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Estado de Minas CASO LAGOINHA

Abandono e tortura: o que se sabe sobre o caso dos meninos da Lagoinha

O Estado de Minas teve acesso aos processos dos meninos abandonados no Bairro Lagoinha, em BH. Os relatos envolvem versões contraditórias e uma série de abusos


18/04/2023 19:29 - atualizado 18/04/2023 20:43

Duas crianças
De acordo com o boletim de ocorrência, as crianças foram encaminhadas para o Hospital Odilon Behrens com quadro de desnutrição e desidratação severa (foto: Arquivo pessoal)
A descoberta de duas crianças abandonadas no bairro Lagoinha, na Região Noroeste de Belo Horizonte, no dia 21 de fevereiro, desencadeou a investigação de crimes de maus-tratos, trabalho infantil, situação análoga à escravidão e tortura envolvendo duas famílias. Os crimes teriam ocorrido na capital e em São Joaquim de Bicas, na Região Metropolitana. Nesta terça-feira (18/4), Terezinha Pereira dos Santos, suspeita de envolvimento nos crimes, foi presa pela Polícia Militar.

Terezinha presa
Terezinha foi presa usando uma touca, óculos escuros e máscara, e estava acompanhada de duas crianças, que são suas netas (foto: Isabela Bernardes/ EM/ D.A/ Press)
Ela foi encontrada na avenida Amazonas, em pleno centro de Belo Horizonte. Usava uma touca, óculos escuros e máscara e estava acompanhada de duas crianças, que são suas netas. A reportagem do Estado de Minas teve acesso aos processos judiciais do caso e elenca o que se sabe até o momento.

Na terça-feira de Carnaval os meninos pediram comida para uma vizinha por um buraco na porta do apartamento onde estavam. Eles já haviam sido vistos entrando no local junto com Terezinha Pereira dos Santos e Lalesca Pereira dos Santos, mãe e filha, apontadas como as principais suspeitas de abandoná-los. 

Depois de alimentar as crianças, a vizinha acionou a Polícia Militar. Ao chegarem no local os militares perceberam que a porta de entrada estava trancada com uma corrente e cadeado. Dentro do apartamento os militares encontraram um colchão de solteiro no chão, vasilhas sujas na cozinha e nenhuma comida. 

De acordo com o boletim de ocorrência, as crianças foram encaminhadas para o Hospital Odilon Behrens com quadro de desnutrição e desidratação severa. Segundo o laudo médico do exame de corpo e delito, o menino mais novo, de 6 anos, pesava 13 kg, apresentava diversas escoriações pelo corpo e notória perda muscular. 

Nas imagens tiradas no momento do exame é possível ver os ossos da costela, ombro, joelho e outras articulações bem protuberantes. Ainda conforme o relatório, a saúde do menino estava crítica devido a falta de nutrientes. O mais velho, de 9 anos, também estava desidratado e desnutrido, mas com menor gravidade. 

Os meninos ficaram internados por cerca de 15 dias. Eles foram acompanhados pela equipe do Conselho Tutelar da Prefeitura de Belo Horizonte e pelo tio materno, que veio de Valparaíso de Goiás quando soube da morte de um terceiro sobrinho, Emanuel, também em fevereiro deste ano.

Em depoimento à Polícia Civil, a vizinha do apartamento da Lagoinha informou que no mesmo dia do resgate Terezinha e Lalesca estiveram no local e chegaram a perguntar sobre o paradeiro dos garotos. Ela foi informada que os meninos foram levados para o Hospital Odilon Behrens. Até esse momento, as crianças ainda não haviam dito que a mulher não era sua avó e que as mantinha trancadas e as forçava a realizar trabalhos braçais em um lote em São Joaquim de Bicas. 

Já no hospital os meninos informaram à PM que Terezinha, também referida como Maria, mandou que eles mentissem caso alguém perguntasse seus nomes. 

Ao pesquisarem o nome dos meninos no banco de dados, a polícia descobriu que a mãe deles, Kátia Cristina Alves Robes, está presa na Penitenciária de Vespasiano desde o dia 6 de fevereiro, suspeita pela morte de outro filho, uma criança de 4 anos. Conforme consta no processo que apura as circunstâncias do abandono, os garotos pensavam que a mãe havia morrido em consequência da Covid-19. 

Criança morre após diversas agressões 

A criança de 4 anos morreu no dia 6 de fevereiro de 2023, após dar entrada na UPA de São Joaquim de Bicas, na Grande BH. Ele foi levado até o local pela mãe. Conforme laudo do exame de necropsia, a criança sofreu parada cardiorrespiratória, estava desnutrida e desidratada. A causa da morte foi uma pancada na cabeça por objeto contundente. 
Ainda de acordo com o laudo, a situação da criança era bastante dramática. Ela apresentava hematoma roxo no olho esquerdo, machucado no lábio superior, machucados no lado esquerdo do rosto e hematoma na parte interna dos lábios. Estava muito magro, com costelas aparentes, escoriações no peito, escoriações na coxa direita, ferimentos circulares no tornozelo esquerdo e na perna direita, escoriações na lombar e hematoma intracraniano.

