Estado de Minas, Rita de Cássia explica que, na sala, o forro de taquara, também conhecido como esteira, precisou ser retirado, dando lugar ao de madeira. “Mas o banheiro continua do mesmo jeito, com poucas alterações”, diz, apontando o cômodo em um plano mais baixo do que a sala e os quartos. Atenta, Giovanna observa todos os detalhes, certa de que a conservação do imóvel, permeado de acontecimentos e memórias, passará pelas suas mãos.
BAÚS
O retrato na parede, em preto e branco, de Raimundo Pereira do Vale, os marcos de portas e janelas aparentes sob a parede caiada de branco, as madeiras centenárias pintadas de marrom e dois baús de couro, num dos quartos, são novos convites a descobertas. “Meu pai criava porcos, galinhas e outros animais, todos soltos, enquanto minha mãe fazia doce e lavava roupa. No quintal, tinha engenho para fazer farinha de mandioca e o moinho, para o fubá. Mais acima, havia um açude”, recorda-se Gracina, que, curiosamente, diz não ter saudade daquela época: “Eu me sinto bem no tempo em que estou”.
O retrato na parede, em preto e branco, de Raimundo Pereira do Vale, os marcos de portas e janelas aparentes sob a parede caiada de branco, as madeiras centenárias pintadas de marrom e dois baús de couro, num dos quartos, são novos convites a descobertas. “Meu pai criava porcos, galinhas e outros animais, todos soltos, enquanto minha mãe fazia doce e lavava roupa. No quintal, tinha engenho para fazer farinha de mandioca e o moinho, para o fubá. Mais acima, havia um açude”, recorda-se Gracina, que, curiosamente, diz não ter saudade daquela época: “Eu me sinto bem no tempo em que estou”.
Nas décadas de 1940 e 1950, não era tarefa das mais fáceis chegar ao Centro de Belo Horizonte. “Tínhamos que ir a pé, pois não havia ônibus. E como dinheiro era curto, o jeito era caminhar”, lembra Gracina. As festas nas cidades vizinhas também requeriam esforço redobrado. “Íamos a Santa Luzia no dia da padroeira, 13 de dezembro, mas também a pé. Como esta região era formada por fazendas, a gente encontrava sempre uma vaca pelo caminho. Aí, a gente tinha de correr”, diverte-se a simpática senhora, que nunca trabalhou fora nem quis se casar. Por sorte, acrescenta, às vezes passava uma carona, um caminhão, e a turma subia na carroceria.
Na sede da fazenda de Raimundo, o Natal era muito celebrado, e a família fazia um presépio ocupando grande espaço da sala. Em outras épocas do ano, Gracina gostava especialmente das festas juninas, com destaque para Santo Antônio, que é o padroeiro de Venda Nova.
O NOME DO PADRE
Impossível falar sobre Venda Nova sem citar o padre Pedro Pinto Fernandes (1890-1953), titular da Paróquia Santo Antônio entre 1924 e 1953. Na mesa da sala, Gracina conta que o conheceu, e ressalta sua participação na vida comunitária. Conforme registro da paróquia, o religioso foi essencial na evangelização na Arquidiocese de Belo Horizonte, criada em 1921. Padre Pedro Pinto foi um dos primeiros a obter a carteira de habilitação e dirigir, a partir de 1928, pelas ruas da região.
Impossível falar sobre Venda Nova sem citar o padre Pedro Pinto Fernandes (1890-1953), titular da Paróquia Santo Antônio entre 1924 e 1953. Na mesa da sala, Gracina conta que o conheceu, e ressalta sua participação na vida comunitária. Conforme registro da paróquia, o religioso foi essencial na evangelização na Arquidiocese de Belo Horizonte, criada em 1921. Padre Pedro Pinto foi um dos primeiros a obter a carteira de habilitação e dirigir, a partir de 1928, pelas ruas da região.
Cercada de muros, a casa centenária que é testemunha de parte dessa história fica entre as duas principais vias públicas de Venda Nova: a Avenida Vilarinho, famosa pelos históricos transbordamentos do córrego de mesmo nome, nas estações de chuva, e a Rua Padre Pedro Pinto. “Felizmente, a enchente nunca veio aqui, porque a construção está numa parte mais alta. Só alaga mesmo lá embaixo”, diz, com alívio, Rita de Cássia.
Em 1916, com a morte do mestre Luiz Daniel, o casarão teria ficado em poder de suas duas sobrinhas. Depois vendido, teve ao longo do século 20 várias serventias. A importância foi destacada em 2003, com o tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte.
Educação e memória no mesmo endereço..
Região mais antiga de BH, com mais de três séculos, Venda Nova tem outra construção que joga mais luz sobre sua história. Trata-se do casarão da Rua Boa Vista, hoje sede da Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) de Venda Nova, da Prefeitura de BH, e o Centro de Referência da Memória de Venda Nova.
Destruído pelo fogo em 2007, o sobrado apelidado de Casarão, Casa Grande ou Casa Azul foi reinaugurado em 2013. A trajetória dele começa em 1884, ao ser construído pelo mestre Luiz Daniel Cornélio de Cerqueira, político, professor e delegado de Curral del-Rei.
Em 1916, com a morte do mestre Luiz Daniel, o casarão teria ficado em poder de suas duas sobrinhas. Depois vendido, teve ao longo do século 20 várias serventias. A importância foi destacada em 2003, com o tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte.
Inspiração para o batismo de BH
O mestre Luiz Daniel Cornélio de Cerqueira, responsável pela construção do Casarão de Venda Nova, era integrante do Clube Republicano. Assim que chegaram as primeiras notícias da Proclamação da República (15 de novembro de 1889), os integrantes do clube se apressaram em mudar o nome do povoado onde depois se ergueria a nova capital de Minas, relata o historiador e professor Bruno Viveiros Martins, “pois, segundo eles, não pegava nada bem um Curral del-Rei na nova conjuntura republicana”. Durante as reuniões do clube, apareceram várias sugestões: Novo Horizonte, Terra Nova, Santa Cruz, Cruzeiro do Sul, Nova Floresta. “Até o mestre Daniel Cornélio pedir a palavra. Argumentou que todas as opções eram insignificantes diante da beleza do lugar e do futuro que lhe aguardava”.
Em seguida, Daniel Cornélio sugeriu aquele que, em sua opinião, era o nome mais condizente com a realidade à sua volta: Belo Horizonte. Em 12 de abril de 1890, o presidente do estado (na época, não se usava a palavra governador), João Pinheiro, após ouvir as alternativas apresentadas pelo Clube Republicano, assinou a lei que alterava o nome do antigo Curral del-Rei para Belo Horizonte. Foi assim que o personagem entrou para a história de BH, e a cena foi narrada por Henriqueta Lisboa em 1972 no livro “Belo Horizonte bem querer”.
O professor Bruno Viveiros explica que, ao ser inaugurada em 12 de dezembro de 1897, a capital recebe o nome de Cidade de Minas. No entanto, em 1901, volta a ser denominada Belo Horizonte.