O furgão antigo Volkswagen Kombi de cor branca parado na porta da casa no meio da tarde não despertou a atenção da vizinhança do Bairro Sagrada Família. Afinal, todos os dias ocorrem mudanças nesse que é o bairro mais populoso de Belo Horizonte, na Região Leste. O que ninguém percebeu é que o que era levado da residência para o veículo não se tratava de móveis encobertos pelas mantas cinzentas de mudança, mas TVs, notebooks e eletrônicos. Os transportadores eram ladrões furtando tudo o que encontravam pela frente. “Nas ruas, a gente tem medo, fica de olho no telefone celular, não deixa correntinha no pescoço e nem nada no bolso. Mas, em casa, mesmo com tudo trancado, não imaginava que nossas coisas seriam levadas de uma hora para outra. É uma violência”, desabafa a vítima dos bandidos, o caminhoneiro Lauro Donizete Costa, de 62 anos.
Por meio de dados exclusivos a reportagem do Estado de Minas comprova que os furtos dispararam em Minas Gerais e em Belo Horizonte e mostra exatamente onde. O crime contra o patrimônio se difere do roubo por não ter emprego de armas ou de grave ameaça. De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) de Minas Gerais, o número de furtos no estado aumentou de 2021 para 2022, subindo de 213.169 para 238.404 ocorrências, sendo que em Belo Horizonte o salto foi ainda maior, de 52.986 para 66.613 (25,7%). No comparativo de janeiro a março de 2022 e de 2023, o aumento em Minas Gerais foi de 6% e na capital disparou 32%.
A própria Polícia Militar se encontra em dificuldades para o enfrentamento do crime, com “o sentimento de que a areia escorre pelos dedos”, segundo oficiais confessaram para a reportagem, que teve acesso com exclusividade ao resultado do relatório de Gestão de Desempenho Operacional (GDO) da corporação de 2022. Segundo esse documento interno que nunca é divulgado, das 19 Regiões Militares do estado 15 ultrapassaram a meta de ocorrências de furtos, o pior deles sendo Belo Horizonte, onde o limiar tolerado foi extrapolado em 25%.
Apenas os batalhões das regiões de Uberaba, Governador Valadares, Teófilo Otoni e Sete Lagoas cumpriram a meta e apresentaram baixos índices desse tipo de crime.
O Balanço da GDO permite ainda ver que dentro de Belo Horizonte todos os oito batalhões listados excederam as metas estabelecidas para o controle dos furtos em suas áreas, sendo o pior aquele que é o maior deles, o 34º Batalhão, que atende às Regiões Noroeste e Pampulha, além de várias outras, totalizando 65 bairros. Na sequência vêm o 22º (Centro-Sul) e o 1º (Hipercentro e perímetro da Avenida do Contorno) batalhões.
Os furtos listados nessas estatísticas se referem a residências, comércios e a transeuntes (pedestres). Em apuração nas unidades policiais mais fragilizadas, a reportagem pôde constatar que os tipos de furtos são diferentes em cada região atendida pelos batalhões de BH. Na área do 34º Batalhão, por exemplo, se destacam os furtos a residências, sendo mais grave a situação nos bairros Sagrada Família, Padre Eustáquio e Caiçara.
“Aqui, a gente não sabe mais o que fazer. Instalamos concertina, cerca elétrica, travas, cadeados, câmeras e nada segura os ladrões. Das câmeras, acho que nem medo têm mais, porque outro dia filmamos um bandido entrando na casa do vizinho de tornozeleira eletrônica. Ou seja, mesmo depois de presos, eles voltam a nos atazanar”, desabafou o auxiliar administrativo Alexandre Fulgêncio Santos, de 57 anos, morador do Sagrada Família, expondo que nem mesmo com o trabalho da polícia sendo feito o problema consegue ser resolvido por causa de relaxamento das prisões. “Na minha casa estouraram o portão da garagem e levaram máquinas”, conta.
Lauro Costa, que teve eletrônicos, eletrodomésticos e joias levados em uma Kombi, descreve uma rotina de medo. “Meu prejuízo da última vez foi de R$ 10 mil. Quando não conseguem entrar na sua casa, roubam outra. Aqui na minha rua (Rua João Carlos) invadiram a construção ao lado e levaram os cabos do padrão, depois cortaram e levaram a fiação dos postes, já entraram na casa de cinco vizinhos neste quarteirão e quando tem jogos no Independência reviram os carros, levando até retrovisores”, relata.
“Só viajo ou saio de casa quando aviso para algum vizinho. Qualquer oportunidade os ladrões entram, rapidamente e levam o que estiver pela frente. É preciso se cuidar e investir em segurança”, afirma a auxiliar de atendimento Anisia Macedo, de 45 anos, também moradora do Sagrada Família.
“A sensação de insegurança é algo que se espalha com rapidez e fica. Já a confiança leva tempo para ser retomada. Por isso, os furtos devem ser combatidos imediatamente, fechando redes de receptação e sufocando áreas de atuação dos criminosos. Furtos são bolas de neve no imaginário coletivo. Se uma pessoa de uma família é vítima, a sua história comove e abala os parentes e vizinhos. Se for um colega de trabalho, todos da mesma empresa se sentirão afetados. Se um comércio é furtado toda a rede local sabe e outras lojas podem se sentir impactadas. Isso passa para os clientes e traz má fama”, avalia o coronel Carlos Júnior, especialista em inteligência de Estado e segurança pública.