As versões contraditórias da mãe

Ao prestar depoimento para a Polícia Militar, Kátia apresentou duas versões sobre o que teria acontecido com o filho. Na primeira, afirmou que estava dormindo em um quarto com sua outra filha de 1 ano, e os outros filhos de 3 anos dormiam em outro quarto. Ela disse que pela manhã acordou e quando foi chamar o filho percebeu que ele estava desmaiado. 

Kátia então teria gritado pelo seu namorado, identificado como Diego Pinheiro dos Santos, que estava trabalhando na área externa do lote. Assim que o homem entrou no imóvel, tentou reanimar a criança e, não obtendo resposta, o levou para a UPA. 

Já em uma nova versão, a mulher disse que dormia no quarto com os filhos, todos na mesma cama. Quando o dia clareou, Kátia teria levantado e viu que um dos meninos estava caído de bruços no chão, ao lado da cama. Quando o virou de barriga para cima, percebeu que a criança estava com hematomas nos olhos e gritou pelo namorado, Diego.
 
Ao ser questionada sobre o que teria causado os ferimentos no corpo do filho, a mãe também apresentou versões divergentes. Entre elas, que o menino havia caído, que ele teria se queimado com uma lagarta, e que o problema no tornozelo seria causado por uma bota molhada. 

Na ocasião, Diego afirmou que estava capinando o lote quando ouviu os gritos de Kátia. Ao chegar no quarto em que ela e os filhos estavam, encontrou o menino desacordado e tentou fazer massagem cardíaca nele e, em seguida, o levou para a UPA. 

De acordo com a sua defesa, o homem e Kátia não possuíam qualquer tipo de relacionamento amoroso. A informação também foi dita pela mãe dele, Terezinha, no dia da morte da criança. Conforme consta no registro policial, a mulher e os filhos dormiam separados do homem. 

Como as famílias se conheceram 

Já na Penitenciária de Vespasiano, Kátia escreveu uma carta contando sobre como começou a morar no mesmo lote que a família de Diego. Segundo seu relato, ela, os quatro filhos e o marido, Wellington Camelo Gomes, chegaram a Belo Horizonte há cerca de um ano e meio, vindos de João Pinheiro, na Região Noroeste de Minas Gerais. Ainda na rodoviária da capital, ela teria conhecido Terezinha, que ofereceu trabalho em seu sítio, em São Joaquim de Bicas. Lá, conheceu Diego e Lalesca, filhos de Terezinha. 
No entanto, segundo depoimento de Terezinha, no dia da prisão de Kátia pela morte do filho, no terreno de sua casa funciona um centro espírita de candomblé. Ela então teria acolhido a mulher e os filhos após eles pedirem por abrigo.

Suspeita de cárcere privado 

Em entrevista ao Estado de Minas, no dia 24 de fevereiro, o antigo advogado de Kátia relatou o que teria acontecido à família logo depois que chegaram a São Joaquim de Bicas. O então defensor contou que, depois de dois meses no sítio, Terezinha e Lalesca teriam dito à Kátia e Wellington que eles poderiam receber indenizações da Vale pelo rompimento da Barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019. As mulheres teriam, ainda, se oferecido para fazer o cadastro do casal, mas iriam querer parte do valor. 

Conforme o relato de Kátia, escrito na Penitenciária de Vespasiano, logo após a reunião para falar sobre a possível indenização, ela e os filhos foram levados para Belo Horizonte. Ela contou, ainda, que depois que voltou para o sítio na Grande BH nunca mais viu seu marido. "Quando chegamos no sítio, ela falou para mim que meu marido tinha ido embora. Aí eu comecei a chorar e ela disse para eu não preocupar com nada que ela ia me ajudar". 

Ainda segundo a mulher, no dia 4 de janeiro de 2022, Terezinha e Lalesca a levaram para a capital para que ela tivesse sua filha caçula, que nasceu prematura. Dez dias depois do parto, Terezinha teria informado que um médico do Hospital Sofia Feldman, onde o procedimento foi realizado, ligou afirmando que a bebê deveria voltar para a unidade para ficar internada. A recém-nascida foi então retirada dos braços da mãe sob o pretexto de que durante a internação teria que ficar sozinha. 

Kátia conta que assim que a filha foi levada, ela voltou para o sítio de São Joaquim de Bicas e, depois de um tempo, foi informada que a filha havia morrido. No entanto, em outubro do mesmo ano, nove meses após o nascimento do bebê, Terezinha teria a informado que a filha não havia morrido.  
Ainda no período de puerpério, antes de saber que a filha caçula estava viva, Kátia relatou que sempre era mantida separada dos filhos homens e que os via muito pouco, apenas quando estava molhando as plantas do terreiro do sítio. Mesmo assim, ela explica que não conseguia ter contato próximo com os meninos.

Em um trecho da carta, a mãe das crianças conta que certa vez foi levada para um "quarto subterrâneo" e que, dias depois, durante a noite, conseguiu conversar com o filho mais velho. Ela contou que o menino dizia estar com saudade e que ele e os irmãos também eram mantidos presos, sendo permitido apenas que trabalhassem. O garoto ainda teria dito que Terezinha o havia obrigado a gravar um vídeo, e que caso não o fizesse, iria apanhar. 

