Jornal Estado de Minas

LENDAS URBANAS

Fantasmas em BH? Eles nos assombram desde a fundação. Até Drummond sabia


Há 130 anos, o Curral del Rei tinha seu destino selado: em 1893, por força da lei, o arraial seria destruído, para, em seu lugar, ser erguida a nova capital de Minas. Inaugurada quatro anos mais tarde, ainda com serviços públicos totalmente deficitários, Belo Horizonte foi juntando à história, nas primeiras décadas, lendas de fantasmas inconformados com a destruição do povoado ou revoltados com o fim da sede governamental em Ouro Preto.




 
Atento ao cenário urbano e fiel às memórias, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu, na década de 1960, “Dois fantasmas” – um da Lagoinha, que assustava a população e tirava até os bondes dos trilhos, e outro da região da Serra.
 

Esse aí, coitado, foi perdendo o status de assombração e já não importunava mais ninguém. Em suas aparições, em junho, ele surgia no meio do nevoeiro, com certeza anunciando o inverno, que, neste ano de 2023, começou no dia 21, às 11h58.
 
Natural de Ouro Preto, antiga capital de Minas, o espectro da Serra “surgia à meia-noite e trinta, ponderado, no nevoeiro de junho”. Mas, nos idos de 1968, Drummond já lamentava, em tom de nostalgia: “ninguém mais fala nele”.




 
Bem distante das chácaras então localizadas aos pés da Serra do Curral, outra criatura assombrava parte da Região Noroeste da capital. “Chega a vez do avantesma da popular Lagoinha, noutro extremo da vida. Sinal de coisas novas. É excêntrico, forja diabruras cruéis”, escreveu também Drummond em “Dois fantasmas”, poema da coletânea “Boitempo II – Esquecer para lembrar”, recém-lançado pela Editora Record.
 
“Drummond é um notável contador de histórias. O enredo de um poema pode, por vezes, trazer personagens já esquecidos da vida de Belo Horizonte. Alguns, famosos: Madame Olímpia e seu cabaré; o conde D’Eu; os reis da Bélgica; Juliette Brille, a paraquedista; Helène Antipoff, a grande educadora; Mietta Santiago, que conquistou o direito de votar e ser votada; os escritores Pedro Nava e Cyro dos Anjos”, destaca a professora de história das ideias da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do projeto República, Heloisa Starling, que assina o posfácio do livro.
 
Já os fantasmas, observa a professora, dão conta das particularidades do moderno que fundou a capital de Minas. “A progressiva mutilação e retração dos lugares públicos aliada à instalação, desde sua origem, de um processo tão rotineiro de transformação, degeneração e mudança do espaço urbano, que, no limite, impede a cidade de acumular memória. São traços de memória da própria cidade, conservam e transmitem aquilo que o tempo não pode apagar na lembrança da cidade moderna.”




 
O fantasma da Serra, se há muito já não assusta ninguém, conserva, na memória da cidade, a lembrança dos funcionários públicos anônimos, egressos de Ouro Preto e dos milhares de operários e artesãos que construíram Belo Horizonte e ficaram por aqui, vagando, depois, sem trabalho. Já o avantesma da Lagoinha “traz à lembrança a margem que separava a cidade que se imaginava modernista, de sua gente, insalubre e extraviada”.

TOQUES DO IMAGINÁRIO

(foto: IGOR CERQUEIRA/DIVULGAÇÃO )

Após ler os versos de Drummond, é bom saber, caro leitor, que Belo Horizonte guarda histórias nos livros e nas pesquisas de estudiosos, e na criatividade dos “contadores e narradores” que dão a elas toques do imaginário. Os dois fantasmas são, portanto, criaturas do outro mundo e deste, pois desnudam lados da cidade com seus altos e baixos, contrastes, camadas sociais, diferenças culturais, tradições, pesadelos.
 
“O início da nossa história foi de violência. O antigo povoado de Curral del Rei desapareceu, foi queimado, dizimado, para dar lugar à nova capital. Esses fantasmas representam lamentos de quem perdeu essa memória”, diz a narradora de histórias e professora de arte Bárbara Amaral, que mora no Conjunto IAPI, na região da Lagoinha.




 
O diretor do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, Yuri Mello Mesquita, joga luz sobre a questão, com base em suas pesquisas. Em 7 de julho de 1893, o Congresso (então composto pelo Senado Mineiro e pela Câmara dos Deputados) recebeu o relatório da Comissão de Estudos das Localidades Indicadas para Nova Capital (Celinc). Quase seis meses depois, em 17 de dezembro, foi publicada a Lei Adicional nº 3, que estabeleceu as regras para a construção da cidade sobre o que então era o arraial. Estava decretado o fim de Curral del Rei.
 
