Gabriel Soares Souza foi ignorado por funcionários de uma academia em Belo Horizonte, e percebeu que o tratamento se deveu à cor da sua pele. Um caso que poderia ter se juntado aos 64 processos motivados por discriminação racial abertos em 2022 na capital mineira, mas que acabou não sendo formalmente denunciado.
A situação, que reflete milhares de episódios ocorridos no dia a dia, revela que, apesar do aumento de 113% nas ações do tipo em relação ao ano anterior, quando houve 30, esse número poderia ser muito maior, se não fosse a subnotificação.
Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o aumento não ocorreu apenas em Belo Horizonte. Em Minas Gerais, foram abertos 511 processos motivados por racismo em 2022, um aumento de 27,75% em relação a 2021, quando foram registrados 400 casos em todo o estado.
Do mesmo modo, houve aumento dos boletins de ocorrência por comportamento racista registrados em Minas. Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp), no ano de 2022 foram 185 ocorrências no estado, 33% a mais que os 139 boletins de 2021. Entretanto, dados da Sejusp mostram que houve discreta queda, de 6,89%, nos casos registrados em Belo Horizonte: de 29 em 2021 para 27 em 2022.
Apesar de frequente e por causas compreensíveis, a subnotificação não é a regra. Em março de 2022, a geógrafa Eleciania Tavares denuncia ter sofrido com o preconceito racial em uma agência bancária na cidade de Ibirité, na Grande BH. Ela se dirigiu ao local para abrir uma conta-salário e relata que, ao tentar entrar com sua bolsa e uma sacola transparente, a porta giratória travou. Mesmo depois de tirar todos os objetos que poderiam acionar o detector de metais da porta, seguiu sem conseguir passar.
Foi então que um segurança se aproximou e perguntou o que Eleciania tinha na sacola. “A sacola transparente com um salgadinho, que era meu almoço, de uma pessoa preta, configura uma ameaça? Não era a sacola, era o corpo de uma mulher negra”, afirma a educadora.
Eleciania então se dirigiu até uma unidade móvel da Polícia Civil para registrar um boletim de ocorrência. Segundo ela, um dos policiais foi relutante em registrar o caso como racismo e questionou a formação da educadora. Ela conta que somente após afirmar que era geógrafa a postura do policial mudou e se tornou mais respeitosa.
Em julgamento
Na semana seguinte, ela também se dirigiu à Delegacia Especializada em Repressão aos Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTfobia e Intolerâncias Correlatas (Decrin), em Belo Horizonte, e reafirmou a denúncia em um segundo boletim. O caso teve uma primeira audiência em junho do ano passado, e segue na Justiça.“Se sofro isso e não me posiciono, estou indo contra o que eu ensino para os meus alunos. Mais que isso, me vejo na responsabilidade de denunciar. Se não denunciasse, estaria sendo conivente com esse sistema racista”, afirma Eleciania.
O que diz a lei
A Lei Federal 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, prevê penas que variam de um a cinco anos de prisão, podendo ou não ser acompanhadas de multa. Segundo a Constituição Federal, racismo é crime inafiançável e imprescritível – ou seja, não prescreve e pode ser julgado independentemente do tempo transcorrido desde a ofensa.
Como denunciar
Em BH, vítimas de racismo podem procurar a Delegacia Especializada em Repressão aos Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTfobia e Intolerâncias Correlatas, na Avenida Barbacena, 288, Bairro Barro Preto, ou o posto policial mais próximo e registrar a ocorrência. Quem testemunhar um ato racista, presencialmente ou em publicações, sites e redes sociais, pode procurar o Ministério Público para formalizar uma denúncia. Crimes do tipo também podem ser comunicados por meio do Disque 181 e Disque 100.
Soma de impunidade, lentidão e burocracia
Apesar de o número de denúncias contra atos de racismo ter aumentado de maneira geral em todo o estado, a subnotificação ainda é um problema evidente. Marcos Cardoso, filósofo e militante do movimento negro há mais de 40 anos, aponta vários motivos para que isso ocorra, entre eles o alto índice de impunidade dos ofensores e de casos inconclusos, demora do processo, forma inadequada como a vítima é tratada nas delegacias, denúncia que por vezes é classificada como outro crime menor e a dificuldade de materializar ou provar o caso de racismo.
Quando o crime ocorre em ambiente de trabalho, outros fatores interferem. No caso da vítima, ela pode sentir receio de sofrer represálias ou ser demitida. O mesmo medo afeta as testemunhas, que por isso podem se negar a dar um depoimento. “A subnotificação é real, mas a própria subnotificação nos ajuda a entender o que está acontecendo”, afirma Marcos.