Celulares e comércio são os alvos no Centro
A explosão de furtos nos bairros de Belo Horizonte mostrada pela reportagem do Estado de Minas afeta as áreas residenciais com o arrombamento e roubo de casas, mas em espaços de grande fluxo de pessoas como as regiões Centro-Sul e o Hipercentro os alvos são comércios e pessoas transitando pelas ruas, sobretudo visando os aparelhos celulares. Seriam esses os motivos de o 22º Batalhão (Centro-Sul) e o 1º Batalhão (Hipercentro e perímetro da Avenida do Contorno) terem se destacado como segundo e terceiro piores resultados no combate a esse tipo de crime (veja a tabela).
Para o especialista em inteligência de Estado e segurança pública, coronel Carlos Júnior, um dos componentes para o aumento dos crimes é o fim do isolamento social, que vinha impactando na queda do volume de ocorrências. “Agora, a liberdade de locomoção trouxe as pessoas e o movimento de volta ao comércio e ao lazer. Com isso, se tornaram alvos de furtos nos grandes centros em BH, Uberlândia, Contagem e Divinópolis, por exemplo”, observa.
Um dos alvos preferidos é o smartphone, que muita gente utiliza de forma displicente ou guarda em bolsos facilmente batidos pelos ladrões. Quando o aparelho é furtado em uso, sem a proteção das senhas e biometria, o estrago pode ser devastador, com a transferência de somas de contas, compras em aplicativos e outros prejuízos. O aparelho tem venda rápida no mercado negro e por isso se traduz em lucro certo aos bandidos. “O bem de consumo pessoal é mais valioso por isso é o preferido pelos ladrões, podendo representar lucro desde sua revenda até em golpes usando dados e acessos que o aparelho permite. Isso requer um combate sistêmico e na raiz do mal, sobretudo nas lojas que se tornam canais de deságue contínuo de receptação”, aponta o especialista.
A situação é tão grave no Centro, que há pessoas que só sacam o seu aparelho para utilizá-lo perto de postos da Polícia Militar ou de Guardas Municipais. “Ter seu celular roubado é certeza de problemas. Por isso meu avô e eu procuramos um lugar seguro para usar no Centro. Já tive um amigo que ficou sem o celular, puxaram e saíram correndo. Tudo ficou na mão dos bandidos: aplicativos de banco, redes sociais, fotos, tudo pode te prejudicar depois”, afirma a auxiliar administrativa Ana Luiza Mendes de Freitas, de 19 anos, que procurou um posto da guarda para chamar um aplicativo de transporte na Praça 7. “Já cansei de ver gente tendo carteiras e celulares roubados dos bolsos das bundas na Rua Rio de Janeiro e por ali. Mas parece que as pessoas não aprendem”, disse o avô dela, o aposentado José Antônio de Moura Mendes, de 66.
Drogarias
Também no hipercentro, os furtos a comércios se tornaram uma rotina difícil de combater. Em várias drogarias, mesmo não querendo se expôr na reportagem, comerciantes relatam que muitos usuários de drogas pegam artigos e saem correndo, sumindo na multidão. Na loja de bijuterias, artigos de moda e de eletrônicos onde Ingrid Mendes é gerente, esse combate é diário. “Todos na loja ficam atentos. Tem gente que nem se suspeita e que leva embora alguma coisa. Quando chegamos, tentamos convencer a pagar, se não, mandamos devolver ou chamamos a polícia, que é o que dá mais trabalho, porque só termina de madrugada”, afirma.
“Observo mais gente com sacolas. Quem rouba fica olhando para a gente com o canto dos olhos, nervoso. Somos três seguranças e ainda assim tem gente que tenta e até briga depois de roubar”, afirma um dos seguranças da loja, Dejair Júlio Manuel, de 28 anos.
PM diz que realiza ações repressivas
A Polícia Militar de Minas (PMMG) informa que realiza, diariamente, em todo estado, ações repressivas que resultam em prisões de indivíduos contumazes em furtos e roubos. “Como, por exemplo, as voltadas ao combate à receptação de objetos provenientes desses crimes, além de atuações preventivas, como operação presença em pontos estratégicos e distribuição de dicas de segurança à comerciantes e população em geral”.
A PMMG ressalta a importância de medidas de autoproteção para que o cidadão não se torne vítima em potencial dos infratores, que se aproveitam da distração para praticar delitos. “Em caso de emergência, acione a Polícia Militar, via 190, imediatamente”. Em relação ao GDO, a PMMG informa que esta é uma ferramenta interna utilizada pela corporação. “A partir de metas estipuladas ano a ano e que tem contribuído para a redução contínua da criminalidade violenta, em especial os índices de homicídios, fazendo de Minas Gerais o estado mais seguro do país”.
A Polícia Civil informou, apenas, que “atua, dentro das atribuições de polícia judiciária, em investigações relacionadas a furtos e à identificação de pessoas envolvidas em atos criminosos. Além do trabalho investigativo, que tem como alvo indivíduos participantes da prática de furtos e outros que adquirem ilegalmente o material furtado, a PCMG realiza operações em todo o Estado com a finalidade de combater as incidências desse tipo de crime”.