Delegada e perita denunciam ter sido aposentadas após relatar assédios
Servidoras da Polícia Civil de Minas Gerais relatam conflitos com chefias que resultaram em encerramento precoce da carreira na corporação
Por
Pedro Faria
07/07/2023 11:35 - Atualizado em 07/07/2023 18:09
Uma delegada e uma perita da Polícia Civil de Minas Gerais denunciam terem sido aposentadas de forma forçada após relatarem casos de assédio moral dentro da instituição. Segundo as servidoras, o afastamento ocorreu após elas denunciarem os casos e passarem por uma perícia médica da própria Polícia Civil, cujos laudos foram emitidos com dados falsos e resultaram na publicação das aposentadorias no Diário Oficial.
O Estado de Minas ouviu a perita Tatiane Albergaria e a delegada Larissa Bello, com 38 e 41 anos, respectivamente, que dizem ter sido aposentadas compulsoriamente. Mas há a possibilidade de mais 40 casos semelhantes ocorridos com servidores da Polícia Civil de Minas Gerais nos últimos anos.
Os relatos são semelhantes. Depois de denunciarem casos de assédio ou perseguição na Polícia Civil, as vítimas são forçadas a tirar uma licença médica. Elas passam por perícia feita por médicos-legistas da própria instituição. Os laudos emitidos após o procedimento contêm, de acordo com as denúncias, a indicação de doenças psicológicas falsas, o que forçaria, assim, a aposentadoria desses agentes.
Diferente do que acontece normalmente com os servidores, os indivíduos aposentados de forma compulsória recebem pagamento dos vencimentos de forma parcial e com a perda de todos os bônus e benefícios da profissão. Algumas pessoas relataram que o salário atual não consegue cobrir as despesas médicas causadas pelos anos de pressão e assédio sofridos dentro da instituição.
'Acho que investiguei demais'
A reportagem do Estado de Minas ouviu uma delegada que foi aposentada recentemente após presidir um inquérito em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira.
Larissa Bello Fernandes, de 41 anos, investigava um caso que a princípio foi instaurado como crime de estelionato de carros de luxo com prejuízo de milhões de reais. No entanto, após investigações preliminares, ela teve indícios de que os fatos investigados tratavam supostamente de um caso de lavagem de dinheiro que poderia ter envolvimento de servidores da própria instituição. Ela acredita que passou a ser perseguida após se aproximar dos envolvidos e investigados.
"O primeiro desentendimento foi com um inspetor. Em setembro de 2022, dividimos as investigações e ele estava no Sul do país. Quando voltou, ele desobeceu algumas de minhas ordens e passamos a discutir", conta Larissa.
As intimidações começaram. Larissa recebia mensagens de servidores fora do horário de serviço dizendo que ela deveria se preocupar com a própria segurança. Com medo, ela pediu afastamento no dia 19 de setembro. "Fui para o Rio de Janeiro. A partir daí, o delegado regional mandou mensagens para minha família dizendo que eu não estava bem de saúde e pedindo para eu mandar uma atestado médico, mas eu estava apenas de folga", diz.
Na mesma semana, a chefe da delegada enviou um ofício para que ela fosse até Belo Horizonte realizar uma perícia médica. Ela ganhou uma nova licença e, ao voltar para trabalhar, acabou sendo aposentada. "Na mesma semana, chegou uma requisição para eu ir até a perícia médica. Fui para BH, o médico fez um relatório. Me deram 66 dias de licença. Voltei da licença e queria pedir alta e uma transferência para o Sul de Minas, onde eu estava morando com outra pessoa. Eles descobriram, me mandaram novamente para a perícia e me aposentaram", explica a servidora.
A rapidez para que a aposentadoria fosse publicada assustou a então delegada. Tudo isso aconteceu em menos de seis meses. O laudo médico emitido e assinado por três médicos-legistas aponta "incapacidade permanente para exercício do cargo".
Para a reportagem, Larissa disse que se mudou para Belo Horizonte, temendo pela segurança de sua família. "Mudando para BH por segurança e acesso para tentar resolver minha situação. Os núcleos são aqui. Posso me defender melhor morando na capital".
Tatiane era lotada em uma Unidade Pericial da Polícia Civil de Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Trabalhou por dois anos no local, até que os primeiros problemas passaram a acontecer. "A chefe da delegacia entrou de licença e me pediu para substituir. Durante o período da licença dela, tive contato com chefes de departamento, acabei conseguindo várias melhorias para a perícia. Acabou ficando um clima mais agradável na delegacia", conta à reportagem do Estado de Minas.
Quando a chefe voltou na delegacia, as novas conquistas não foram bem-vistas por um superintendente da região. A partir daí, a perita passou a ser prejudicada dentro da unidade. O homem foi o responsável pelos assédios e perseguição cometidos contra ela dentro da unidade. "Teve uma época que um perito precisou se afastar e ficamos sobrecarregados, ultrapassando a carga horária. Eu ia entrar de férias e a chefe não fazia nada para ajudar. Não liberavam férias, folgas, não conseguia escolher datas".