Desgaste
Além dos obstáculos presentes no processo de formalização de uma denúncia, um fator que leva à subnotificação é a pesada carga emocional que a vítima enfrenta, que faz com que resista em vivenciar mais desgastes. Gabriel Soares de Souza foi uma dessas pessoas: “Legalmente falando, eu decidi não levar o caso adiante, mais pelo desgaste emocional que a situação toda gera”.Em abril de 2022 ele contratou os serviços de uma academia em Belo Horizonte, mas poucas horas depois quis cancelar o contrato, por considerar que não foi bem atendido pelos funcionários. Ao se dirigir à recepção, foi informado que a providência só seria possível mediante pagamento de multa, o que ele não aceitou, por ter usado os serviços por menos de uma hora.
Ele relata que foi então orientado a voltar no dia seguinte para conversar com a gerente. Porém, ao tentar resolver o impasse, sempre era informado que ela não estava no local ou estava ocupada.
Ele também conta que enquanto estava na recepção tentando contato com a responsável, funcionários agiam como se ele não estivesse ali, ignorando-o para atender outros clientes. Ele relata que reparou que todas as pessoas que não eram pretas eram bem atendidas e pareciam ter uma boa experiência com a academia.
“É muito triste. A gente se sente muito desrespeitado, não apenas por ter sido invisibilizado, maltratado e ignorado, porque parece que a gente não existe, mas eu pensava o tempo todo: ‘Por que o meu dinheiro vale menos?’”, questiona Gabriel.
Depois de dias tentando resolver o problema, ele usou as redes sociais para divulgar a experiência e o tratamento racista que percebeu por parte da academia. As postagens foram compartilhadas e outras pessoas começaram a relatar experiências parecidas.
Apenas após a repercussão do caso, a gerente entrou em contato com Gabriel e cancelou o contrato sem custos. Para ele, só o processo de reaver o dinheiro foi muito desgastante. Por não querer mais tocar no assunto, ele afirma ter decidido não registrar a ocorrência ou abrir um processo.
Preconceito naturalizado
Práticas racistas identificadas nas diversas camadas e estruturas da sociedade desde os tempos da escravidão constituem o que se convencionou classificar como racismo estrutural. É a definição de um conjunto de circunstâncias que ocorre de forma tão naturalizada que muitas vezes passa despercebido – práticas que envolvem desde expressões e piadas de cunho discriminatório até atendimento negligenciado e falta de oportunidades para a população negra.
Segundo o advogado Thales Machado, estudioso das relações raciais, o racismo estrutural dificulta entre os indivíduos a percepção de sua própria origem. Então muitas pessoas não se identificam como negras, mas como “morenas” ou “pardas”. Logo, não se veem como vítimas de racismo.
“O principal obstáculo está no fato de a pessoa ter consciência de que o que sofreu foi racismo, que foi um crime. E, então, adotar o procedimento burocrático de formalização por meio de um boletim de ocorrência”, explica.
Para especialistas, a formação da identidade do Brasil e da unidade nacional, sobretudo na Era Vargas, deu origem à imagem do país construída sobre um ideal de diversidade e miscigenação, que criou o mito da democracia racial e mascarou o racismo.
O filósofo Marcos Cardoso aponta para o fato de que normalmente não se fala sobre como ocorreu essa miscigenação no Brasil. Segundo ele, se celebra a diversidade, mas não se discute que ela não é fruto do consentimento, mas sim de uma violência contínua desde o período colonial.
“A democracia racial é uma falácia, é uma amostra de como o racismo é sofisticado. Por mais que seja belo o paraíso social da sociedade brasileira, por baixo dele há uma violência cotidiana intrínseca, que mata, que violenta psíquica e fisicamente as pessoas e sobretudo as mulheres negras”, afirma o ativista.
Delegacias especializadas
Para tentar minimizar os obstáculos para a formalizar uma denúncia de discriminação racial, em 2018 a Polícia Civil de Minas Gerais criou a Delegacia Especializada em Repressão aos Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTfobia e Intolerâncias Correlatas (Decrin), no Bairro Barro Preto, Região Centro-Sul de BH.
Para preparação dos profissionais, a Academia de Polícia Civil (Acadepol) oferece cursos de capacitação, reciclagem e aperfeiçoamento na modalidade de educação a distância.
“O racismo é um processo histórico continuado e estrutural, no sentido de que toda a sociedade está estruturada ao redor disso. Então, mesmo essas instituições não escapam das lógicas perversas do racismo. Mas, existindo essa especialização, é uma ponta de esperança para que a sensibilidade e a compreensão sejam maiores para lidar com a situação”, pontua o advogado Thales Machado.
Mesmo que em todo o estado a vítima de preconceito racial possa registrar a ocorrência em qualquer delegacia, vale lembrar que existe apenas uma unidade especializada em Belo Horizonte, cuja atuação se restringe à capital. Segundo a Sejusp, no interior casos do tipo são tratados de acordo com a divisão interna dos trabalhos policiais.
Para o advogado Thales Machado, essa delegacia especializada é insuficiente para as demandas da cidade, uma vez que as vítimas podem ter dificuldade de se deslocar de regiões distantes para conseguir registrar uma denúncia. Ele avalia que o ideal seria pelo menos uma unidade em cada regional da cidade, além de outras no interior.
* Estagiária sob supervisão do editor Roney Garcia