Em razão dos afastamentos ocorrerem por múltiplos fatores, a solução para o problema é complexa. A especialista em educação, Priscila Boy, porém, aponta alguns caminhos. Para ela, a escola precisa incluir, na formação continuada do professor, a dimensão socioemocional.
“Estamos vendo que sem as competências socioemocionais, não vamos dar conta de viver nesse mundo dinâmico, violento e cada dia mais individualista. É preciso desenvolver as competências de empatia, cooperação e ética. Sou formadora de professores e sempre tenho procurado trazer para as minhas formações, não só a dimensão cognitiva, do conhecimento, do saber, das estratégias pedagógicas, mas a dimensão relacional. Trabalhar em equipe, partilhar experiências e angústias”, afirma.
Ela diz que incentiva os professores a serem uma rede de apoio. Além disso, na visão da especialista, a escola precisa providenciar profissionais que possam mediar essa rede de apoio. “Para que os colegas se sintam seguros uns com os outros. Os próprios professores são pares de apoio, em que um professor comenta com o outro, o outro dá um apoio, partilha uma atividade, uma experiência exitosa. Redes de apoio são a solução mais viável para enfrentar esses dilemas que se colocam diante de nós”, ressalta.
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Priscila acredita ainda que o poder público e as instituições privadas devem se unir e financiar programas de cuidado para os professores. “A escola deveria investir em profissionais de apoio, para ajudar esse professor no autocuidado, na autogestão na alimentação, com técnicas de sono e trabalho de gestão do tempo.”
Segundo ela, isso faz com que a instituição mostre ao professor que está investindo nele e não apenas extraindo dele o melhor na prestação de serviço. “O professor deve ser muito bem cuidado, porque ele tem sido, às vezes, o maior apoio dos alunos, que também estão com emocional abalado. Temos visto um alto índice de suicídios, de casos de depressão, ansiedade. E, muitas vezes, esses jovens não têm apoio nem diálogo com a família. Esses alunos veem no professor um apoio. Então cuidar do professor é garantir também, por tabela, um cuidado com o aluno.”
Iniciativas do poder público PBH informou que tem um Núcleo de Intervenção em Saúde Funcional permanente. Segundo a administração municipal, “a metodologia dessa equipe consiste em intervir no processo de trabalho quando identificado um adoecimento físico ou mental que resulte na incapacidade laborativa parcial, que pode afetar a adaptação e o desempenho do agente público e a realização das atividades inerentes ao seu cargo”.
O núcleo atua também no monitoramento durante o processo de readaptação funcional e no processo de inclusão do agente público com deficiência (PCD), de acordo com a PBH.
O município também faz ações de promoção à saúde, de prevenção de agravos e de intervenção em saúde funcional. O objetivo é “desenvolver ações que atuem no desafio permanente de manter a saúde física e mental no ambiente de trabalho”, diz a prefeitura.
Já o governo estadual destaca que a Diretoria Central de Saúde Ocupacional (DCSO), da Seplag, desenvolveu uma série de ações de cuidado com a saúde do servidor, incluindo a saúde mental.
Uma das medidas é o acompanhamento dos servidores em readaptação funcional. “Dada a importância desse acompanhamento, a DCSO estabeleceu um processo transversal de comunicação entre as chefias, os setores de RH e a coordenação central na Superintendência Central de Perícia Médica e Saúde Ocupacional (SCPMSO), que se dá por meio de um sistema on-line de acompanhamento. Para aperfeiçoar a utilização desse sistema, têm sido realizados, periodicamente, treinamentos de gestores de RH das diversas secretarias e regionais.”
Tratamento
Segundo a administração estadual, em paralelo, para estruturar um programa que pudesse dar mais atenção aos casos graves de adoecimento mental, a DCSO criou, em julho de 2020, o Projeto de Avaliação de Saúde do Servidor (PASS). “O objetivo é alcançar principalmente os servidores que poderiam se beneficiar de um acompanhamento mais próximo relacionado à saúde mental, buscando engajá-los no tratamento, bem como fortalecer suas relações sociais no contexto do trabalho.”