Durante a conversa com a reportagem, a ex-servidora chegou a comparar a situação dela com a mesma vivida pela escrivã Rafaela Drumond, que tirou a própria vida no dia 9 de junho, após meses de reclamações de casos de assédio e problemas nas escalas de trabalho.
A perita foi até a ouvidoria do estado para reclamar dos incidentes, mas, mesmo assim, não conseguiu suporte. Semanas depois, recebeu um ofício comunicando sua transferência de unidade. "A justificativa era de que eu havia tornado o clima na sessão insustentável. Eu, que, para evitar encontrar a chefe, trabalhava mais nos finais de semana. Entre os peritos, a gente competia para ver quem ficava mais tempo sem ver ela", descreve.
Semanas depois, foi publicada a transferência para uma unidade de Betim, na Grande BH, a pedido do superintendente que começou a assediá-la. A perseguição sofrida com sindicâncias instauradas pelo chefe, fez com que ela desenvolvesse problemas psicológicos. Tudo isso comprovado por laudos médicos particulares. "Em Betim, fui melhor recebida. Apesar de ainda sofrer muito pelo que tinha passado, com medo do que outros colegas pensariam, de que eu era um peso. Me mostrei apta para trabalhar".
Mesmo trabalhando em outra unidade, a perseguição continuava. Foram abertas sindicâncias contra a perita. Tudo isso, segundo ela, devido aos seus atritos com a antiga chefe.
Laudo médico e aposentadoria forçada
Meses depois, a perita tentou uma nova transferência para Vespasiano. O pedido foi negado pelo autor dos assédios de Tatiane, segundo a servidora. Ela foi então realocada no Instituto de Criminalística em Belo Horizonte. Lá, os problemas voltaram a acontecer, diz.
Um dos médicos legistas era próximo da sua ex-chefe e, posteriormente, acabou assinando o laudo supostamente falso que recomendava a aposentadoria de Tatiane. "Com medo de perseguição, pedi 60 dias de afastamento no fim de janeiro de 2023. Me deram 30 dias. Quando fui prorrogar, me mandaram trabalhar em outro horário do que fazia. Meu médico mandou um atestado alegando que essa confusão estavaa me causando ansiedade e crises", conta.
No laudo emitido e assinado por quatro médicos legistas da Polícia Civil, foi declarado que Tatiane estava "incapacidade permanente para o exercício do cargo" – mesma conclusão do laudo da delegada aposentada Larissa Bello.
"A única doença que tive foi em decorrência dos abusos que sofri. Colocaram no laudo transtorno de personalidade, depressão recorrente e transtorno dissociativo", afirma Tatiane.
Com o laudo emitido, a perita acabou sendo aposentada compulsoriamente no dia 20 de março deste ano. A medida fez com que ela recebesse cerca de um terço do seu salário o que, segundo ela, não é capaz de cobrir as despesas médicas. "No dia seguinte, já estava tudo pronto para publicar minha aposentadoria. É muita crueldade, não deixaram eu nem me defender. Fiz um pedido de reconsideração e negaram", conta.
Meses depois, Tatiane ainda tenta provar que tem condições de trabalho. Mesmo assim, ela não quer voltar para a Polícia Civil. "Não quero voltar pra Polícia. Mas meus médicos alegam que eu tenho condições plenas de trabalhar. Eu tenho que voltar a trabalhar, essa é a verdade. Agora, se querem me aposentar e que eu não volte, eu quero receber integral. Se eu tenho algo, é decorrente do trabalho, da perseguição. O dinheiro que a gente recebe atualmente não dá pra pagar os remédios", desabafa.
"A gente acorda todo dia querendo provar que não é incapaz, mas uma vez ou outra a gente se questiona. É uma dor muito grande", finaliza a perita.
O que diz o Sindicato?
Em contato com a reportagem, o presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil no Estado de Minas Gerais (Sindipol-MG), Wemerson Silva, afirma que a entidade está acompanhando de perto as investigações sobre os casos relatados na reportagem.
"Temos vistos os casos de aposentadoria, acompanhando alguns mais de perto. Pedimos uma análise melhor por parte da polícia, mas negaram. Continuaremos com as medidas judiciais cabíveis. Entendemos que algumas dessas aposentadorias não foram feitas de forma correta", declarou.
O que diz a Polícia Civil de Minas Gerais?
Leia a nota da instituição:
A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informa que as denúncias de supostos atos de assédio são rigorosamente apuradas pela Corregedoria-Geral. A PCMG esclarece ainda que todas as perícias realizadas pela instituição seguem rígidos protocolos técnicos e ditames legais.
Matéria atualizada às 16h07 do dia 7 de julho de 2023