Mello Mesquita encontra nas origens da cidade inaugurada em 12 de dezembro de 1897 algumas explicações para o “aparecimento” de “Dois fantasmas”, conforme o poema de Drummond. “A região da Serra era pouco habitada nas primeiras décadas do século 20. Havia ainda muitas chácaras, áreas bem espaçadas, e, em várias regiões da capital, a população de baixa renda vivia à beira dos córregos, devido ao fornecimento de água precário. Era uma cidade que começava, crescendo de dentro para fora, e não de fora para dentro, como queria o engenheiro e urbanista Aarão Reis (1853-1936), chefe da comissão construtora de BH.”
 
A partir dos anos 1970, a cidade cresce rapidamente, embora muitos dos “mitos urbanos” tenham sobrevido ao processo abrigados no imaginário popular. Yuri descreve o cenário: “Nos meses secos, como no período de inverno, havia muita poeira nas ruas, assim como assovios dos ventos, tal o grande número de terrenos vazios. Esses sons pavimentavam os ‘caminhos da imaginação’, a partir da diversidade cultural vivida pela cidade com a chegada de pessoas do interior de Minas e outros imigrantes”.




 
A Lagoinha teve uma ocupação diferente, pois sofria um certo isolamento, por ficar fora da Avenida do Contorno e longe da área central. “Era uma região com os imigrantes, em especial os italianos, pessoas vindas do interior mineiro e a grande massa de trabalhadores. Católicos e pessoas de religiões de matriz africana conviviam numa área de BH com forte vocação para o samba. Desse ‘caldeirão’, nasceram muitas histórias”, destaca Mello Mesquita.

LENDAS URBANAS Pesquisadora de lendas urbanas, Bárbara Amaral se declara “apaixonada” pelos fantasmas de BH, que vão além dos da Serra e Lagoinha: ao longo do tempo, passaram a assombrar os belo-horizontinos outros espectros, como a Maria Papuda, originária dos últimos casebres do antigo arraial e que amaldiçoava a nova capital; ou a Loira do Bonfim, saída de entre as tumbas do antigo cemitério de mesmo nome.
 
Talvez o mais “jovem” dessas assombrações seja o Capeta do Vilarinho – esse, um homem misterioso, que no início da década de 1980 aparecia nos bailões da Avenida Vilarinho, em Venda Nova, escondendo sob o chapéu um lustroso par de chifres. “Muda o tempo, mas os personagens continuam firmes. Já ouvi, numa escola, um menino dizer assim: 'Olha, ele existe, sim. Só que agora vai no baile funk’”, conta Bárbara.





BERÇO DE NARRATIVAS Contadora de histórias e estórias, Magna Cristina de Oliveira morou 12 anos na Pedreira Prado Lopes, onde ainda tem uma casa, e vem de lá muito da sua riqueza cultural. “Relatamos o que vivemos, e posso garantir que a Lagoinha é o berço de muitas narrativas de BH”, diz Magna, certa de que “as vivências no ir e vir e na família compõem nossa trajetória”.
 
A força dos personagens, das lendas e mitos urbanos tem uma “forma personalizada”, o que se traduz por um fundo de verdade. “Nascem da imaginação das pessoas, mas também do que elas veem. Quando eu era criança, ouvia dizerem: ‘Lá vem o homem do saco’. Depois, vamos saber que era um catador de lixo, dignificado mais tarde como catador de material reciclável”, recorda-se Magna, em referência a um personagem das ruas do qual a criançada tinha medo.
 
Com o passar do tempo, a contadora acredita que a tradição está mais forte no interior mineiro. “Há épocas em que fica mais forte, como o período de quaresma. Na cidade grande, nossos fantasmas são outros... Essa correria danada nem nos permite pensar nesses assuntos.”





DOIS LADOS O poema “Dois fantasmas”, hoje, pode ser lido como uma crônica de outros tempos, de duas regiões do que hoje é a metrópole com mais de 2 milhões de habitantes e fantasmas que assombram muito mais: trânsito infernal, enchentes tenebrosas, empreendimentos minerários ameaçando a Serra do Curral, correria o dia inteiro, entre outros.
 
Curiosamente, enquanto na Serra, na Região Centro-Sul de BH, o fantasma “a ninguém assustava”, deixando-se “ficar junto a portões de chácaras” e a lembrar “sem gesto, a convivial presença das almas-do-outro-mundo”, na Lagoinha era bem diferente. Lá o espírito tocava o terror no caminho dos bondes. “Espanta motorneiros, sentando-se entre os trilhos, sem mover uma palha se o bonde tilintante desce a rampa”. Já os “raros passageiros dessa hora glacial, aos gritos se levantam...”

NÃO SE ASSUSTE! No posfácio da nova edição de “Boitempo II”, a professora Heloísa Starling avisa: “Mas o leitor não se assuste. Caminhar pelas cidades que a memória do poeta de ‘Boitempo’ transformou em versos é efetivamente um modo de contar a história e um convite à aventura. Acende a imaginação, despoja o cotidiano do seu peso, escava nossas lembranças em busca de um motivo – ou de um sinal de mistério – para modular o pensamento e, por vezes, sonhar.