De acordo com a Seplag, o projeto conta com uma equipe multidisciplinar composta por serviço social, psicologia, médico do trabalho e médico referência em saúde mental, para avaliação e direcionamento.
A DCSO implantou, ainda, um programa de parceria com clínicas-escola de cursos de graduação em psicologia para garantir vagas gratuitas de psicoterapia para os servidores que se interessarem. “A primeira parceria do programa já foi assinada com a Faminas-BH e as vagas começaram a ser preenchidas desde o semestre passado. Os atendimentos serão feitos ao longo do ano e poderão ser on-line ou presenciais, individuais ou em grupo, conforme a necessidade do servidor. O programa busca facilitar o acesso do servidor a um serviço que, em muitos casos, é de grande custo financeiro e indisponível na região.”
Em abril de 2020, também foi criada a página do Instagram da Saúde Ocupacional (@saudeocupacionalmg), na qual são transmitidos conteúdos de saúde física, mental, nutrição, ergonomia e orientações diversas. “No canal, são transmitidas ao vivo diariamente aulas de ginástica laboral (manhã) e ginástica de relaxamento (tarde). Não é necessário cadastro prévio, basta se conectar no horário programado ou acessar as redes sociais da Saúde Ocupacional (Instagram/YouTube - Saúde Ocupacional MG) no horário mais adequado.”
Faca na sala de aula
J., de 36 anos, é professora há 12. Trabalha em dois períodos, em uma escola da rede estadual de ensino em Belo Horizonte. Tem medo de se identificar e sofrer represália por parte da instituição de ensino
“No fim de fevereiro, tive 10 dias de afastamento, por um problema com um aluno que levou uma faca para a sala de aula. Nem foi comigo o problema, mas a presença daquele aluno na sala de aula me assustava. A escola tenta sempre minimizar, colocar “panos quentes” na situação. ‘As coisas não são assim como vocês estão pensando. O menino não sabia o que estava fazendo’, eram coisas ditas pela direção. A gente tendo que estar dentro de sala, com o menino olhando com olhares ameaçadores, eu não dei conta de lidar. Todas as vezes em que eu tinha que dar aula para ele era muito problemático. Foi muito assustador aquilo. Os meninos da sala também ficaram assustados.
A escola também tem uma cobrança em cima da gente, quer que façamos coisas que não temos que fazer, aumenta o nosso serviço demais. Temos muitos prazos, às vezes entra algum projeto que temos que fazer, mas que não faz sentido para aquele momento. Mas querem que a gente dê conta. O diário não funciona e a gente recebe as cobranças como se ele funcionasse. Se eu não fechar meu diário no prazo, assino uma advertência, mesmo se ele não funcionar.
Já faço tratamento para ansiedade e a sensação que eu tinha é que os remédios não estavam mais fazendo efeito. Na hora de ir para a escola, eu tinha crise de ansiedade no estacionamento e tinha que esperar para sair do carro. Ano passado, tive vários afastamentos pelos mesmos motivos: excesso de trabalho e um quadro depressivo. O último afastamento foi de cinco dias, a partir de 17 de abril.
No início do ano, quando as aulas iam ser distribuídas, a diretora pedagógica me impediu de pegar aulas. O motivo seriam meus afastamentos. Não aconteceu só comigo, mas com outros dois professores. Quando apresento os atestados, não recebo nenhum apoio da escola. Antes eu ficava chateada. É muito difícil alguém (da direção) reconhecer que a gente se afasta porque estamos doentes. Mas quando um funcionário se afasta, ele não faz isso porque não quer trabalhar. Nossa rotina é muito pesada, lidamos com alunos que têm problemas graves em casa. Muitas vezes, procuram a gente para desabafar, na intenção de querer que a gente resolva os problemas deles. Da mesma forma, têm alunos que estão ali revoltados.