Ainda de acordo com um dos primeiros advogados de Kátia, logo depois da conversa ela nunca mais soube dos filhos mais velhos, de 6 e 9 anos. Ainda segundo o advogado, Kátia achava que os filhos estavam mortos. 

A reportagem do Estado de Minas entrou em contato com o novo representante legal da mulher, que permanece presa no Presídio de Vespasiano. Por meio de nota, o advogado afirmou que a defesa da mulher não vai se manifestar antes da elucidação do caso. "Todos assuntos relacionados à ação penal serão discutidos endoprocessualmente". 

Crianças viviam cotidiano de agressões e atividades forçadas

Dias depois de darem entrada no Hospital Odilon Behrens, os dois meninos resgatados no apartamento de BH participaram de uma entrevista de Escuta Especializada, realizada por um perito da Polícia Civil. De acordo com o relatório, ao qual a reportagem do Estado de Minas teve acesso, o menino de 9 anos contou sobre o dia em que ele e o irmão foram encontrados pela vizinha do imóvel da Rua Itapecerica, no bairro Lagoinha.

Conforme relato, as crianças teriam ficado sozinhas de 3 a 4 dias. Antes do abandono, estavam no imóvel Terezinha, Lalesca e suas filhas. Dias depois, as mulheres foram embora, deixando os garotos trancados em cômodos diferentes. Segundo o menino, um deles ficou debaixo do sofá e o outro dentro de um armário. Ao perceber que as mulheres não iriam voltar, ele acabou saindo de onde estava e indo ao encontro do irmão, que estava chorando e pedindo comida. Foi quando ele decidiu acionar a vizinha alegando fome. 

Sobre como era a vida antes de ir para o apartamento no Bairro Lagoinha, o menino disse que morava com a mãe e os irmãos em um sítio de Terezinha, em São Joaquim de Bicas. Ele afirma que o terreno era grande, "uns quatro lotes", com várias casas, "uma pior que a outra". Lá, ele e o irmão ficavam em um quarto que tinha um buraco na parede. 

Era comum que os meninos ficassem afastados um do outro, isso porque, segundo o menino, Terezinha dizia que eles não davam certo juntos. Além disso, no sítio as crianças não podiam ver televisão, apenas trabalhar. À perita, ele contou que era responsável por carregar terra e água, molhar plantas, cavar buracos "com ferramenta pesada" e capinar. As tarefas também eram repassadas para as outras crianças. 

Ao ser questionado sobre sua ida à escola, o garoto afirmou que Terezinha não queria matriculá-lo em nenhuma instituição de ensino, porque eles poderiam "ficar fazendo fofoca" de que ela os colocava para trabalhar. 

Em relação aos machucados pelo seu corpo, ele informou que foram causados ou por excesso de trabalho ou por ter apanhado. A criança disse que um machucado em seu pulso foi feito por Diego, filho de Terezinha, quando o teria pegado tentando "caçar" comida. Ainda segundo o relato, Terezinha ajudava o filho a agredir as crianças, chegando a colocar um pano em suas bocas para que não gritassem. 

Nomes falsos e vídeos suspeitos

Sobre a relação com a mãe, o filho contou que ela já teve três namorados, e que todos a espancavam. De acordo com o menino, desde o dia que a mãe conheceu o padrasto ela "ficou má", e sempre batia nos filhos. 

O menino disse que Terezinha os instruiu a sempre usarem nomes falsos. Além disso, o menino contou que a mulher os mandou dizer que nunca morara no sítio de São Joaquim de Bicas, que não iam para a escola por terem medo de serem mortos pelo padrasto, que não a conheciam, que moravam na rua, que usavam drogas e que ingeriam bebida alcoólica.

A reportagem do Estado de Minas também teve acesso a três vídeos, que teriam sido gravados por Terezinha, em data e local incertos. Em uma das imagens, o menino aparece sozinho sentado em uma cadeira de plástico. Na segunda, ele aparece orientando o garoto sobre o que falar, e depois de um corte na gravação o outro menino repete o que o irmão disse. Em um terceiro vídeo, os dois filhos de Kátia aparecem descalços em frente a uma parede com revestimento de pedra. 

"Minha mãe pegava o dinheiro do Bolsa Família, dava para o meu padrasto usar droga. Eu que tinha que sair para arrumar comida, arrumar as coisas, aí se eu não chegasse com nada eles me espancaram. Aí a gente tinha que chegar com muita coisa só para eles 'usar' droga. Eles vendiam as coisas que eu arrumava, eu ganhava brinquedo, essas coisas, roupa, tudo novo, e eles 'vendia' para usar droga. Meu padrasto me espancava demais, minha mãe ficava só deitada, pegava o Bolsa Família e dava para ele usar droga. [..] Eu não morava em lugar nenhum, aí nós morava na rua, ficava na rua, não tinha jeito de nós estudar", disse o menino de 9 anos. 


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