 
Se são fantasmas, são também dois lados da cidade. “O fantasma da Serra, natural de Ouro Preto, surge à meia- noite e trinta do nevoeiro de junho, nos portões da Rua do Ouro, no Bairro da Serra. Grave, pontual, registra a última lembrança que a cidade guarda dos funcionários públicos anônimos, egressos da Ouro Preto destronada”.
 
Heloisa Starling assinala ainda que “o lugar de sua aparição marca também uma das margens originais de onde principiava a zona suburbana de Belo Horizonte, com suas ruas estreitas e quarteirões irregulares”. Para essa região, acrescenta, “refugiaram-se despossuídos de toda espécie, parcela significativa dos milhares de operários da construção civil a serviço do sonho da modernização de Minas, vagando, depois, sem trabalho. Seu destino, semelhante aos burocratas, foi o esquecimento, a escuridão da noite, o vazio, o ilimitado do espaço urbano”.
 
Por sua vez, “o avantesma da Lagoinha, excêntrico, cruel, quase disforme, é um senhor todo de preto, sem rosto, que exala vago cheiro de enxofre e chora um choro convulsivo”. A historiadora, no posfácio “Poesia, Memória, História: Modos de Contar”, expõe os contrastes: “Ao inverso da Serra, a Lagoinha era o lugar do jogo, da prostituição, da boemia – a margem que separava a cidade que se imaginava modernista, de sua gente, insalubre e extraviada. Hoje em dia, a face mais visível do bairro foi inteiramente demolida. O que sobrou vem sendo sugado pelo complexo de viadutos que se derrama em direção à Pampulha”.





OUTROS VERSOS Na palavras de Heloisa Starling, “outros versos trazem fragmentos do cotidiano da cidade e permitem ver a história também de diferentes perspectivas: as moças de chapéu e sombrinha; o farmacêutico Artur Viana; as professorinhas que invadem a desprevenida Belô, como ele diz; Batista Santiago, revisor de jornal e trovador noturno; Eduardinho, o gerente que nunca tem dinheiro”.
 
Heloisa ressalta ainda que “os versos trazem lugares que se tornam personagens: o crepúsculo na Serra do Curral; a Praça da Liberdade e o Parque Municipal; o bairro da Floresta; as confeitarias de Clara Weiss, Estrela e Pingo de Ouro; o cinema Odeon; o presépio do Pipiripau; o Clube das Violetas.”
 
Na cidade que sucedeu Curral del Rei e se tornou metrópole, há outros espectros. “Não faz parte de ‘Boitempo’, mas Drummond conta, em outro poema, a história de um terceiro fantasma. A Moça Fantasma que desce a Serra do Curral, em calmo desespero, para recolher, nas ruas do bairro dos Funcionários, os amores nascidos da certeza de que os amantes jamais voltarão a se encontrar. E deixa, em seu rastro, um cheiro doce de jasmim, de dama-da-noite, de magnólia, que se prolonga até a Rua Ceará, nos limites do bairro dos Funcionários – o perfume das flores dos antigos quintais das casas do bairro Funcionários. E seu contraponto é a solidão: uma nuvem gelada que escapou da serra do Curral.”





Aparição no Bairro da Serra

Cumpre seu destino, pontualmente, à meia-noite e trinta do mês de junho, na Rua do Ouro, quase na esquina da Avenida do Contorno. Um cavalheiro de terno preto e guarda-chuva, imóvel, na rua. Talvez um dos funcionários públicos anônimos do começo da história de Belo Horizonte. O lugar da aparição marca também uma das margens originais de onde principiava a zona suburbana da capital. No Bairro da Serra, se refugiaram despossuídos de toda espécie, parte significativa dos milhares de operários da construção civil vagando, depois de erguida a capital, sem trabalho – destino semelhante ao dos burocratas foi o esquecimento, a escuridão da noite, vazio, o ilimitado do espaço urbano.

Avantesma da Lagoinha

Um senhor vestido todo de preto, mas sem traço de rosto ou feição. Ao contrário de seu similar da Serra, o Avantesma da Lagoinha é uma aparição disforme, excêntrica, cruel, que exala vago cheiro de enxofre e chora um choro convulsivo. Antigamente, costumava descarrilar bondes sentando-se, imóvel, entre os trilhos. Talvez porque lhe pareça necessário revelar os rastros e a presença de uma gente submetida por muito tempo ao princípio de segregação física e espacial que orientou o projeto original de construção da nova capital. O Bairro da Lagoinha serviu de primeiro refúgio para boa parte da população pobre de Belo Horizonte construir suas cafuas e barracos. Hoje, o Avantesma da Lagoinha ainda se pendura pelas bordas do complexo de viadutos que se esparrama em direção à Pampulha.