A gente vai adoecendo, é um ambiente muito pesado. A professora que teve o aluno com a faca na sala dela, por exemplo, está afastada por 60 dias. Tem outro professor que fez boletim de ocorrência recentemente depois de receber ameaça de um aluno. Isso mata a gente aos poucos.”
Silenciar é mais fácil
L., de 47 anos, é professor há 27. Trabalha como professor em uma escola da rede estadual e como vice-diretor em outra da rede municipal de Belo Horizonte. Tem medo de se identificar e sofrer represália por parte da instituição de ensino
“Nesse momento pós-pandemia, a gente tem tipos de violência que se intensificaram. Quando o professor vive a violência no ambiente escolar, é uma cadeia. Logo, ele pede uma assistência à sua chefia imediata. O grupo ao qual eu pertenço na rede municipal lida com a violência do aluno, a que o professor vive com o aluno. E o professor pressiona esse gestor. Essa cobrança já vem acompanhada de um nível de estresse enorme.
No pós-pandemia, ninguém ficou preocupado em nos dar uma assessoria, seja ela psicológica, legislativa. O professor chega na sua sala violentado de todas as formas e o que a vítima de violência quer do superior? Uma resolução imediata ou pelo menos um apoio. Mas a pessoa que deveria dar o apoio, quando você chega com o seu caso, ela já está lidando com outros 10.
São muitos tipos de violência que o gestor tem que lidar. Pais e mães que perderam o emprego e ficaram em trabalho remoto e que nunca tinham, ao longo da vida da criança, passado tanto tempo com elas dentro de casa.
Estamos vivendo algo muito sério: as violências domésticas que respingam nas escolas, abusos sexuais. É esse tipo de problema que nós, da escola pública periférica, estamos lidando. Tem um conselho tutelar que não está preparado para lidar com o problema. Uma Secretaria Municipal ou Secretaria do Estado de Educação que não tem competência para te assessorar. Você fica no meio de 500 conflitos de 'pés e mãos atados'.
A primeira violência é psicológica, porque você quer receber um problema, mas não é um profissional preparado para isso. O que está acontecendo nesse momento é que quando começamos a pressionar, a cobrar uma postura dos órgãos, viramos - ao contrário de mediadores do problema - as vítimas. Porque estamos sendo perseguidos, caçados, exonerados. É mais fácil silenciar.
Agora como professor, a maior violência é que nós não temos respaldo, por exemplo, quando vira cotidiano um aluno do Ensino Fundamental, séries sinais, te xinga com um palavrão, te agride com uma carteira jogada quando você está no quadro escrevendo. Professoras tomando socos, coices, chutes. Qualquer pedido mínimo de socorro nos leva a uma cassação política dentro das escolas. Então, a gente vai se silenciando e vivendo isso até o ponto de termos que procurar um profissional da saúde mental e nos afastarmos. Eu estive afastado por cinco meses porque não suportei a violência psicológica.
Eu tive uma crise de pânico que veio seguida de outras várias. Eu perdi 30kg. Perdi a fome, fiquei recluso. Eu não atentei contra minha vida porque a minha mãe chegou na hora. Fiquei doente, cinco dias na cama, sem tomar banho nem comer um grão de arroz. É isso que está nos consumindo e nos matando dentro da sala de aula. É isso que está elevando, a cada dia, o número de afastamentos dentro das redes Federal, Estadual ou Municipal.
Eu retornei, insisto em me manter vivo, mas não foi e não está sendo fácil. Toda hora que entra um pai pelo portão da escola, você pensa: vou morrer. Qual é o pepino dessa vez? Preocupado se aquela pessoa tem uma arma na cintura, se vai me agredir. Mas, nesse momento, foi cobrado da gente que devemos dar aula normalmente. Qual foi o suporte emocional que eu tive nesse momento? Só ouvi a frase: 'Diga aos professores para dar aula como se não houvesse amanhã'. E a gente ouve da Secretaria de Educação que o atestado psiquiátrico é porque o professor tem preguiça de dar aula. Eu ouvi isso várias vezes.”